Poemas de Álvaro Miranda

Leia os poemas "sem titulo", "sem titulo", "Eles não sabem se matar uns aos outros" e "As feras dentro do bolso"
Álvaro Miranda, autor de “Manual para aforismos insolentes “
01/02/2022

Onde fareja o rastro humano há o sangue espesso, as súplicas,
as mãos em penhascos — perdidas. Há escombros, asas
em convulsão no tempo, a longa esteira dos reinos,
estas muralhas caídas, catedrais e floretes de vitrais sem cores.
Há infâmias escondidas como se a história acontecesse
a partir de uma certa idade sem infâncias. Onde fareja
o que se desfaz há também perfídias e incêndios,
como atributo exclusivo da escória e seus metais.

Antes o vórtice, não os jardins palacianos,
nem as cidades simétricas. Antes multidões em desvario,
ruas erráticas, veias grossas durante o grito,
o punho fechado, inferno nos ângulos do céu,
penhascos imponderáveis. A água dos olhos
rompendo os diques dos outros, os outros,
quando somos além de nós mesmos.

Eles não sabem se matar uns aos outros*

Eles não sabem que seus olhos têm lágrimas
misturadas de sangue, eles não sabem.
Não vêm nem vão pela luz de coisas oblíquas.

Nem imaginam o que existe por detrás do tempo
e destas mãos que vieram para estrangulá-los.

Eles nem desconfiam por que este verbo nunca existiu.
Este verbo por entre luz e sombras do seu mundo.

Eles não sabem por que os olhos dos outros
brilham diante da sua presença.
Nem imaginam a viagem de ser antes e depois.
Eles nem imaginam o espanto diante da sua beleza,
do intenso e do extremo que o desejo faz
nesses abismos sem fundo.

Eles não sabem que seus olhos
têm apenas um território, o sem nome do amor,
este que foi transformado em metais, corrosão e destroços.

(*) Frase de Cristóvão Colombo, segundo François Laplantine in Aprender antropologia, editora Brasiliense, 1991.

As feras dentro do bolso

Remexo os bolsos,
mas não sinto minhas feras.
Caminho na direção dos riscos
e rabisco sua procura.
Estou guardado nos detalhes
menos aparentes,
na chave do apartamento
que não posso perder,
na carteira com documentos
que me dizem vagamente quem sou,
um ser quase identificável,
um lenço de emergência.

Remexo meus passos
para o encalço das horas incertas.
Sempre me despreparo
para o grande Acontecimento:
não ser e vir a ser outro.

Reconheço-me nos poliedros
do dia que se veste apenas de uma face.
Todas as feras se guardam na contenção.
E continuo

Álvaro Miranda

Nasceu em São Paulo (SP), em 1957. Está radicado no Rio de Janeiro (RJ). É autor de cinco livros de poesia: Retrato do soneto quando pólen (edição de autor), A casa toda nave cega voa, Diorama, Pra que serve a palavra nunca e Estranho país que teus olhos já não procuram mais (todos pela 7Letras). Publicou também Manual para aforismos insolentes (2021), livro de fragmentos ensaísticos em prosa poética.

Rascunho