A facilidade com que se encontra informação hoje em dia — e informação de qualquer lugar e de qualquer época do mundo — permite o aparecimento de estranhas combinações que pareciam impossíveis há alguns anos. Por exemplo, quando é que se podia imaginar, há uns 20 anos, que um escritor brasileiro escreveria um livro de faroeste, mas faroeste mesmo, no original, far west, o oeste distante? Talvez até ele gostasse dos filmes de Sérgio Leone (Os imperdoáveis, filme de Clint Eastwood que repôs o bangue-bangue na lista de possibilidades de Hollywood, é de 1992) das décadas de 60 e 70, e por isso se inspirasse. E misturar faroeste com zumbis? Bom, por alguma estranha combinação de gostos, ele também poderia gostar de George Romero e seus filmes de zumbis, em especial seu primeiro da lista, A noite dos mortos vivos, filmado em 1968. Isso seria raríssimo. No entanto, na era da informação fácil, do download de praticamente todo e qualquer conteúdo pela internet, e onde todas as tribos, por menores que sejam, podem encontrar a sua taba, ter um brasileiro de 25 anos — ou seja, alguém que não era nascido no auge dos filmes de Leone nem nos de Romero — que misture os dois gêneros para escrever um romance, bom, isso só é possível na geração superconectada, antenada, que devora informação.
Pois é dessa inusitada mistura de gêneros de que lança mão o gaúcho Antônio Xerxenesky (um nome que me lembra ao mesmo tempo os persas e os russos, talvez até uma combinação possível nesse Brasil de muitos povos) em Areia nos dentes, seu primeiro romance. Não contente em misturar dois gêneros aparentemente imiscíveis, ele ainda coloca pitadas de Romeu & Julieta, doses de psicologia com pais e filhos sem questões resolvidas entre eles, linguagens literárias diferentes ao longo do texto, metalinguagem esparramada aqui e ali, enfim, é uma mistureba das boas. O resultado? Não dá dor de cabeça, mas não deixa nenhum gosto de quero mais na boca, infelizmente.
O primeiro enredo de Areia nos dentes é relativamente simples. Em Mavrak, uma quase cidade fantasma do oeste dos Estados Unidos, vivem duas famílias que brigam há tanto tempo que nem sabem mais o que começou a briga: os Marlowe (epa, um detetive noir também entra na história?) e os Ramírez. Logo no começo do livro, produz-se um cadáver — no caso, o de Martín Ramírez, que foi bisbilhotar o que os Marlowe faziam escondidos em seu porão e que, na cabeça do patriarca Miguel Ramirez, só podia significar em algum plano dos Marlowe para acabar com eles. A morte de Miguel traz à cidade o xerife Thornton, um representante da lei onde antes não havia nem traço de oficialidade. Thornton, homem raro no oeste americano, pois é abstêmio e temente a Deus, tem dificuldades em entrar na vida do vilarejo para descobrir quem foi o assassino de Martín, pois não acredita que tenha sido obra dos Marlowe. Bom, o enredo vai e em algum momento aparecem os zumbis, mas não vou contar aqui para não estragar a história de quem quiser ler o livro.
O segundo enredo tem a ver com um personagem querendo fazer as pazes com o passado. Estamos falando de um descendente dos Ramírez, já com certa idade, que vive na Cidade do México e está escrevendo a história de seus antepassados. Porém, é um descendente mais que humano, pois vemos que ele esquece alguns trechos da história, não sabe usar o computador direito, omite pedaços de seu relato, bebe em demasia em algumas ocasiões, enfim, uma pessoa como nós. Por fim, descobrimos que esse escritor, que está escrevendo a história de Mavrak e seus habitantes, descobre um jovem escritor que está escrevendo um romance sobre faroeste e zumbis, parecido com a história de sua família.
A mistura, longe de atrapalhar, acaba sendo feita de maneira dosada e comedida. Xerxenesky dá a entender que lê muito e sabe as armadilhas que o excesso de erudição pode causar. Ao mesmo tempo, a pouca idade e o tema tão distante de nossa realidade cobram o seu preço, e Areia nos dentes é tão profundo quando um filme da Sessão da Tarde. Os personagens estão ali, prontos para a ação, sem muitas digressões filosóficas ou psicológicas. Alguns personagens têm aparições breves, importantes para o desenrolar da trama, mas que acabam saindo de cena sem muitas explicações. Não ficam pontas soltas pelo caminho, pois suas intervenções na história dos personagens principais são projetadas para serem únicas, sem repetição. O uso de ferramentas de diagramação, como mudar a fonte do texto, mudar o corpo do texto, colocar o texto em duas colunas, alternar entre o narrador principal e dar vozes aos personagens, enfim, todas as diferentes estratégias de narrar um romance usadas por Xerxenesky colaboram para dar um ritmo ágil ao texto. Mas não sobra muita coisa após a sua leitura. Termina-se o livro com um sorriso moderado no rosto, com um “bacana” na mente, e é isso, nada será levado para depois. Ou seja, tão profundo quanto a cultura pop. Nada que o escritor não possa resolver com alguns anos de vida nas costas.