Edição: Luís Henrique Pellanda
A escritora Nélida Piñon foi a convidada da edição de maio da quarta temporada do Paiol Literário — projeto desenvolvido pelo Rascunho em parceria com o Sesi Paraná e a Fundação Cultural de Curitiba. Nélida nasceu no Rio de Janeiro, em 1937. Formada em jornalismo, ocupa a cadeira número 30 da Academia Brasileira de Letras. Em mais de cem anos de existência da instituição, foi a primeira mulher a integrar sua diretoria e a presidir a ABL. Em 2005, foi a primeira escritora de língua portuguesa a receber o Prêmio Príncipe de Astúrias (Espanha). É autora de cerca de 20 livros, entre os quais Vozes do deserto, A casa da paixão e A república dos sonhos. Recentemente, lançou pela Record Coração andarilho, uma obra com memórias de sua infância.
No dia 5 do mês passado, no Teatro Paiol, em Curitiba, durante o bate-papo mediado pelo escritor e jornalista José Castello, Nélida Piñon falou sobre sua infância no Brasil e na Galícia, sua formação literária e seu amor pela oralidade e pelas diferenças culturais, relembrou sua amizade com escritores como Philip Roth, John Updike, William Styron e Clarice Lispector e discorreu sobre feminismo, engajamento político e o papel da mulher na literatura.
• Uma invenção humana
Vejo a literatura como um instrumento excepcional da nossa civilização. Ela ajuda a esclarecer o mundo. Quem nós somos? Quem nós fomos? Lendo a Ilíada, você pode imaginar quais foram os sentimentos de Aquiles ou de Príamo. Você se pergunta: “Por que esse fervor pela narrativa?”. Porque o ser humano precisou narrar, para que os fatos da vida, da poética do cotidiano, não desaparecessem. Enquanto o ser humano forjava a sua civilização, dava combate aos deuses e procurava entender em que caos estava imerso, ele contava histórias. Para que nada se perdesse. Não havia bibliotecas. No caso de Homero, os aedos — e quase podíamos intitulá-los os poetas da memória — memorizavam tudo para que os fatos humanos não se perdessem. E, assim, a angústia em relação à apreensão da vida real, o real humano, visível, intangível, esteve presente em todas as civilizações. Nas nossas Américas, por exemplo, houve entre os incas uma categoria social, a dos amautas, que tinha por finalidade única memorizar. Memorizar para que os povos não se esquecessem das suas próprias histórias. Quer dizer, a literatura não foi uma invenção dos escritores, gosto muito de enfatizar isso. Foi uma invenção humana.
• Somos singulares
Milhões de pessoas já leram Dom Quixote. Milhões, em diferentes línguas. Mas é o mesmo livro para diferentes leitores. Isso prova que a literatura dá visibilidade a quem somos, a nossos sentimentos mais secretos, mais obscuros, mais desesperados, às esperanças mais condicionais do ser humano. E a literatura conta histórias porque os sentimentos precisam de uma história para que você se dê conta deles. Então, a literatura pensou em dar conta de quem somos, dessa nossa complexidade extraordinária. Porque somos seres fundamentalmente singulares. E, por isso, a literatura é singular.
• Leitores sedutores
Se vocês tiverem o hábito de ler, vão ingressar em um mundo tão fascinante que, de imediato, os fará se tornarem criaturas sedutoras. Porque a leitura também nos dá uma condição erótica. Com as palavras na mão, você se torna uma pessoa sedutora. Uma pessoa afásica tem que ter um rosto belíssimo para poder seduzir. Já um feinho, ou uma feinha, se tiver o dom da palavra, se for capaz de imantar platéias, pessoas ou amores com a palavra… Não é forçoso dizer que a leitura nos obriga a abrir os olhos. Com ela, você vê o que não tinha visto até então, você se torna muito mais crítico. No entanto, através da leitura, você vai criando o seu conceito, o seu código de consciência. Eu, por exemplo, pude entender o que era a minha consciência — mesmo que de forma precária — quando li Crime e castigo, de Dostoievski. Foi um choque profundo na minha vida. Então, quem somos nós sem a leitura, sem folhear a intimidade de um livro? E essa é uma intimidade imensa, como a intimidade da cama, talvez. Ou talvez não, pois a cama se divide, e o livro não. É só você e ele: o livro, os ditames do livro, a imaginação do livro. Você voa enquanto o texto voa com você.
• Coração andarilho
Desde menina, eu sou eu. Sou um coração andarilho. Sempre fui uma grande aventureira. Quando criança, meu ideal de vida era pular a janela e sair mundo afora, sem jamais dormir uma segunda noite debaixo do mesmo teto. Uma vida extraordinária. De certo modo, quis ser escritora atraída pela aventura. Eu era leitora de Karl May — e de Monteiro Lobato, também —, e achava que a literatura era escrita por alguém que vivera as aventuras que contava. Então, eu queria viver aquelas experiências, aquele mesmo sentimento de aventura ao entrar numa sala, numa casa, numa festa, queria ter a sensação de que ocorreria algo que mudaria minha vida para sempre. Era uma disponibilidade extraordinária a que eu tinha. Hoje, já não tenho mais isso, não. Não sinto nada. Entro e, se eu for surpreendida, será uma graça do Espírito Santo.
• Tudo era meu pai
Meu pai, Lino, me estimulou demais. Ele ficava perplexo diante daquela filha que queria tanto e não falava o tanto que queria. E, para controlar essa minha avidez, essa curiosidade insaciável, ele não me dava mesada. Era o único modo que o coitadinho tinha para me controlar. No mais, eu era uma menina bem educada, que foi crescendo, sempre desejosa de ser escritora, ainda que ignorasse o sentido ético e estético da escritura. Eu não tinha noção alguma, mas já fazia o meu jornalzinho, com minhas ilustraçõezinhas, e o vendia para o meu pai — quer dizer, já tinha noção de direitos autorais (risos). E o meu pai comprava cada exemplar. Tudo era meu pai.
• Hino à invenção
Se vocês não acreditarem no que estão lendo, não haverá literatura possível. Deve haver uma aliança entre o leitor e o texto que está sendo lido, digerido. Quanto a isso, Karl May me causou uma impressão extraordinária. Ele era um homem culto, na Alemanha do século 19, que nunca tinha ido aos Estados Unidos. Portanto, não conhecia o Oeste americano. Mas criou dois grandes personagens, um representando a velha Europa, Old Shatterhand, um herói do Oeste americano, e Winnetou, um apache que encarnava a nobreza dos índios de lá. (…) Em certo momento de uma história, Old Shatterhand pergunta: “Winnetou, onde estão os assassinos? A quantas horas de nós, mais ou menos?”. E Winnetou solene, desce do seu cavalo, deita-se, põe o ouvido no chão e fica ali por algum tempo. Depois, se põe de pé e, com aquela voz de chefe, diz: “Estão distantes de nós tantas horas”. E completa: “São tantos cavalos”. Winnetou chega até a definir que cavalos seriam aqueles: garanhões, mustangues, etc. Mas o que mais me impressionou — e agora nem sei mais se estou inventando isso — é que ele também disse o seguinte a Old Shatterhand: “E a um dos assassinos falta o braço direito”. Como faltava um braço ao assassino, seu cavalo não fazia pegadas tão profundas na terra. E aquilo, para mim, era um hino à capacidade de inventar. Você pode aceitar qualquer coisa, desde que você seja um aliado do texto. Tudo é possível na criação, desde que haja talento e credibilidade.
• Galega e brasileira
Percebi muito cedo que eu era uma mulher de duas culturas. Eu não tinha uma cultura só. Desfrutava os benefícios de duas culturas próprias, com suas respectivas miscigenações e idiossincrasias, com línguas distintas e imaginários diferentes. Desde menina, me percebi habitante de uma casa diferente. Porque uma menina que comia polvos com oito pernas não podia ser a mesma que comia feijão com arroz. Minha imaginação era atada a um animal pré-histórico que rastejava nas areias do oceano e que, para ser comido, precisava antes levar uma surra no tanque. Aquilo, para mim, era perturbador, mas eu o aceitei com naturalidade. Fui vivendo com o que o mundo me dava. Os suspiros da minha avó eram muito delicados, talvez tivessem a nostalgia da distância atlântica. Eu até disse, no meu discurso de admissão na Academia Brasileira de Letras: “Advogo que sou uma brasileira recente”. Isso, até aquela época; depois, eu já não achava tanto. Mas me senti, durante toda minha formação, uma brasileira recente, o que foi muito importante para mim. Eu era uma cristã nova, mas não tinha abjurado nenhuma fé. Eu estava construindo uma fé.
• As diferenças
Estou sempre viajando e me sinto bem no mundo. Não dou as costas ao lugar que me tem como visita. Eu me sinto bem. Estou bem entre vocês. Se de repente houver algum mal-entendido, pode haver alguma tensão, mas sei que tudo é contornável. E, se não for contornável, lamento. Sou aguerrida na resistência, mas não sou uma mulher que briga por razões que minha razão já superou. Tento ser cúmplice da vida. Só posso reagir diante da violência, mas, diante das diferenças que predominam entre nós, não reajo. Compreendo, absorvo e levo para casa o padrão da diferença, para poder pensar sobre ela.
• A infância na Galícia
Levamos para a Galícia baús, baús e mais baús com goiabada, marmelada, café, sabonete. Tudo que não perecesse, nós levávamos. Chegamos lá em novembro, no frio, naquela neblina. Fiquei horrorizada. Meu pai estimulava o meu afeto por aquela nova raça, pelos nossos parentes. Ele dizia: “Olha a Fulana”. E era todo mundo vestido de negro, umas mulheres sinistras que, quando me abraçavam, usavam uma língua que eu não entendia, que achei truculenta, uma língua ruidosa, cuja origem só depois fui entender e amar. Amei a suavidade da língua galega, amei aquele país. Como amo profundamente, claro, a minha terra, o Brasil. Tanto que, até hoje, não aceitei o passaporte da União Européia. Eu quero o meu verdinho. Mas a Galícia foi fundamental à minha formação. Dilatou o meu imaginário, o meu sentimento narrativo. Porque os galegos são grandes narradores orais, além de grandes escritores. Quando narram, você tem a sensação de que nenhuma história está autorizada a chegar ao seu final. A história se prorroga. E é verdade: a grande história não termina. Acaso vocês terminam de ler a Ilíada?
• Oralidade
Sou muito atraída pela fala do outro, pela oralidade, pela tradição da oralidade. A oralidade está presente nas nossas opções estéticas, na nossa maneira de escolher quase que moralmente um texto. Ela vem de longe, e dela você extrai o material com o qual vai compor a sua história, o seu pensamento literário, mas, evidentemente, através do que se chama linguagem. A oralidade me comove muito. Sempre digo que nós, escritores, devemos muito àquelas pessoas do povo que nos foram cedendo um material quase que ilícito, no melhor sentido, para que pudéssemos escrever. São seres que abriram as veias de seus corpos sociais para que pudéssemos escrever. É uma doação total. Tanto que as pessoas tendem a dizer: “A minha história daria uma narrativa”. É certa ingenuidade, mas uma ingenuidade generosa. (…) Eu homenageio esse sentimento da oralidade no meu romance A república dos sonhos, em que eu forjo uma personagem chamada Xan, um galego culto, modesto, um camponês que tinha como primeira vocação contar histórias. Ele gostava de ter um círculo não de leitores, mas de ouvintes, e, quando alguém mostrava certo desinteresse por sua história, ele adicionava ingredientes novos ao que estava contando. E, se alguém demonstrasse impaciência porque a estória se prolongasse em excesso, ele dizia: “Quem não tem paciência não merece ouvir histórias”. Então, Xan é um personagem muito admirado. As pessoas gostam muito dele. É o símbolo dessa oralidade, que é o que costura o texto. O que salva a alma do texto é essa sua conexão com a alma popular.
• Mundo irreconhecível
Eu me interesso por tudo. E espero poder ser assim por muitos anos. Já disse a um amigo, muito íntimo: “Se você sentir que minha cabeça não está a mesma, me encerre em algum lugar”. E ele, sério, como se eu tivesse lhe delegado uma missão: “Mas como é que nós vamos fazer?”. Não sei. Não me exponham a um mundo que eu não reconheço mais.
• Daniel e o anagrama
Primeiro, o meu avô Daniel ficou muito aborrecido. Era um homem de temperamento muito forte e desejava que a sua netinha se chamasse Pilara. Nome horrível: Pilara Piñon. Então, uma de minhas tias amadas, linda, o enfrentou: “O senhor teve tantas filhas e nunca usou esse nome. Essa menina vai se chamar Nélida”. (…) Anos depois, pouco antes de eu tomar posse na Academia, um jovem mineiro, Tadeu, disse que seu sonho era me conhecer. Eu disse a ele: “Se o seu sonho é esse, meu bem, é muito fácil realizá-lo. Venha até aqui”. Ele almoçou na minha casa, me fez algumas perguntas e, depois, me escreveu: “Que coisa interessante, essa sua família. Resolveram tudo com esse anagrama perfeito, Nélida Piñon”. Aí, fui ver aquilo correndo. E era isso mesmo: Daniel e Nélida. (…) Esse avô, Daniel, se apaixona por sua neta e a leva a todos os lugares. E me dizia para olhar as fachadas arquitetônicas, ouvir o movimento do vento. Tudo ele me ensinava. E me ensinava, muito, a comer: “Aprenda, sobretudo, a devolver pratos. Não gostou, devolva!”. (…) Uma vez, eu estava na Hacienda de los Morales, uma fazenda que, devagar, foi sendo incorporada pela expansão urbana do México, uma fazenda linda, onde as pessoas fazem festas e jantares. Lá, uns 40 intelectuais mexicanos me ofereceram um almoço lindo. No final, desenvolveu-se o que eles chamam de tertúlia, uma conversa informal, com charutos, bebidas, conhaques e digestivos, e começaram a me fazer perguntas. Uma delas veio de um senhor: “Cuéntame de seu avô, de quem você fala com tanta devoção”. Comecei a contar: “Meu avô me ensinou até a preparar o charuto dele. Eu o cortava e servia para ele com um conhaque, para que ele o mergulhasse nele. Às vezes, depois de meio caminho já andado, fumado meio charuto, ele o mergulhava num conhaque”. Aí, me ocorreu pela primeira vez o seguinte: há aquele livro, Gigi, da escritora francesa Colette. Era a história das grandes cortesãs de Paris, que vão educando filhas e sobrinhas para que venham a ser grandes cortesãs também. Então, eu lhes disse: “De certo modo, meu avô, sem saber, me ensinou a ser uma grande cortesã”.
• Meus grandes mortos
A gratidão. Se eu posso ter uma virtude, é essa. Porque a gratidão e a lealdade são muito importantes. Quando me telefonaram, de forma secreta, e me disseram que eu seria a vencedora do Prêmio Príncipe de Astúrias, recebi a notícia com muita serenidade, sabendo de que se tratava do segundo grande prêmio literário internacional. Fui para o meu escritório, terminei uma coisa que tinha que fazer e, depois, dediquei um tempo a relembrar meus grandes mortos. Não só da família, que me deu tanto, mas também dos grandes amigos. Me lembrei até sabe de quem? De Afrânio Coutinho, que foi muito querido, muito generoso comigo. Foi assim: repassei a minha vida, agradecendo.
• Amizade não é terremoto
Eu gostaria de entoar um hino à amizade. Acho que a amizade é um patrimônio excepcional. Acho a amizade mais importante que o amor. Porque os amores se sucedem. Infelizmente, o amor não é eterno — mas a amizade pode ser. A amizade tem certos desprendimentos que o amor não tem. Na amizade, não há interesse na carne. E a carne é muito revolucionária e perturbadora. O desejo que permeia a relação amorosa é uma coisa de você não saber como se situar no mundo. É um terremoto. E a amizade não é um terremoto. Ela pode ser serena e intensa, mas, de algum modo, lhe oferece estabilidade. É uma aposta que você faz no outro, sem maiores interesses. Não está em pauta o dinheiro, não está em pauta a satisfação sexual, a procriação, nada. Sempre acreditei na amizade. E quis a vida que, desde muito cedo, fui conhecendo pessoas fascinantes. Me dei muito com grandes cantoras. Conheci Maria Callas. E Renata Tebaldi tinha muito afeto por mim. Cheguei a pertencer a um grupo — olhem só as veleidades da juventude — de apaixonados por ópera.
• Ou pianista ou escritora
Eu nunca quis estudar nada, só quis ser escritora. Inclusive, uma vez, eu estava em uma mesa, fazendo assim, como se tocasse piano, e falei: “Minha mãe, quero tocar piano”. E ela perguntou: “Minha filha, você quer ser escritora ou pianista?”. Porque ela já tinha um fracasso na família, minha tia Celina, que eu quero muito bem. Ela tinha feito o curso completo na Escola Nacional de Música, mas não tocava mais nada. Então, minha mãe disse: “Você escolhe: ou pianista ou escritora”. E eu só queria ser escritora. Mas até hoje tenho uma coleção ótima de balé, de ópera. E escrevia cartas para os grandes críticos de balé. Tudo isso foi me preparando para a literatura. Eu não me aproximava de nenhum escritor. Só fui conhecer alguns escritores de perto em 1960. A própria Clarice Lispector. Fui levada a casa dela sem saber. E Clarice, com aquele temperamento especial, aceitou me dar isto de presente: a oportunidade de conhecê-la.
• Clarice
Um ou dois anos antes de conhecer Clarice, comprei na Kopenhagen um carrinho com ovinhos de chocolate e escrevi no cartão: “Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo”. Não assinei e deixei o carrinho na casa dela, porque não queria, não desejava aceitar a condição de fã. Queria, um dia, ser amiga de Clarice, e em igualdade de condições, com o devido respeito. E isso aconteceu. Foi uma amizade de 18 anos, que só terminou com a morte dela. Fiquei com ela, no hospital, os últimos 40 dias, segurando sua mão esquerda, e a Olga Borelli, sua mão direita. Posso falar sobre isso agora. Antes, não falava sobre Clarice. Me dava muita dor.
• Três milionários
Conheci Philip Roth, William Styron e John Updike. Philip Roth me levou para jantar e fez um vaticínio interessantíssimo. Na época, ele era uma promessa, mas ainda não tinha essa dimensão, essa grandeza de hoje. Ainda não havia escrito O complexo de Portnoy, e sim Adeus, Columbus. Naquele momento, quem estava fazendo um grande sucesso — e que depois eu também conheci, mas muito pouco — era Saul Bellow, com Herzog, o primeiro romance de alta categoria que também se tornaria um best-seller. Isso era uma novidade. E estávamos, Roth e eu, conversando num restaurante, quando ele me disse: “De agora em diante, será assim. Os próximos a fazerem um milhão de dólares serão John Updike, William Styron e eu”. E todos esses três, em xis anos, fizeram um milhão de dólares, se tornaram best-sellers. Styron, com As confissões de Nat Turner; Roth, com O complexo de Portnoy; e Updike, com Casais trocados.
• Letras e armas
Conheci muitos escritores, enfim. Companheiros de letras, companheiros de armas. E eles devem ter imaginado que eu seria — desculpem dizer isso a vocês — digna dessa amizade. Não detectaram em mim oportunismo, isso é muito importante que se diga, mas, sim, igualdade de condições, de trabalho. Embora eu fosse, como gosto de dizer, uma brasileirinha. O Brasil ainda é muito desconhecido, quanto mais naquela época. Então, eu sempre esperava por oportunidades. E elas aconteceram. Eles foram mantendo essa nossa amizade, um convívio muito bonito e muito generoso da parte deles, e acho que da minha parte também, porque eu lhes levei o espírito de uma mulher independente, que buscava também o reconhecimento da dignidade literária de uma mulher. Eles sabiam que eu era feminista, sabiam também que eu era alguém que não avançava, que não ia além de minhas medidas, e tudo isso foi beneficiando a nossa amizade.
• Rede de ilusão
Eu não queria ser só uma nacionalista exagerada. Queria ser uma brasileira, assim como eu sou. Queria saber tudo do Brasil, queria me formar. Levem em conta que eu era uma imigrante de origem. Isso eu tive muito presente: eu era recente no Brasil e me cabia descobrir as contrafacções brasileiras. Essa costura me ajudou a pensar o país. Lembro de haver dito, uma vez, ao meu querido Ignácio de Loyola Brandão, um homem combatente: “Virão tempos negros, Ignácio”. Sabíamos que a democracia estava vindo, e ele me perguntou: “Mas por que você diz isso?”. E eu: “Porque fomos amigos, íntimos, generosos uns com os outros, mas até agora. Não seremos mais, vai haver uma grande batalha pelo poder literário e, se não tomarmos cuidado, vamos cair nessa armadilha. Além do mais, a prática democrática virá com falhas imensas, então temos que estar muito atentos”. Então, tudo isso eu vivi atenta. Mas acho que fomos caindo numa rede de ilusão, achando que o mundo estava resolvido. As próprias mulheres, hoje em dia, dispensam o feminismo. Como se fosse possível dispensar um movimento ainda em pauta.
• Geladeiras e literaturas
Como é que podemos ser um país que ainda tem não sei quantos milhões de analfabetos ou de praticamente analfabetos, alfabetizados funcionais? É um país ainda muito marginalizado. Como é que podemos ser prudentes nos nossos anseios libertários? Ficando na questão do escritor, o escritor é ainda marginalizado. Nós sustentamos a obra literária, nós damos ao Brasil, à custa de nosso esforço, de nosso tempo e de nosso dinheiro, uma literatura que é um patrimônio concreto, e não temos nenhuma facilidade. Cinqüenta, sessenta anos depois da nossa morte, nossos livrinhos caem em domínio público. Quer dizer, passam a ser domínio da literatura brasileira. E, em um país sem literatura, não dá para vender nem uma geladeira. Para ser original, uma geladeira tem que ter uma literatura atrás dela. (…) Então, gostaria dizer que os novos discursos devem ser retomados levando-se em conta o ecossistema, a questão da água, a questão ambiental e a dos animais, que hoje em dia é um dos temas que mais me atraem. Acho que o sistema da linguagem está perdendo substância. É uma sangria léxica, tudo isso, a escola brasileira, que é da pior categoria, a escola pública. Há debates que devem ser feitos e levados adiante.
• Estética adocicada?
Se você for analisar, o trato que a crítica ensaística e que o leitor dedicam à mulher é inferior ao que dedicam ao homem. Ao homem, basta escrever um bom romance para ser aprovado, às vezes um romance médio. Uma mulher, para ser tida como grande escritora, precisa fazer uma grande obra e, mesmo assim, não terá tantos leitores quanto os homens. É verdade. Não há na sociedade brasileira um interesse profundo pela produção da mulher. Como se o que a mulher pensa fosse alguma coisa que pudesse ser naturalmente desqualificada, ou como se fosse uma estética edulcorante, adocicada.
• Um ser total
Eu, por exemplo, me rebelo. Quer dizer, eu me rebelo, eu me oponho, porque sei que faço uma literatura de primeira. Não é por vaidade que digo isso, é puro reconhecimento prático. Mas quando digo que sou uma feminista, não quero dizer que meu livro seja feminista. Isso é outra coisa. Agora, vocês podem me perguntar o que é que eu sou quando escrevo. Eu sou um ser total, sou alguém que acredita naquela vocação protéica de Proteu, não das proteínas. Eu sou homem, eu sou mulher, eu sou bicho, eu sou vegetal, eu sou mineral. Não sendo tudo isso ao mesmo tempo, eu seria um ser pela metade. Vejam, por exemplo, Flaubert, e a grandeza de Madame Bovary. Ele diz: “Eu sou Ema”. Quer dizer, é uma alternância de carnes, de sexos, de espíritos.
• Novidades arqueológicas
A minha posição é a de quem olha o horizonte humano e recolhe o que há de disponível. Vou fazer a grande filtragem através da história que conto e através da escritura, da coisa mais mágica que é a linguagem. A linguagem é o grande ditame. Agora você, sendo mulher e, portanto, alguém egresso de um mundo obscuro, de um mundo marginalizado, de um mundo doméstico sem maiores perspectivas criadoras, e sendo também alguém que chegou muito recentemente ao mundo da cultura — porque essa é a verdade, até bem pouco tempo atrás, muitas mulheres eram analfabetas —; sendo tudo isso, você ganha na sua psique, porque toda psique humana é arqueológica. Ao longo dos milênios, a mulher esteve presente em todos os instantes da história, embora posta de lado. Mas ela recolhia pedaços, e com eles, com essas sobras, precisou intensificar a invenção para completar o que lhe faltava. Então, tendo esses resíduos em sua memória, e que são excepcionais, ela também guarda nas suas idiossincrasias, em seu repertório pessoal, aquela noção de que foi segregada. E esse elemento é muito interessante para a ficção. Porque você vai colocá-lo dentro do texto. Cada ser enriquece seu texto com sua experiência pessoal, com a experiência da sua língua, com a experiência do seu país, com a experiência do seu tempo. Tudo isso faz com que o seu texto se distinga. E o texto da mulher pode ter, em suas entranhas, essas novidades arqueológicas.