Sérgio Rodrigues recebeu uma missão da editora Nova Fronteira: escrever um livro-reportagem sobre Elza Fernandes, a garota assassinada pelo Partido Comunista Brasileiro na década de 1930, acusada de traição. Uma história repleta de equívocos e arrependimentos. Missão aceita, o jornalista e escritor saiu à caça de fatos que iluminassem este episódio da história brasileira, que insiste em caminhar por becos sombrios. Aos poucos o jornalista começou a esmorecer. Nada de muito interessante lhe aparecia pela frente. Pouquíssimas novidades despontavam a cada pesquisa. Personagens mortos se perfilavam. Ninguém para esclarecer a tão mal contada história de Elza. Em compensação, o faro do escritor começava a vislumbrar o mote para um romance, digamos, histórico. “Um conceito híbrido”, como explica nesta entrevista concedida por e-mail.
Além do progresso na construção do romance Elza, a garota, Sérgio Rodrigues fala sobre literatura brasileira contemporânea, a força da internet, a formação de leitores, oficinas de criação literária, dá conselho a quem quer se dedicar à literatura, entre outros assuntos.
• Por que desencavar, literalmente, a história de Elza Fernandes, a jovem morta aos 16 anos pelo PCB na década de 30, acusada de traição?
Do ponto de vista da editora que me encomendou o livro (não se trata de um projeto original meu), acredito que o motivo fosse mercadológico: contar uma história polêmica, com elementos trágicos, romanesca apenas na medida certa para seduzir leitores de não-ficção, aqueles que só levam uma história a sério se ela for “real” — ou seja, a maior parte dos leitores. E, juntando o útil ao agradável, dar uma contribuição verdadeira ao mutirão de elucidar uma época fascinante da história do Brasil. A encomenda era de uma grande reportagem, não de um romance. Mas do meu próprio ponto de vista, que começou a se formar rapidamente assim que topei encarar a pauta e dei início à pesquisa, esses motivos foram logo para o segundo plano. Quando apresentei à editora a contraproposta de escrever um romance, não mais uma reportagem, minha motivação principal já era a oportunidade de usar o caso Elza Fernandes como núcleo de uma investigação muito maior — sobre o Brasil de hoje, que é filho ou neto daquele, e sobre os próprios limites do ato de contar histórias, o caráter sempre construído de nossas lembranças e nossos esquecimentos.
• Quais as maiores dificuldades (e alegrias) encontradas pelo caminho? Como se deu o processo de criação do romance?
Isso não tinha sido planejado, pelo menos não com tanta clareza, mas não demorei a descobrir que a forma infinitamente mais maleável de um romance me permitiria transformar em trunfos as maiores dificuldades da tarefa, algumas intransponíveis. A escassez de informações sobre Elza era a maior delas. O fato de quase todos os personagens já terem morrido era outra. À primeira, o livro responde com uma estrutura em que Elza é uma busca eterna, um ponto de interrogação, espaço vazio cercado de versões e palavras provisórias. Um vazio que é sondado o tempo todo, mas jamais violentado: fica pulsando até o fim como um enigma. À segunda limitação, aquela que me obrigaria a freqüentar centros espíritas se quisesse entrevistar os personagens principais, a resposta que encontrei foi garimpar numa montanha de livros e recortes de jornal a polifonia desses mortos, dar voz a eles num esquema de colagem. O que terminou por ser uma outra viga fundamental na construção do livro. O processo de escrever foi meio zoneado e tateante, como costuma ser o de qualquer livro meu, mas só até surgir o personagem fictício de Xerxes, o velho comunista cheio de memórias que é um dos narradores. Em torno dele, tudo se organizou com uma facilidade mágica. Em menos de um ano o romance estava pronto, o que é um recorde pessoal.
• Romance histórico é sempre um risco: pode desagradar ao leitor mais exigente com a pesquisa histórica, por muitas vezes ser superficial em alguns pontos, e àquele apaixonado pela ficção. De que maneira este risco se impôs ao senhor no momento da construção de Elza, a garota? Uma pista seria a epígrafe utilizada — “Desde o início a tarefa era inviável, e era justamente essa a questão. A tentativa era tudo” —, retirada de Reparação, de Ian McEwan?
Bom, em primeiro lugar Elza passa longe de ser um romance histórico convencional. Acabamos usando esse rótulo — e eu mesmo já o usei — por comodidade, por convenção, mas existe o perigo de desinformar mais do que informar. Acredito que o risco que você menciona não seja inerente ao romance histórico em geral, só aos maus romances históricos, porque não vejo nada de necessariamente menos potente em termos literários numa ficção que se baseie em episódio histórico do que numa que se baseie na infância do autor ou num pesadelo que ele teve na noite passada. Também não acho que a ficção seja necessariamente mais superficial ao lidar com a reconstrução de épocas e modos de pensar — talvez seja até a linguagem mais apropriada para isso, na verdade. De todo modo, é o que um escritor faz com seu material que importa: o tema em si não torna um romance bom ou ruim. Mesmo assim, como eu ia dizendo, Elza me parece ir muito além do romance histórico convencional na forma como escancara a tensão entre pesquisa e invenção e a integra à própria narrativa, ao próprio texto. Nesse sentido, é um livro que se sente bem mais à vontade na companhia de romances contemporâneos que trabalham com linguagens híbridas, como Soldados de Salamina, de Javier Cercas, ou Austerlitz, de W. G. Sebald, do que na prateleira dos romances históricos propriamente ditos. Quanto à epígrafe de Ian McEwan, ressalvada a abrangência que se espera de toda epígrafe, ela se dirige mais à missão secreta e impossível de Xerxes do que a qualquer outra coisa.
• Que tipo de leitor o senhor espera que Elza, a garota seduza?
Não excluo leitor nenhum. Dos que apreciam a história com H maiúsculo aos que gostam simplesmente de boas histórias. Dos que procuram um livro divertido que os agarre pelo colarinho aos que preferem uma leitura mais lenta, que faça pensar. O próprio conceito híbrido que está no coração do livro sustenta esse ecletismo. Mas já que você me pede para identificar um tipo específico de leitor, gosto de imaginar que Elza é um livro recomendado especialmente para quem acha que a literatura vem se tornando um discurso cada vez mais irrelevante em nossa cultura, cada vez mais enfiado em seu próprio umbigo, que ilumina pouco e se relaciona de forma mais e mais esgarçada com as questões que realmente nos afligem como cidadãos do século 21. Vejo esse pensamento ganhar corpo nos últimos tempos — de certa forma é o meu próprio pensamento também. O que não quer dizer que eu me conforme com isso. Elza é uma tentativa de remar contra essa corrente.
• Na página 12, lê-se: “A primeira coisa que lhe chamou a atenção foi que o velho falava como se escrevesse, vírgulas e tudo. Tamanho poder de articulação era coisa de um outro tempo”. Vivemos um tempo de embaralhamento, de embaçamento, em que falta a capacidade de articulação de idéias claras e objetivas, principalmente pelos mais jovens?
Em primeiro lugar, gostaria de esclarecer que a frase destacada por você aparece num contexto que a relativiza: ela se refere a Xerxes, que, como o leitor vai descobrir no fim, talvez estivesse mesmo declamando um texto, “vírgulas e tudo”. Digo isso só para que a ironia dessa passagem não se perca num juízo definitivo demais, numa generalização que seria indevida. No entanto, acho evidente que o primado do discurso escrito, linear, realmente passou. Mas sempre tenho cautela com a tentação das visões apocalípticas. O que você chama de “falta de capacidade de articulação de idéias claras e objetivas” é um novo modo de pensar, uma nova configuração mental, mais baseada em associações de imagens do que na sintaxe tradicional. Perdemos com isso? Por um lado, certamente sim. Mas ganhamos por outro também. Para um garoto que queira ser piloto de caça, passar horas jogando videogame é muito mais importante do que ler Machado.
• Que tipo de ficção é o Brasil, levando em consideração a definição de Xerxes de que “países são ficções, construções históricas destinadas a se tornarem obsoletas na sociedade sem classes”?
Mais uma vez, como a frase é do Xerxes, reluto um pouco em tomá-la como base de algo que pareça um juízo definitivo. Mas, entrando na brincadeira, talvez se possa dizer que o Brasil é um romance daqueles bem caudalosos, que mistura estilos de forma atarantada, embora seja perceptível certo predomínio do barroco. Passagens fascinantes vêm entremeadas a outras muito mal escritas. Um livro bastante violento, aliás. Às vezes fica tão insuportável na repetição de certas tramas que dá vontade de abandonar a leitura. Mas não resistimos, voltamos a abri-lo, logo estamos fascinados outra vez. A esperança de um final feliz é remota, mas nunca se apaga. Há livros bem piores na estante do mundo.
• Por todo o romance perpassa o sentimento de que algo em que se acreditava muito — o comunismo — simplesmente foi um grandíssimo equívoco. Hoje, não há mais espaço para ideologias e utopias?
Há, sim. O que não é necessariamente uma visão otimista. Em primeiro lugar, tudo é ideologia, de certa forma, e achar que se vive fora do alcance de qualquer uma delas é apenas optar por não tomar consciência disso. Quanto às utopias, o caráter intrinsecamente autoritário de todas elas — todas mesmo, tanto as políticas quanto as religiosas — já ficou bem explícito a esta altura da história, mas não acredito que isso as impeça de continuar surgindo e seduzindo multidões. A boa notícia é que, ao contrário do que andou apregoando Fukuyama (que depois fez uma autocrítica), é papo furado dizer que a história chegou ao fim. E se não chegou ao fim, se novas configurações estão por vir, como desdobramento dialético das contradições de hoje, então estamos autorizados a ter alguma esperança.
• O senhor mantém hoje um dos principais blogs de literatura (www.todoprosa.com.br). De que maneira a internet tem colaborado para que um, digamos, sistema literário se forme/fortaleça no Brasil? As tecnologias são aliadas da literatura?
A internet é uma força bruta, uma avalanche, um maremoto. Onde houver um espaço vazio ela o preenche. Não necessariamente da melhor forma, com qualidade e delicadeza, mas preenche. E acho que tem feito muito bem às discussões sobre literatura no Brasil, que andavam carentes de um espaço maior. Tudo na cultura virtual, da interatividade aos mecanismos de busca, passando por sua vocação para a formação de redes sociais e grupos de afinidade — tudo isso funciona tão bem para a troca de figurinhas sobre livros e autores que, correndo o risco de exagerar um pouco, talvez se possa dizer que a internet é a melhor notícia para a literatura desde Gutenberg. Como ferramenta de publicação e plataforma de lançamento de novos escritores ela funciona também, claro, embora aí os benefícios já me pareçam mais duvidosos. Temo que publicar depressa demais — e não há nada mais fácil e imediato do que publicar na rede — possa atrapalhar mais do que ajudar na formação de um escritor. Seja como for, o saldo me parece muito positivo.
• Na página 15, lê-se: “…estava investindo num jornalismo mais lento e menos superficial como só é possível nos livros”. O senhor não acredita que o jornalismo diário tem a capacidade de ser menos superficial? A superficialidade e a pressa são os caminhos que estão levando o jornalismo impresso para o inferno a passos rápidos?
Não acredito que seja bem isso. A frase citada é do personagem Molina, contratado para escrever a história de Xerxes, e tem um componente de ressentimento e auto-justificação: no fundo, ele só foi buscar o jornalismo “menos superficial” dos livros porque o mercado jornalístico tradicional o expeliu, não tem mais lugar para ele. É claro que há muito de verdade em dizer que o formato livro permite o exercício de um jornalismo mais profundo, mas também é evidente que uma coisa não exclui a outra. Para aprender sobre, por exemplo, a história do meu time, o Flamengo, você faz muito bem em comprar um livro, mas para descobrir a escalação da equipe que vai jogar hoje à noite tem que consultar um jornal impresso ou virtual. O que eu quero dizer é que a pressa e certa superficialidade sempre fizeram parte do jornalismo diário, mesmo em suas épocas áureas. O drama da mídia impressa hoje é que a internet está lhe dando uma surra nesse campo: em termos de pressa e superficialidade, ela é imbatível. Tudo indica que os diários impressos terão que mudar profundamente se não quiserem desaparecer. Talvez, aí sim, investindo em profundidade, análise, contextualização, textos autorais. Tentando fazer uma espécie de revista semanal por dia, quem sabe. Por enquanto, quase nada se fez nesse sentido. Mais do que revolucionar uma cultura muito sedimentada, essa busca exigiria investimentos pesados que são ainda mais difíceis num momento em que a tendência mundial é de receitas minguantes.
• Como explicar o desinteresse (às vezes, menosprezo) dos grandes veículos de comunicação pela literatura? Não podemos esquecer que cada vez mais os suplementos literários perdem importância nos grandes jornais. Seria apenas um reflexo da suposta crise por que passa a mídia impressa?
Talvez a crise atual tenha alguma influência, no sentido de que leva a um enxugamento, uma compulsão pelo corte de custos, e a literatura faz muito pouco sucesso com diretores financeiros. Mas acho que a questão é bem anterior, mais ligada à nova mentalidade que se impôs nos grandes jornais a partir dos anos oitenta. De veículos mais ou menos iluministas, com uma missão civilizatória, como os principais deles gostavam de se ver, os jornalões passaram a ser produtos assumidamente mercadológicos, com linhas editoriais e estratégias pautadas muito mais em pesquisas de opinião do que na visão de mundo do déspota esclarecido que era o editor-chefe de antigamente. A redação perdeu poder para as diretorias que lidam com números. Não se trata de fazer um juízo de valor, apenas de constatar um fato. Não sei se essas empresas teriam sobrevivido se não fosse assim. De uma forma ou de outra, nesse quadro a literatura é realmente um patinho feiíssimo. Não vende jornal, os suplementos literários mal vendem anúncios. Acabam sendo feitos a um custo baixo, quase de favor, o que os leva a perder qualidade. É possível que isso não tenha saída. Parece provável um futuro não muito distante em que apenas publicações especializadas tratarão desse e de outros nichos, com os jornais cuidando cada vez mais do varejão indiferenciado.
• Uma questão que nos ronda o tempo todo é a formação dos leitores. Recentemente, em seu blog, o senhor voltou a abordar este assunto. Há um caminho seguro, uma fórmula possível para se seduzir mais pessoas para o mundo dos livros, principalmente para os de ficção, que, em princípio, não são “úteis” para o dia-a-dia das pessoas?
Não acho que exista um caminho seguro para isso. A única coisa que talvez se pudesse chamar de fórmula infalível é um remédio de amplo espectro, que traria benefícios para o país em todas as áreas e não só na literatura: uma educação de qualidade, uma valorização real do estudo e do conhecimento, um investimento maciço em educação pública. Mas essa é uma questão que, por alguma razão, nossa sociedade sempre tratou e continua tratando com um menosprezo tão solene quanto burro. Da sua parte, acho até que a literatura brasileira tem se esforçado, com alguns sinais de profissionalismo e amadurecimento, algumas tentativas de emplacar uma literatura comercial — que é fundamental para o bom funcionamento do mercado — ao lado de uma literatura esteticamente mais ambiciosa. Mas num terreno tão árido é difícil fazer mágica.
• A escola brasileira e sua maneira quase sempre conservadora de encarar a literatura mais atrapalham do que ajudam na luta para que os jovens se aproximem dos livros?
Não acompanho o tema de perto, mas tenho filhos em idade escolar e, com base na minha experiência e na de pessoas que conheço, ando decepcionado com a resposta das escolas à questão da leitura. É claro que a tarefa de ganhar para a literatura a garotada de hoje, que vive mergulhada em estímulos sedutores de dispersão infinita, é mais difícil do que jamais foi — e nunca foi fácil. Mas me parece que bem pouco tem sido feito para enfrentar o desafio. Clássicos indigestos continuam sendo receitados muito antes da idade mínima para que possam ser compreendidos, exatamente como ocorria no meu tempo. E, a não ser no caso dos livros infantis, a literatura contemporânea — que teria mais condições de ser vista como próxima da realidade das crianças — é um ponto cego. Às vezes parece que os próprios professores não sabem o que estão fazendo, limitam-se a repetir um roteiro que receberam pronto. Talvez nem eles mesmos sejam bons leitores, e é claro que um mau leitor só vai conseguir formar semelhantes seus. Aí voltamos ao problema comentado na resposta anterior.
• O senhor participará da Flip em julho, o evento literário mais badalado do Brasil. Vemos um crescente número de feiras e encontros país afora. Os prêmios literários (alguns bem significativos financeiramente) também se consolidam de maneira promissora. Vivemos um momento mais propício à literatura? Ou será apenas ilusão de ótica?
Não acho que seja ilusão, o momento tem realmente sua efervescência, o que é muito bom. Desde que a gente não confunda as coisas: prêmios e festivais literários são acessórios, um circo armado em torno dos livros. Um circo desejável e divertido, que pode estimular autores e criar uma atmosfera propícia à circulação de idéias sobre literatura — inclusive na grande imprensa, que só nessas horas festivas parece descobrir com certo susto que dali podem sair boas pautas. Mas nada disso quer dizer necessariamente que o momento seja glorioso para a literatura em si. No caso brasileiro atual, não é glorioso mesmo, embora seja interessante.
• O senhor realiza o sonho ambicionado por muita gente: viver de literatura ou de seu entorno. De que maneira a literatura se solidificou no centro de sua vida profissional?
Aos poucos. Construí uma carreira como jornalista antes de publicar meu primeiro livro de ficção, O homem que matou o escritor, em 2000. E a partir desse momento comecei a caminhar cada vez mais para uma fusão que algum tempo antes teria parecido pura utopia — a do escritor com o jornalista. Eu não queria matar nenhum dos dois: ser escritor era um sonho de infância, mas o jornalista pagava as contas. Ao mesmo tempo que o fazer literário ia ganhando espaço em minha vida, como parecia natural e eu queria que ganhasse mesmo, foi possível tornar minha atividade jornalística cada vez mais autoral, com base em colunas assinadas, tratando cada vez mais de literatura e de questões de língua e linguagem, que é um outro campo de interesse meu. O Todoprosa acabou sendo uma síntese de tudo isso. Não sei se dá para recomendar esse caminho a alguém, porque essas coisas são sempre muito pessoais. Mas funcionou ou pelo menos está funcionando, e espero que continue assim.
• O senhor tem mais orgulho dos livros que leu ou dos que publicou?
Olha, não acredito nem que o Borges tivesse realmente mais orgulho dos livros lidos do que dos escritos. Eu, pelo menos, se fosse o autor de Ficções, ia andar por aí tão inchado que não passaria na porta. Acho que essa tirada dele é só uma frase de efeito — uma ótima frase de efeito, mas nada mais. Como o orgulho está associado ao mérito de fazer, à contemplação de algo que não existiria sem você, sinto muito mais orgulho dos livros que escrevi, claro. Mesmo reconhecendo neles certos aspectos pouco lisonjeiros e mesmo sabendo que fui muito mais feliz e realizado lendo Grande sertão: veredas, por exemplo, do que escrevendo qualquer um dos meus. Mas essa é outra história.
• Há uma grande quantidade de oficinas de criação literária espalhadas pelo país. O senhor acredita na capacidade destas na “formação” de escritores?
Nenhum curso ou oficina jamais vai transformar um não-escritor em escritor, mas pode — nos casos de não-picaretagem, naturalmente, e para isso é preciso pesquisar bem o mercado antes de fazer a matrícula — ajudar a lapidar talentos, além de propiciar uma convivência com seus pares que seja muito produtiva. Por que não? Num esquema mais profissional e institucionalizado, os cursos de creative writing nos EUA podem se gabar de ter algumas estrelas entre seus ex-alunos, como Michael Chabon. No Brasil, ficaram quase lendárias as oficinas de Assis Brasil no Sul, por onde passaram escritores como Michel Laub e Cintia Moscovich, entre outros.
• Que conselho o senhor daria a alguém que deseja dedicar-se à literatura no papel de escritor?
Meu conselho-padrão, que muita gente acha que é piada mas é sério, costuma ser o seguinte: desista se for capaz. O mundo da literatura parece muito charmoso e tal, mas a verdade é que o jogo é muito duro e nem sempre leal, as recompensas são fugidias e as chances de fracasso — não só comercial, mas estético mesmo — estão todas contra você. Agora, se depois de considerar tudo isso o sujeito ainda for incapaz de desistir do seu plano maluco, então é escritor mesmo, e nesse caso todos os conselhos se tornam fúteis. Cada um tem que encontrar seu próprio caminho. Ler muito, ler tudo, e não ter pressa demais de publicar talvez sejam recomendações úteis. Arranjar um jeito de sustentar seu “vício” também me parece um bom toque. A menos que seja rico de berço ou de baú, um escritor deve ter outra profissão, sob pena de ser levado pela ânsia do profissionalismo a vender seus escritos cedo demais, tornar-se um marqueteiro juramentado ou sair à caça de bocadas estatais — e nada disso é muito saudável para aquilo que realmente importa, isto é, o texto.
• Ao que parece, o senhor acompanha de perto a literatura brasileira contemporânea. Qual a sua opinião sobre a produção atual? Passamos por um bom momento? Ou há apenas uma profusão de autores a produzir livros sem muita importância?
Acho que passamos por um momento curioso. Já há alguns anos, autores novos têm tido uma facilidade inédita para publicar, e talvez o número de participantes nesse jogo nunca tenha sido tão grande em toda a nossa história. Claro que isso tem como uma de suas conseqüências uma inflação de livros de pouca relevância, mas, como sempre acreditei na máxima de que quantidade gera qualidade, não duvido que estejamos vivendo as vésperas de uma grande fase.
• Quais autores/livros nunca o abandonam?
Uma galera grande: Machado de Assis, Dashiell Hammett, Guimarães Rosa, Raymond Chandler, Carlos Drummond de Andrade, Elmore Leonard, Vladimir Nabokov, Alan Moore, Rubem Braga, J. M. Coetzee, Virginia Woolf, Fernando Pessoa, Charles M. Schulz, Nelson Rodrigues. Não é um conjunto de tipos humanos que se possa convidar tranqüilamente para a mesma festa.
• A literatura é a melhor maneira de se esperar a morte?
Se “esperar a morte” for um sinônimo de viver, ganhar a vida ou matar o tempo, a resposta é sim — para mim, evidentemente. Mas não gostaria de declarar minha opção superior à de quem prefere a culinária, as palavras cruzadas ou a canoagem.