Quando o imaginário emoldura o real

Sem quase nenhuma novidade histórica, "Elza, a garota", de Sérgio Rodrigues, sobressai devido à ótima trama ficcional
Sérgio Rodrigues, autor de “Elza, a garota”
01/06/2009

O difícil desafio de se escrever romances históricos está, talvez, na necessidade de se contrapor, sem macular, a versão dos vencedores. Paulo Setúbal, certamente nosso mais profícuo romancista histórico, tinha um truque muito eficiente. Buscava traçar com humor e lirismo patriótico as linhas rígidas da história. Assim, seu Maurício de Nassau surge com ares de conquistador irresistível e Dom Pedro I se pinta com as cores da irresponsabilidade juvenil e boêmia. Outros escritores — e aí o maior representante nosso está em João Ubaldo Ribeiro e seu Viva o povo brasileiro — usam a história apenas como ponto de apoio para uma discussão maior e, talvez, mais produtiva.

É pela segunda linha que segue Sérgio Rodrigues. O romance Elza, a garota não procura trazer maiores esclarecimentos sobre o que já se sabe da menina assassinada num ato de justiçamento pelo Partido Comunista do Brasil. E certamente traiu os desejos de seu editor, pois recebeu uma encomenda para escrever uma biografia da garota. O problema é que Elza, tanto ontem como hoje, era uma peça de pouco importância no contexto histórico e político em que estava envolvida. Até mesmo sua morte fora um erro que os mandantes se negaram até o fim da vida a admitir. Daí ter deixado pouca, quase nenhuma referência histórica.

Mas voltemos ao começo de tudo. Em meados da década de 1930, o Partido Comunista, fundado em 1922 como Partido Comunista do Brasil, passa por uma crise de identidade. Nesse processo muitos intelectuais, como Astrogildo Pereira, foram expurgados sob a acusação de trotskistas. No meio da confusão, surgiu espaço para ascensão de líderes vindos das camadas mais populares, dos chamados grupos de trabalhadores. Foi aí que a contraditória figura de Manuel Maciel Bonfim, o Miranda, um baiano que, embora reconhecidamente vindo das esferas populares do partido, tinha certa cultura e uma impressionante capacidade de oratória.

Foi ele, Miranda, quem descobriu Elza Fernandes, ou melhor Elvira Cupello Calônio, uma menina que vivia com os irmãos, militantes comunistas, em Sorocaba, interior paulista. Miranda se tomou de paixões e a levou como sua companheira. Era essa menina quem servia café nas reuniões em que o companheiro participava. Vivia totalmente alheia ao meio, até porque era analfabeta e nas citadas reuniões tudo era falando em francês. Em 1936, depois da fracassada Intentona Comunista, com Miranda ainda preso, Elza foi acusada de traição e assassinada. A palavra final foi dada pelo próprio cavalheiro da esperança, Luiz Carlos Prestes.

Depois de intensa exploração política, o Caso Elza foi esquecido e lembrado apenas como nota de rodapé da história. Em livros como Olga, de Fernando Moraes, e Camaradas, de William Waack, é citado apenas de passagem. Todos os protagonistas, sobretudo Prestes, durante o resto da vida procuraram minimizar o episódio e, talvez numa espécie de remorso tardio, salientar o risco que o Partido corria diante da garota Elza.

Sérgio Rodrigues por Osvalter

Quase nada de novo
Foi na busca da verdadeira história dessa menina que Sérgio Rodrigues se debruçou sobre pilhas e pilhas de jornais antigos e cópias de processos judiciais. Descobriu quase nada de novo, embora de suas pesquisas reste um dado fundamental. A carta que sempre foi usada como prova do envolvimento de Miranda com Felinto Müller, o mais representativos dos membros da repressão política dos anos Vargas, é verdadeiramente falsa.

E aí Rodrigues se viu diante de uma frustração para qualquer jornalista, mas também frente a um grande desafio para qualquer ficcionista. A pauta minguara por falta de novos dados, mas se agigantara a necessidade de o escritor dar nova vida à garota morta. Dessa forma, o autor renunciou ao romance histórico para construir uma narrativa paralela aos fatos históricos, ganhando em dramaticidade, sem perder o sentido de denúncia que quis imprimir ao seu texto. E aí nasce o parentesco com João Ubaldo e, mais próximo ainda, com Ruy Câmara, de Cantos de Outono, onde narra a vida do poeta Isidore Ducasse, conde de Lautrèamont, a partir do muito pouco que restou dele.

No caso de Sérgio Rodrigues, no entanto, a criação se volta para tentar entender o processo de desilusão de um homem. O milionário Xerxes contrata um jornalista já em decadência para escrever sua biografia. E surge Elza como a paixão mais intensa de Xerxes. O interessante é que o autor intensifica sua narrativa com doses cavalares de verossimilhança e meta-ficção. Toda história de Xerxes — sua filiação ao partido comunista, sua participação em guerras ideológicas, seu envolvimento com a bela e fogosa Gina, seu enriquecimento com contrabando — é perfeitamente factível porque está tudo atrelado à evolução histórica do país, embora seja também ficção no próprio romance.

Com isso, o escritor nos aponta o caminho de contradições da própria alma brasileira. Somos passionais e apaixonados na juventude, mas na maturidade buscamos um porto seguro. E não queremos nos despedir do mundo sem deixarmos o testemunho de uma vida útil, mesmo quando inventada.

Paradoxalmente, Elza não teve oportunidade de seguir este roteiro. Sua vida foi banal e sem sentido. Amou apenas para viver a paixão da subserviência. Tinha uma alegria que se confundia com ingenuidade. Morreu sem saber a real importância de sua morte. E esta importância, vale lembrar, se firma pelas circunstâncias em que tudo aconteceu. Mesmo assim, o mito que poderia nascer de toda tragédia se perdeu pela conveniência da esquerda e da direita em esconder os fatos. Parece mesmo aquela vida inútil que Bandeira tantas vezes fala em seus poemas.

Com o romance de Sérgio Rodrigues, Elza volta a ganhar a dimensão que lhe pertence. Aquela vida miúda foi paradigmática ao estabelecer a falta de limites inserida num pressuposto ideológico, e ainda a conveniência de se descartar mesmo uma vida e as misérias que ela, a vida, pode gerar. Enfim, tudo é descartável no mundo político. Rodrigues nos mostra isso contando duas intensas histórias de amor.

Um romance para ser lido com paixão e respeito.

Leia entrevista com Sérgio Rodrigues

Elza, a garota
Sérgio Rodrigues
Nova Fronteira
238 págs.
Sérgio Rodrigues
Nascido em 1962, é escritor e jornalista, autor de O homem que matou escritor e As sementes de Flowerville, entre outros. Mantém o blog literário www.todoprosa.com.br. É mineiro e vive no Rio de Janeiro.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

Rascunho