Sinal dos tempos desastrosos que vivemos é que tenho a cara de pau de ministrar oficinas de poesia e mal sei contar sílabas poéticas. Os ossos de Manuel Bandeira tremem, mas o Rio de Janeiro nem escuta. Não pedirei perdão. Em minha defesa, inútil tentativa de defesa, como quem é atacado por uma espada e tenta segurá-la pelo fio, não acredito que hoje seja importante a conferência matemática dos versos. Então saiba que eu li Sonetos de amor e sacanagem, de Gregorio Duvivier, sem me preocupar se ele deu alguma roubadinha na métrica, tá?
Poesia não é coisa que se meça.
Por que alguém no século 21, a alguns meses do centenário do Modernismo (que tentou enterrar o soneto, tão, tão Parnasiano naqueles 1922), ainda escreve sonetos? Não suponho que você tenha feito essa pergunta, ela é minha mesmo, para o mais velho efeito retórico. Alguéns escrevem sonetos porque querem e pronto. Na arte da escrita não é preciso outra motivação ou justificativa.
Glauco Mattoso mantém sonetos vivos faz tempo. Manuel Herzog faz deles pontiagudos e bem-humorados, assim como fez nesse livro o Duvivier. E tem mais gente. Meu amigo Alessandro Padin escreve sonetos, estuda sonetos, me lançou muita luz a respeito nos últimos tempos. Por causa dele perdi meu péssimo preconceito (pleonasmo em nome da ênfase) contra a métrica.
O livro de poemas anterior do Duvivier, Ligue os pontos (2008), uso nas minhas aulas. Sou fã desse trabalho, em que ele condensa de forma muito potente observações do cotidiano, sua história pessoal e a de seu tempo no Rio de Janeiro, observações gerais da sociedade (e se contar direitinho você vai encontrar métrica ali, que ajuda muito no ritmo dos poemas).
Nesse livro novo ele também faz isso, mas não de forma tão condensada, porque o soneto o obriga a esticar. É da natureza da coisa. O verso livre pede só o necessário. Nós, como poetas, nem sempre obedecemos. Os melhores, em seus melhores momentos, dão ao poema somente o que lhe pedem. Isso é impreciso pra cacete, mas é como compreendo a coisa (“A questão da poesia é esta: dizer coisas imprecisas de modo preciso”, escreveu Décio Pignatari em O que é comunicação poética).
Mas e daí? Daí que, se enveredar por esse caminho, vamos dar numa espécie de avaliação capitalista de eficiência, o que muito me desagrada. Quer dizer que um livro é melhor do que o outro porque é mais potente, conciso, eficaz? Isso pode ser desejável para quem gosta, mas há de se ter cuidado com a cobrança.
Cada obra tem sua graça muito própria e comparações são estúpidas. Sonetos de amor e sacanagem é um livro muito bom. Affonso Romano de Sant’Anna me disse uma vez que, na maioria dos livros de poemas, apenas um punhadinho deles nos pegam de verdade, três ou quatro, disse ele. O barato disso é que entre muitas pessoas esses três, quatro, oito que sejam, raramente são os mesmos. E se são os mesmos, não são iguais os motivos nem as sensações e apreensões.
Qual a temática central do livro? Perguntaria uma prova de vestibular, dessas que massacram a literatura, a pisões de bota sete léguas amarelas. Tem de tudo, não encha o saco! Tem bem mais do que amor e sacanagem, aliás.
O olhar de Duvivier para o mundo, conforme ele expressa em crônica, roteiro de humor em vídeo e poema, é dos mais aguçados a que temos acesso. Ele é muito hábil ao adequar o que provavelmente é o mesmo olhar em diferentes tipos de texto.
Por que soneto?
Nem procurei entrevistas do autor para encontrar uma resposta. O mais importante, na minha leitura agora, é o que o livro diz a respeito. Soneto do soneto traz uma boa pista: “A restrição ajuda o desbloqueio”. É o primeiro verso. Essa coisa de inspiração, que o poema desce inteiro na sua cabeça feito um raio, até acontece, mas é raro. E não dispensa o trabalho posterior, nem que seja para manter o poema do mesmo jeito.
“Acenda um baseado ou faça um chá/ O que tens a dizer logo virá./ Deixe falar em seu lugar o metro.” É isto: retiro do poema todo o que me toca, e pronto! Desentranho do soneto meu próprio poema, que ainda é do poeta, não meu. Apropriação seria a palavra. O que me importa aqui é apontar que Duvivier propõe para o soneto um jeito de acabar dizendo o que nem sabia que desejava dizer. O metro comanda, pelo jogo inescapável dele, e a significação emerge e transborda. Daí o poeta talha o acabamento.
Acredito que seja uma diversão maior para o poeta do que para o leitor, mas não posso afirmar, porque sei dos adoradores de sonetos, dos adoradores da sonoridade, essa música provocada pela métrica e pelas rimas no soneto.
Restrição, sim, para a liberdade.
Caramba, eu devia tentar. Sei que devia tentar. Um dia tentarei escrever sonetos. Mas parece tão chato isso de ter de preencher os versos, quando o que se quer dizer se diz com menos… Olha o capitalismo, André! Cuidado que ele te toma! Ele toma tudo!
Diversão, sim
De modo bem-humorado o poeta toca em assuntos muito sérios. Não é fazendo humor, mas algo como dizia o Drummond, o humour, que é diferente. Como já escrevi, Duvivier sabe desdobrar esse olhar próprio dele para o mundo, de formas diferentes, adequadas a cada gênero.
Poesia é coisa séria, mas se for levada muito a sério vira uma chatice. Mergulho mais fundo na alma humana, o toque mais ardido nas feridas da sociedade, o despertar mais amplo da consciência… poemas e textos literários em geral podem conter isso tudo, mas a leveza é tão importante quanto.
Tem um poema em que Duvivier rima “red roses too” com “cupuaçu”: é surpreendente e por isso é bom! Bandeira, o que fiz revirar em sua morte inesquecível (como sua vida e obra), disse em seu Itinerário de Pasárgada que rima é assim, não importa se rica ou pobre: “boa rima é a que traz ao ouvido uma sensação de surpresa”.
Escrever tem de ser uma diversão, sobretudo. Não pensava assim, hoje penso. A chance de arrancar um sorriso de quem lê, aquele sorriso do tipo “encontrei um troço bom aqui”, é maior quando a gente escreve assim.
“Um conselho: não gaste a sua verve/ pensando pra que serve alguma porra./ Só vai servir pra que você se enerve:/ faz logo a merda antes que tu morra!”, é a primeira estrofe de Soneto inútil, que termina assim: “A vida é curta e a morte se avizinha,/ esqueça as relações de causa e efeito./ Nem tente fazer gol. Mate no peito/ e comece a fazer embaixadinha”. Pois é isto, se o que me importa não é o resultado.
O que vou fazer não é tentar uns sonetos, acho que não ainda, mas com certeza incluir esse livro nas minhas oficinas, abrindo possibilidades, e por isso sorrindo.