Vir ao Rio de Janeiro uma vez por ano significa não apenas rever família e amigos, mas também os livros que ficaram morando na cidade, maravilhosa e flechada como seu padroeiro São Sebastião, quando eu arrumei as malas no fim de 2006 e parti. Já me mudei do Rio três vezes, mas o Rio não é uma cidade da qual a gente efetivamente se mude, porque ela vai junto, como se fosse um documento de identidade na carteira. E a gente leva o Rio por aí afora, na pele, nos olhos, e todas as coisas são em contraponto ao que seriam no Rio. Melhores, piores, em geral muito diferentes.
Seja como for havia, no fim de 2006, ao arrumar as malas, a possibilidade de levar comigo um número muito limitado de livros. Ao escolhê-los, passei por uma experiência dolorosa (como seria possível seguir sendo feliz, ou tentando, sem aqueles amuletos que moravam nas minhas estantes?) e curiosa (seria possível seguir sendo feliz, ou tentando, sem aqueles amuletos que moravam nas minhas estantes).
Mas voltar é revê-los. E tem esse caráter de festa. Eles estão mais gordos e inchados por causa da umidade do Rio de Janeiro. Estão amarelados. Em silêncio, devem pensar que eu também envelheci um pouco. Não me lembrava mais que havia ali um estudo chamado O zen e a poética auto-reflexiva de Clarice Lispector, nem a coleção completa e ilustrada das fábulas de Andersen. Queria mesmo reler Jerusalém, de Gonçalo M. Tavares, S/Z, de Roland Barthes, e O vale da paixão, de Lídia Jorge. E como criança diante da bandeja de doces numa festa, nem sei por onde começar.
Todos esses livros, cada um deles uma viagem distinta, moram atualmente em estantes nos corredores de uma casa no bairro de Laranjeiras, onde eles escutam o carro do comprador de ferro-velho. Onde também escutam os policiais do Bope correndo embalados por seus gritos de guerra às seis horas da manhã — “vai correr sangue adoidado e eu vou dar gargalhadas, ha ha ha!” (mal necessário? Pura aberração nascida de outra aberração. Daquelas que vão ingressando no cotidiano até o momento perigoso em que viram normalidade.)
Nas estantes, os livros envelhecem em silêncio e fileiras mais ou menos desorganizadas. Acatam o tempo e envergam as capas. Um dia, serão: levados na mala? Emprestados e esquecidos? Vendidos para um sebo? Destruídos pelo sopro lento do desuso? Transformados em algo esquisito e incongruente, num contraponto aos gritos de guerra do Bope? Penso neles como corpos que contêm alguma coisa, que contêm uma espécie de texto-alma, única metafísica que me agrada por inteiro. E o excesso do tempo, que desfaz tudo, vai desfazer a carne de papel desses corpos também, cedo ou tarde, mais cedo do que tarde. Mas ainda assim haverá uma décima ou uma vigésima-quinta edição de A louca da casa, de Rosa Montero, rolando (rodando) por aí — ou então sua versão de juventude eterna num desses leitores digitais hi-tech estilo Kindle.
Sigo viagem entre eles. Pesco uma edição portuguesa da Poética de Aristóteles, da época da faculdade. Quanta coisa naquela capa inteiramente branca. Num lugar inapropriado, surpreendo Manuel Bandeira na seleção de Ivan Junqueira, Testamento de Pasárgada. Elegia de verão (não é verão, mas e daí):
O sol é grande. Ó coisas
Todas vãs, todas mudaves!
(Como esse “mudaves”,
que hoje é “mudáveis”
e já não rima com “aves”.)
O sol é grande. Zinem as cigarras
Em Laranjeiras.
Zinem as cigarras: zino, zino, zino…
Como se fossem as mesmas
Que eu ouvi menino.
Ó verões de antigamente!
Quando o Largo do Boticário
Ainda poderia ser tombado.
Carambolas ácidas, quentes de mormaço;
Água morna das caixas-d’água vermelha de ferrugem;
Saibro cintilante…
O sol é grande. Mas, ó cigarras que zinis,
Não sois as mesmas que eu ouvi menino.
São outras, não me interessais…
Dêem-me as cigarras que eu ouvi menino.
(Manuel, preciso te contar que sobre o Largo do Boticário, enfim tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural em 1987, li no jornal esta semana que anda sujo e mal-conservado. O Rio Carioca tem um cheiro ruim, ali. As árvores precisam de poda. Os azulejos se quebram e caem das casas do beco.)
O Rio de Janeiro continua sendo. O Rio de janeiro, fevereiro e junho, de Manuel Bandeira e João do Rio, também de José Eduardo Agualusa, Sérgio Sant’Anna, Rodrigo Lacerda, Marcelo Moutinho, Ondjaki e também de Blaise Cendrars, e tantos outros do Rio e não. Reecontro-os a todos nas ruas e estantes. Releio uma passagem de Etc…, etc… (um livro 100% brasileiro), de Cendrars:
Uma luz deslumbrante inunda a atmosfera
Uma luz tão colorida e tão fluida que os objetos que toca
Os rochedos cor-de-rosa
O farol branco que os domina
As cores do semáforo parecem liquefeitas
E eis que agora eu sei o nome das montanhas que rodeiam essa baía maravilhosa
O Gigante deitado
A Gávea
O Bico de Papagaio
O Corcovado
O Pão de Açúcar que os companheiros de Jean de Léry chamavam de Pote de Manteiga
E as estranhas agulhas da Serra dos Órgãos
Bom dia Vocês
Paro neste bom dia. Respondo rápido: Bom dia Vocês, com os olhos de Blaise Cendrars. Com os olhos e ouvidos de Manuel Bandeira. Antes que o Bope me surpreenda às seis horas da manhã indicando uma outra coisa, um outro Rio, flechas acintosas no corpo já tão flechado do santo, uma normalidade sangue e gargalhadas à qual é preciso continuar, ainda e apesar de tudo, tentando não sucumbir.