It’s a long way

Uma viagem a Paris e o camundongo que roía a parede de isopor
Fontaine Igor Stravinsky, em Paris
01/06/2009

Observo o casal do outro lado do corredor, num trem entre Marselha e Paris. A mulher que acompanha o sujeito mal-humorado lê Marguerite Duras. Ele não lê nada, para poder melhor cultivar o seu mau humor: reclama em surdina do meu computador e do cachorrinho que alguém traz a bordo. Sem saber que sou uma especialista em entreouvir surdinas. Sem saber que decido escrever sobre ele.

Fantasio que ele menospreza meu aparato eletrônico (o que será que imagina que eu digito?) e aprovaria se eu lesse, como sua companheira, Marguerite Duras. Mas ele também não sabe que a França, na minha memória, sempre esteve relacionada aos livros.

Quando cheguei a Paris pela primeira vez eu tinha dezoito anos. Aluguei o apartamento de Philippe Castel, filho do sociólogo Robert Castel. O apartamento tinha paredes internas feitas de isopor que em algum momento um camundongo resolveu começar a roer, ficava nos fundos de um estacionamento de ambulâncias e a cama era feita de um retângulo de livros empilhados servindo de base a um colchão. As paredes estavam forradas de livros. Havia, entre outros, uma tal de Marguerite Duras, um tal de Marcel Proust e um tal de André Gide nas lombadas. Um francês me disse que eu devia tentar Proust. Foi uma operação de guerra.

Foi uma operação de guerra aprender na rua, nos supermercados e nos livros grátis a língua do país onde eu tinha ido morar. Mas de repente eu compreendia o poder da memória (e o valor afetivo das madeleines) através do narrador proustiano — para anos depois ler Manuel Bandeira falando do beco, que era o seu beco na Lapa, no Rio de Janeiro, e também o beco onde Swann e Odette se encontraram pela primeira vez nas páginas de Proust. Beco de dimensões simbólicas. Beco sem saída entre parreiras no interior da França, onde eu trabalhei sem muito bucolismo colhendo uvas, na altura desses dezoito anos. Beco do finado Tudo Bem, em Avignon, onde depois das uvas consegui emprego como cantora de música brasileira (Caetano Veloso: It’s a long long long way).

No beco do trem entre Marselha e Paris, tanto tempo passado, o sujeito mal-humorado coça o nariz e por fim abre um livro ele também. Um livro muito grosso de capa dura. Na minha bolsa, o livro de companhia é bem pequeno. Chama-se Lettre à D., de André Gorz (Carta a D. na edição brasileira da Annablume/CosacNaify).

Dias atrás, no avião sobre o Atlântico, comecei a ler o livro-carta de Gorz pela terceira vez. No encontro com Lídia Jorge em Marselha falou-se disso: o prazer da releitura. O gosto pelos livros que não apenas devoramos na consecutividade das páginas, curiosos pela última delas, mas que (também) gostamos de visitar no meio, a esmo, deixando que as folhas se folheiem a si mesmas. E que gostamos de reler. Os livros cujo fim podemos protelar, porque não são feitos disso apenas, de um fim, de um remate, de um objetivo, mas os livros que, como as noites de Sherazade, sustentam-se no enquanto. No durante. No gerúndio. No prazer de estar lendo, mais do que no prazer de saber o que vai acontecer ao fim.

O filósofo André Gorz foi um importante teórico do trabalho e da questão social e um dos fundadores da revista Le Nouvel Observateur. Nasceu na Áustria, se refugiou na Suíça no início da primeira guerra, mais tarde se naturalizou francês. Carta a D., seu último livro, é dedicado à sua mulher, Dorine, com quem viveu durante quase sessenta anos. Os dois decidiram se suicidar juntos em 2007, pois Dorine sofria de uma doença terminal. O livro, publicado um ano antes na França, é uma carta de amor e reparação que posso reler muitas vezes, como vim relendo durante o vôo para a França e ao longo dos fusos horários.

O homem mal-humorado no trem vira a capa do livro em minha direção e finalmente posso saber o que ele lê: Long Walk to Freedom, a autobiografia de Nelson Mandela. Peso a imagem da longa caminhada rumo à liberdade. Eu poderia sugerir uma troca de idéias com o meu companheiro de trem. Melhor não.

Chego em Paris à noite e chove. Do lado de fora da Cité Internationale des Arts homens sem casa e sem quase nada além de um saco de dormir e uma garrafa de vinho se deitam para pernoitar debaixo da marquise. Um deles tem um cachorro. Outro lê um livro, e não me surpreendo. De manhã aqueles homens não estarão mais ali. Na noite seguinte, vão voltar. Lá dentro, no auditório da Cité des Arts, acontece a quinta edição do Salão do Livro da América Latina. Na abertura do Salão, me deparo com uma palestra do sociólogo Robert Castel, que não me conhece, que nem desconfia que há vinte anos esta brasileira alugava o apartamento de seu filho Philippe em Paris (e deixava os camundongos roerem as paredes internas de isopor, e tocava fogo em parte do carpete com uma toalha em chamas que inadvertidamente havia sido usada como cúpula de abajur).

Uma madeleine totalmente personalizada vem recordar becos passados, irmãos daqueles por onde transitaram Swann e Odette, e também Manuel Bandeira. Penso em ir contar a Robert Castel essa curiosidade meio deslocada. Desisto. Na minha bolsa, ressoa uma reflexão de Le Viellissement (O envelhecimento), outra obra de André Gorz, num trecho que ele cita em Carta a D.: “É preciso aceitar ser finito: estar aqui e em nenhum outro lugar, fazer isto e não outra coisa, agora e não sempre ou nunca […]; ter esta vida apenas”. Da França dos meus dezoito anos à França dos oitenta e poucos de André Gorz e sua carta de amor a Dorine, vem a letra da canção exilada de Caetano: “Arrenego de quem diz que o nosso amor se acabou/ Ele agora está mais firme do que quando começou”.

Adriana Lisboa

Nasceu em 1970 no Rio de Janeiro (RJ) e atualmente vive nos Estados Unidos. Entre romances, contos, livros infantis e infanto-juvenis, possui mais de dez títulos publicados. Possui três títulos em poesia: Parte da paisagem (2014), Pequena música (2018 — Menção honrosa no prêmio Casa de las Américas) e Deriva (2019).

Rascunho