O inesgotável sol de Camus

Nos ensaios de "Bodas em Tipasa", franco-argelino se mostra para muito além da condição de profeta do absurdo, à qual costuma ser identificado
Ilustração: Albert Camus por Fabio Miraglia
01/02/2022

Em 2023, completam-se 110 anos do nascimento do escritor e filósofo franco-argelino Albert Camus (1913-1960). O relançamento de Bodas em Tipasa, cuja primeira tradução em português foi publicada nos anos 1960, pode animar a efeméride. O que o leitor e a leitora vão encontrar na obra? Em primeiro lugar, dois livros: Bodas e Verão, separados por mais de 15 anos. Os textos de cada conjunto têm datações diferentes, então a distância entre eles pode até chegar a 20 anos.

A tradução do livro, assinada por Sérgio Milliet (1898-1966), foi lançada originalmente pela Difel e reapresentada ao público, em 2021, pela Record. Na altura em que primeiro chegou a público, seguia um interesse despertado pela viagem de Camus ao Brasil no final dos anos 1940? Seguia sua morte trágica? No final dos anos 1990, a Difel foi incorporada à Record, que reenvelopou, assim, o trabalho do tradutor morto há mais de 50 anos. Ao que parece, sem retoques em termos da tradução e sem um estudo introdutório, para o qual há especialistas no Brasil.

Acostumados a identificar Camus com o absurdo, os leitores vão se deparar com uma resposta do autor sobre o tema nessa obra, mas também com um conjunto (talvez) inesperado, que ultrapassa os rótulos que fazem um escritor conhecido ou esquecido. Como o próprio Camus reconhece no ensaio O enigma (1950): “A partir de então, ele [o escritor] será conhecido (e esquecido) não pelo que é e sim pela imagem que um jornalista apressado terá dado dele”. Escapei do vaticínio. Não sou jornalista e já perdi a hora algumas vezes.

Costumo desconfiar dos autores que, depois de alguns ou muitos anos, tentam dar um sentido ao que escreveram tempos antes. Fernando Pessoa, Edgar Allan Poe, Umberto Eco… Mas, ainda que desconfie, não desmereço o que dizem. Explico: os autores são leitores (especiais?) do próprio trabalho, não os desmereço como leitores — de si e de tudo o que seus leitores lhes devolveram.

Em 1952, em entrevista para a Gazette de Lettres, Camus afirmou que não acreditava em livros isolados e que para alguns escritores suas obras formavam um todo. Falava também do seu trabalho? Muito provavelmente. O autor já tinha escrito O estrangeiro (1942), A peste (1947) e outras obras de diferentes gêneros literários; já havia recebido prêmios, militado no jornalismo e publicado O homem revoltado (1951), livro para o qual convergiram diferenças de uma amizade importante.

Depois de lançado, O homem revoltado fez eclodir publicamente outras diferenças mais dessa relação e marcou uma ruptura com cara de abalo sísmico na França de então. A amizade rompida foi com o filósofo Jean-Paul Sartre (1905-1980). Nessa época, Camus já era, portanto, um leitor robusto de si mesmo.

Escrevia Verão em meio a esse abalo sísmico e o ensaio O enigma provavelmente ao mesmo tempo em que concebia O homem revoltado. Enxertar esse ensaio em uma obra devotada ao sol foi o primeiro desafio do texto: “Com tanto sol na memória, como pude apostar no absurdo?”.

Essa questão é uma falsa aporia, Camus explica: “Não se pode ser sempre um pintor do absurdo (…). Naturalmente, é sempre possível escrever, ou ter escrito, um ensaio sobre a noção de absurdo”, ironia…, lembrando que fizeram dele — os seus leitores — o profeta do absurdo: “Mas é cômodo explorar uma fórmula de preferência a um matiz. Escolheram a fórmula: eis-me absurdo como antes”.

O enigma congrega respostas: à noção de que foi “profeta” e possivelmente às acusações de Sartre, de que ele, Camus, carregava um “pedestal portátil” e de que era afinal tão “burguês” como o próprio Sartre.

Juventude e sentidos
O relançamento de Bodas em Tipasa oferece aos leitores brasileiros, em tempos de esgotamento ideológico e de penúria no debate político, mas em que é urgente tomar posição, uma oportunidade de avaliar se esse livro é uma obra isolada ou se integra o todo, ou ainda se “faz justiça” ao autor, depois de tanta fogueira e camadas de leitura.

Em Bodas, há quatro ensaios escritos entre 1936 e 1937, período em que Camus tinha 23 e 24 anos. Os dois últimos textos são dedicados a professores que foram fundamentais em sua formação na Argélia. Trata-se do antiquista Jacques Heurgon (O verão em Argel) e do filósofo e escritor Jean Grenier (Deserto), com quem Camus manteve correspondência até a morte.

Camus afirmou que Verão fora marcado pela leitura de As ilhas, de Grenier. Menciono esses detalhes para que lembremos que essa é uma obra de juventude. A presença dos mestres na dedicatória pode ser interpretada como tutela amiga ou como diálogo do jovem com os mestres que o “descobriram”. Camus escreveu uma monografia de conclusão de curso sobre Plotino e Agostinho. De certa forma, vejo nessas obras ecos significativos do estudante; a energia de quem começa.

Bodas é um livro de viagem? Pode ser. Nos dois primeiros ensaios, o espaço localiza experiências e sensações em uma narrativa cujos personagens mais importantes são os sentidos. No primeiro, que dá nome à obra, há exemplos: “Os deuses falam no sol e no odor”; “o cheiro volumoso”; “calor intenso”; “entramos num mundo amarelo”; “os absintos nos pegam pela garganta”; “ver e ver nesta terra, como esquecer a lição?”.

Como a atuação dos sentidos impacta o narrador? Os sentidos apontam o caminho da verdade: “Não é tão fácil a gente se tornar o que é, reencontrar sua medida profunda”. Toda essa experiência de encontro é uma celebração particular, que se remete ao título. O dia desfrutado em Tipasa — texto de um jovem brilhante de 23 ou 24 anos, repito — reivindica: “Não há vergonha em ser feliz”.

No segundo ensaio, O vento em Djemila, os sentidos não convidam à festa, aliás, é mesmo o silêncio que é evocado. Os sentidos esclarecem percepções do tempo. A pele ressequida (e escrita) fala sobre transformações e, de repente, ensina sobre a morte: “Compreendo que todo o meu horror de morrer está contido em meu ciúme de viver”. O absurdo se anuncia. A Segunda Guerra, também.

Os textos dedicados aos mestres têm outras relações com o espaço. A cidade é protagonista, não mais os cinco sentidos. Eles não estão excluídos obviamente, mas as cidades determinam relações tecidas entre sensação e mesmo erudição. O narrador observa mais, nem tudo passa pelo seu corpo. Há outros corpos e outras maneiras de viver, que participam de sua memória e de sua observação de espaços caros. Em todos os textos, sobressai um desejo de continuar nesses/por entre esses espaços: “Nada mais vão que morrer por amor. Viver é que seria preciso”.

Os dois primeiros ensaios de Verão ou foram escritos logo depois da publicação de Bodas, ou é possível que estivessem sendo gestados ainda de forma concomitante à publicação do primeiro livro. No primeiro ensaio, O Minotauro ou A parada de Orã, dedicado ao amigo Pierre Galindo — não é mais a um mestre —, há uma ressalva, escrita em 1953. O autor se dirige a seus leitores, mas reconhece que Orã não precisa mais de escritores… Na primeira linha, refutação: “Não há mais desertos. Não há mais ilhas”. Ora, o último ensaio de Bodas é O deserto e a “influência” reivindicada por Camus para essa obra é As ilhas, de Grenier! Mas não nos iludamos: “Há, entretanto, necessidade de desertos e ilhas”. Camus compara cidades — são barulhentas — e aspira ao silêncio, por isso Orã.

O narrador desdobra a cidade: passa pelas ruas, onde “todo o mau gosto da Europa e do Oriente nelas marcou encontro”; o deserto; os divertimentos, onde li a explicação mais engraçada para o suor fétido: “Odor de humanidade em mangas de camisa exaltante”. Ler é também colecionar frases, personagens e tramas que nos causam aquela saudável (?) inveja literária…

As pedras de Orã são os monumentos verdadeiros da cidade para o narrador. Elas são as deusas tutelares do deserto. Em As amendoeiras, Camus continua a desenvolver a sua busca pela paisagem onde “a contemplação e coragem podem equilibrar-se”. Sua busca não encontra o símbolo, mas o esforço para encetar a obra e a obra é o mundo. O ensaio é de 1940, tempo de inverno no mundo de Camus.

Volta a Tipasa
Esse inverno dura nele e em torno dele, pois o autor só volta ao conjunto reunido em Verão em 1946. De 1946 a 1953 são seis ensaios, incluído O enigma. O primeiro deles consagrado a Prometeu… Não temo o óbvio ao desconfiar que, depois da guerra, o autor desejasse pensar nos “presentes” que esse mito ainda poderia dar aos homens e mulheres saturados de gritos, de dor e ameaças. Camus encena retornos em Verão, e um dos mais significativos é Volta a Tipasa, de 1952.

Cerca de 15 anos separam a celebração das bodas literárias em Tipasa e a volta aos braços dessa amada. Ela continuava a ser a cidade de seus verões, mas o narrador agora a insere como destino de uma fuga: Tipasa é um destino cheio de memórias que convivem com o homem marcado pela experiência do inverno. O que o narrador foi buscar? O deserto. Esse deserto é também um silêncio. Longe dos gritos e dos barulhos mecânicos e bélicos, mergulhado no silêncio, ele pode ouvir novamente seu coração bater. É quase um desejo de ascese.

Em O vento em Djemila, Camus afirmara a diferença entre recusa e renúncia. Em Volta a Tipasa, o narrador exprime essa diferença no tempo:

Não pude renegar a luz em que nasci e, no entanto, não quis recusar as servidões deste tempo.(…) Há assim uma vontade de viver sem nada recusar da vida que é virtude mais honrada por mim neste mundo. É verdade que, de tempos em tempos ao menos, eu gostaria de tê-la exercido.

Esse conflito é um dos elementos formadores de Camus que politicamente era favorável à independência da Argélia, mas não à renúncia da tradição cultural europeia no país: não pode renegar, não quis recusar. Esse entendimento, para mim, está em consonância com o pensamento mediterrânico, porque esse mar/país não renuncia, mas reúne culturas — luzes e servidões; mar/país “difuso e turbulento” (do ensaio La nouvelle culture méditerranéenne).

O conflito se espraia pela Europa, entre o meridional e o setentrional, que se inscreve no ensaio O exílio de Helena (1948). O ponto de partida é sempre o Mediterrâneo. No ensaio, Camus explica a sua compreensão dos gregos e estabelece a diferença com o norte europeu, diferença baseada na beleza: enquanto os gregos pegaram em armas pela beleza, a “sua” Europa “nega a beleza, como nega tudo o que não exalta”; longe do mar, o continente só exalta a razão.

E o que obrou a razão? Para Camus, o vácuo e as cidades. Apesar de o mundo ter sido amputado de sua permanência: “A natureza, o mar, a colina, a meditação das tardes”, “a natureza continua presente (…). Ela opõe seus céus calmos e suas razões à loucura dos homens”. A guerra havia acabado há três anos e Helena ainda vivia o exílio, mas o narrador experimenta a proposta de reunião aos gregos. A alternativa entrevista pelo narrador é a arte e o pensamento do meio-dia, como a medida do próprio homem: “Fidelidade a seus limites, amor clarividente de sua condição”.

O Verão termina com um diário de bordo e os nautas molham as embarcações em outros mares/oceanos — Atlântico, Pacífico. O narrador não olha da praia, ele está dentro, molha-se. É um jeito de voltar a si depois de tantas correntes terrestres: “Tive a impressão de viver em alto-mar, ameaçado, no âmago de uma felicidade real”. Compreendo o fim em desmedida.

Bodas em Tipasa oferece uma oportunidade de avaliar se o livro “faz justiça” ao autor, depois de tanta fogueira e camadas de leitura.

Recursos literários
Bodas em Tipasa é um livro duplo, portanto, e indicado a quem se delicia com descrições literárias. Não basta ter paciência, é preciso se deleitar mesmo. Calcorrear a cartografia com a vista. Ele me lembrou velhos livros de viagem do Islã medieval, do gênero rihla, que tem entre os mais conhecidos autores o grande viajante do século 14 Ibn Battuta (viajou mais que Marco Polo). Em uma cultura que celebra a viagem como obrigação ritual, o espaço é elemento fundador. Como torná-lo visível sem descrever?

A escrita de Camus esbarrou nas referências de luz e servidão, lembremos. Ambos os livros reunidos na tradução de Sérgio Milliet e as velhas rihla dividem a sintonia com o Mediterrâneo, esse mar/país de reunião. Mas como Camus marcou a sua diferença nas relações que compreendi acima? Apreciar os recursos literários empregados por ele é uma aventura poética enriquecedora para os que se deleitam com as descrições.

A pesquisadora Michèle Monte reuniu três eixos, no ensaio Sobriété et profusion : une rhétorique du paysage dans Noces et L’été d’Albert Camus, para a percepção dos recursos estilísticos empregados por Camus em Bodas em Tipasa. Em primeiro lugar, a simplicidade de vocabulário e da sintaxe aliada à escassez de adjetos e julgamentos de valor, que deixariam o texto quase objetivo. Em segundo, o inverso: passagens ricas em personificações e metáforas onde a natureza e o humano trocam atributos. Por fim, certas escolhas lexicais e retóricas que privilegiam a intensidade em uma retórica do menos, que permite uma apreensão instintiva do objeto.

Exortação lírica
Abri esse texto lembrando que a Record reenvelopou o trabalho realizado por Sérgio Milliet nos anos 1960. Li apenas o ensaio Bodas em Tipasa em francês para uma apreciação do trabalho do tradutor. Como acabei de realizar um longo trabalho de tradução eu mesma, adoraria conversar com Milliet sobre suas escolhas, deslocamento de locuções adverbiais. Das preferências elegantes, dois exemplos: 1) longs iris bleus por “esgalgos lírios azuis” — esgalgos! e 2) Leur laine grise couvre les ruines à perte de vue por “seu cinzento lanoso cobre as ruínas a perder de vista”.

Há inclusão de preposições, quando elas inexistem no original e são desnecessárias em português. O francês não é uma língua que se aprende na escola, e vejo sempre com gratidão o esforço realizado pelos tradutores de trazer o francês para a hospitalidade linguística do português. Saúdo esse esforço realizado por Milliet, mas acho importante que o mercado editorial convide os excelentes tradutores que esse país tem formado para a revitalização dessa hospitalidade linguística.

Bodas em Tipasa reúne, enfim, dois livros bonitos à beça. Bodas, obra de juventude, e Verão, que testemunha a consolidação daquele todo de que ela é sim uma das partes mais poéticas. Se os leitores querem o absurdo, vão encontrar; se querem fazer a justiça a Camus, cuja recusa de alinhamento ideológico a tornou tão difícil entre parte célebre da intelectualidade francesa, talvez encontrem uma oportunidade para refletir; se querem o pensamento mediterrânico como entendimento e proposição, vão achar também. Encontrei exortação lírica, o perfume de velhas rihlas, um conjunto de nostalgias e sensações e conciliação. Com ele, afinal, “voltei a encontrar exatamente o que viera buscar”, apesar do tempo e do mundo.

Bodas em Tipasa
Albert Camus
Trad.: Sérgio Milliet
Record
144 págs.
Albert Camus
Nasceu na Argélia, em 1913. Transitou pela ficção, filosofia e jornalismo. O estrangeiro (1942), A peste (1947) e O homem revoltado (1951) são alguns de seus principais livros. Ganhou o Nobel de Literatura em 1957 e morreu três anos depois, em 1960, em um acidente de carro.
Marcella Lopes Guimarães

Professora Associada II de História Medieval na UFPR, membro permanente do PPGHIS/UFPR, Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2 do CNPq. Escritora e criadora do blog Literistorias.

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