🔓 Lei — Legere — Ler: ressonâncias

O Brasil precisa sair do ciclo permanente e perverso de programas de formação de leitores exitosos que não duram mais que um período governamental
Ilustração: Thiago Lucas
01/02/2022

A questão é quase inevitável nos incontáveis debates que fiz por todo o país e no exterior sobre políticas e planos de livro, leitura, literatura e bibliotecas: por que há necessidade de leis para se formar um país de leitores? Em um mundo tão caótico e desobediente às leis, por que imprimir tanta energia à construção de legislações que são quase sempre desobedecidas pelas autoridades nos muitos governos arbitrários da América Latina?

A pergunta é pertinente, assim como a resposta não deve ser genérica e apoiada apenas nos pressupostos gerais do convívio civilizado na polis que deve ser garantido por normas cidadãs de participação nos bens públicos, conforme nos ensinam os grandes tratados de filosofia e ciência política que instituíram a ideia de Estado e de Sociedade modernos.

Prefiro encarar o desafio da resposta pelo pragmatismo que se exige dos militantes pela leitura e escrita que fazem essa pergunta estratégica. Afinal, deles se espera trabalho contínuo, respostas imediatas, assim como soluções rápidas para o analfabetismo funcional, para a falta de recursos generalizados para o setor, para a modernização de acervos e atendimento nas bibliotecas públicas, escolares e comunitárias, para a ausência de acesso à internet gratuita e para todos. Vejo angústia em muitos dos valorosos formadores e formadoras de leitores que, às vezes, se perguntam por que devemos lutar tanto para que a leitura e a escrita sejam protagonistas da luta política e a bandeira central dessa luta seja a das políticas públicas.

Esses questionamentos se ampliaram após a promulgação da Lei 13.696/2018, que instituiu a Política Nacional de Leitura e Escrita – PNLE e que criou pela primeira vez a obrigatoriedade de planos decenais de fomento à formação de leitores, reconhecendo o direito à leitura para todos e todas. A razão de um questionamento mais agudo é porque, conquistada a lei após anos à fio de dura luta política, ela está sendo solenemente ignorada pelo internacionalmente conhecido presidente destruidor da cultura, da educação, da saúde, entre tantos outros malfeitos.

Antes de responder diretamente, lembro aos interlocutores que é importante refletir porque temos tantas dificuldades em estabelecer um debate com os poderes executivos e legislativos, em todos os níveis da federação, na construção dessas leis para o livro e a leitura, assim como, após estabelecidas, termos que seguir lutando para que essas mesmas leis sejam implementadas.

Não seriam essas leis peças fundamentais no combate à desigualdade estrutural a qual está submetido o povo brasileiro há séculos? O quanto de resistência existe, nos círculos políticos e burocráticos dos governos federal, estaduais e municipais, aos avanços e aos caminhos possíveis que constroem novos leitores? No país campeão da desigualdade, que acumula recordes históricos de direitos negados em múltiplas áreas, não podemos ser ingênuos e concluir que as dificuldades enfrentadas são apenas de incompreensão e de falta de prioridades com a cultura e a educação, alicerces do letramento. A barreira da exclusão é real, defende interesses seculares e se materializa fortemente quando se reivindica, por imposição legal, a escala de alcance de programas e ações pró-leitura que somente a política pública pode atingir, chegando a milhões e não apenas a centenas ou a milhares.

Essa última reflexão é importante para entendermos o contexto da resposta à pergunta do porquê devemos dispensar esforços por leis nacionais, estaduais e municipais que garantam o acesso e o direito à leitura e à escrita. O fundamento é que, antes de tudo, a leitura é um instrumento de emancipação, de liberdade, de autonomia intelectual dos seres humanos e, exatamente por isso, é um direito inalienável e uma conquista civilizatória que não pode mais ser negado, mas que não será conquistado sem luta política.

A resposta pragmática que procuro dar aos interlocutores é que os poderes públicos só agem verdadeiramente e deixam de fazer proselitismo político quando executam programas e ações baseados em dois procedimentos visíveis e identificáveis: executam sob autorização de marcos legais que impõem a ação pública; destinam recursos financeiros e humanos à execução das ações.

Sem esses dois procedimentos — marcos legais que determinam e dinheiro e pessoal para execução —, toda ação governamental é retórica e redunda em lugar nenhum, paralisada no meio do caminho. Esse raciocínio serve para os programas de livro e leitura, e para pontes, estradas, hospitais, escolas e todo o restante das ações de governo.

Ter uma legislação adequada é necessidade inalienável do processo de ação efetiva do Estado democrático. Me dei conta disso no primeiro semestre de 2006, quando recebi dos ministros da Cultura e da Educação o convite para assumir a coordenação do PNLL, recém apresentado publicamente com grandes dúvidas das equipes de governo em fevereiro daquele ano. Em maio de 2006 não havia nenhum marco legal que sustentasse o que foi apresentado publicamente, estávamos a quilômetros de qualquer ação política consequente. Minha exigência para aceitar o encargo, com a concordância das equipes ministeriais, foi dar legalidade ao ato político legítimo de se construir um plano nacional de leitura, dando consequência às centenas de ações pró leitura que vinham sendo publicitadas país afora desde 2005, com o Ano Ibero-americano da Leitura, o Vivaleitura. Havia muito barulho bom e animador, mas nada de sólido e viável na perspectiva de uma ação pública permanente do Estado brasileiro. Neste contexto, foram publicadas em agosto as primeiras duas portarias interministeriais que instituíram o PNLL e sua primeira estrutura diretiva, inclusive o cargo (pro bono) de Secretário Executivo que tive a honra de exercer até março de 2011.

Imediatamente após as portarias, e com a consolidação do texto do PNLL em 19 de dezembro de 2006, constatamos que seria preciso ampliar em muito a base legal para que o MinC e o MEC pudessem ouvir o que solicitava o Plano e agir em consequência com programas e ações públicas que promoveriam sob a estratégia do PNLL. As portarias ministeriais são o primeiro degrau da institucionalidade no Estado e a enormidade da tarefa de se realizar um programa consistente de letramento no país necessitava muito mais do que aquele marco legal. Junto com o avanço da ideia e de programas para se formar um país de leitores que o PNLL materializou, seguiu-se a discussão que amadurecia a necessidade de uma Política de Estado com essa finalidade.

A própria ideia de Política de Estado evidenciou a necessidade e a verdadeira dimensão da lei que se passou a almejar: fazer o país sair do ciclo permanente e perverso de programas e ações de formação de leitores exitosos que não duravam mais que um período governamental. Típico de países democraticamente atrasados, a chaga da descontinuidade que atingiu e ainda atinge tantos programas bons e fundamentais no país precisava e ainda precisa ser estancado. Na área do livro e da leitura basta lembrar os últimos 30 anos seguidamente descontinuados, desde a implantação do PROLER e, mais recentemente, do programa Mais Cultura, que viabilizou milhares de ações de formação de leitores e bibliotecas motivados pelo PNLL no âmbito do MinC. Descontinuidade que se repetiu e se repete na educação, hoje com maior intensidade no conturbado MEC.

Não foi sem razão, e nem por acaso, que os esforços, desde o início dos atuais golpes à democracia em 2016, se voltaram para instituir a Lei 13.696/2018 — PNLE, que explicita em suas duas primeiras diretrizes a universalização do direito ao acesso ao livro, à leitura, à escrita, à literatura e às bibliotecas e reconhece a leitura e a escrita como um direito de todos os brasileiros e condição necessária ao exercício pleno da cidadania. Nossa primeira Política de Estado, permanente, para formar leitores.

Neste 2022 voltarei a ela e às suas múltiplas dimensões.

José Castilho

É doutor em Filosofia/USP, docente na FCL-Unesp, editor, gestor público e escritor. Consultor internacional na JCastilho – Gestão&Projetos. Dirigiu a Editora Unesp, a Biblioteca Pública Mário de Andrade (São Paulo) e foi secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (MinC e MEC).

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