O romance policial Do outro lado, da japonesa Natsuo Kirino, ganhou seu principal prêmio justamente por ser do gênero policial, ficando com o Grande Prêmio Japonês de Melhor Romance Policial de 1998.
Outro grande prêmio do livro foi o sucesso nas vendas, tornando-se um best-seller no Japão, com traduções para Europa, Estados Unidos e, agora, Brasil.
O prêmio foi mais do que merecido, pois realmente Do outro lado é um dos melhores policiais da última década. Mas o livro não se resume a uma trama policial. Além de mortes e sangue em abundância, Do outro lado mostra a luta de quatro mulheres japonesas, trabalhadoras e donas de casa, encarando o Japão moderno e as agruras de casamentos fracassados.
O livro também é enriquecido com o detalhamento do ambiente do trabalho dessas mulheres, operárias no turno da noite, em contraposição à vida noturna de Kabuki-cho, área de prostituição de Tóquio, dominada pela yakuza, a máfia japonesa. Completa o enredo um personagem brasileiro, dekassegui que também trabalha na fábrica com as quatro mulheres e ganha destaque ao final do livro.
Yayoi, Masako, Yoshie e Kuniko são mulheres de meia idade que trabalham de meia-noite a 5h30 embalando bentô, o tradicional marmitex japonês. O trabalho não é dos melhores, mas são poucas horas por turno e o salário é mais compensador que um emprego similar no horário diurno. As quatro formam um grupo de amigas dentro da fábrica, que abriga também diversos funcionários brasileiros, entre eles o imigrante Kazuo Miyamori.
Logo no começo do romance, Kazuo comete uma desastrada tentativa de assédio a Masako, no lado de fora da empresa. Ela o reconhece e o coloca para correr, mas não acredita que aquele seja o tarado que anda ameaçando outras moças nos arredores. Nas pequenas cidades japonesas em que há muitos imigrantes brasileiros é comum que eles sejam os primeiros suspeitos em atos ilegais. Obviamente que o comportamento destes imigrantes contribui para as suspeitas, e também é grande o número de brasileiros que se envolvem com a criminalidade. Mas não é disso que trata o romance.
Nas páginas iniciais, Natsuo faz uma descrição interessante do que seja trabalhar numa monótona linha de produção, no horário em que a maioria das pessoas está em casa dormindo. Mas os bentôs precisam estar nas lojas no dia seguinte e é justamente a monotonia que garante a eficiência na produção. O trabalho de assentar a comida na marmita é repetitivo e não permite um olhar para o lado ou uma conversa, para que a concentração não seja perdida. Fiscais da linha de produção estão sempre atentos para garantir que a monotonia não seja quebrada.
Monotonia e infelicidade
Na vida pessoal, as quatro amigas também enfrentam a monotonia. Cumprem obrigações da casa, atendem os filhos, isso tudo com um horário de sono inverso ao da família e do mundo em geral. Elas também não são felizes no casamento. Yoshie já é viúva, como herança do marido, ficou com a sogra doente, a quem tem de pajear, inclusive na troca das fraldas geriátricas.
Kuniko, gorda e feinha, foi recém-abandonada pelo marido. Endividada, busca solução financeira nos agiotas ligados à yakuza. Masako dorme em quarto separado do marido. O filho adolescente não fala com os pais. Yayoi, mais jovem e bonita, é casada com um bêbado que freqüenta prostíbulos e casas de jogo, além de constantemente agredir a mulher.
A vida das quatro mulheres muda completamente após uma noite em que Yayoi é agredida pelo marido. Meio que de forma automática e não premeditada, Yayoi estrangula o marido com um cinto, até matá-lo. Desesperada, ela pede ajuda a Masako.
Neste momento, o livro começa a ganhar as tintas do suspense, da violência e do inusitado, beirando o fantástico. Masako decide ajudar Yayoi a se livrar do corpo. Leva o morto para o banheiro de sua casa e convoca Yoshie e Kuniko para a tarefa de cortá-lo em pedaços para jogar no lixo em várias sacolas.
A desleixada Kuniko joga suas sacolas nas lixeiras de um parque e o caso logo ganha as páginas policiais dos jornais. A suspeita inicial da polícia recai sobre o dono de uma casa noturna e da casa de jogos de onde o marido assassinado foi expulso aos safanões. O dono do lugar é preso e seus negócios ilegais vão à falência. Sua vingança será contra a família do morto.
A intrincada história policial tem a participação fundamental de Jumonji, o agiota de Kuniko. Ele desconfia da confusão toda, pressiona Kuniko e ela confessa tudo em troca do perdão da dívida. Jumonji aciona seus comparsas da máfia e lhes oferece a prestação do serviço que ele considera ter sido muito bem feito pelas mulheres, o desmembramento de assassinados.
A yakuza adora a oferta e Jumonji convence Masako a participar de uma sociedade para prestar o tenebroso serviço. Elas cortariam os mortos e ele daria o destino final às sacolas. Masako e as amigas caem na tentação, pois o trabalho renderá quase 20 mil dólares para cada, por cadáver.
Vingança
O romance até poderia acabar por aí, o que já garantiria um bom e sarcástico desfecho. Natsuo prefere alongar um pouco a história e traz à cena Satake, o dono da boate e da casa de jogos, que aparece para consumar a vingança contra aquelas que prejudicaram seus negócios.
As mulheres só se dão conta do perigo quando desembrulham o segundo corpo que lhes é entregue para ser cortado. Elas reconhecem a vítima e entram em pânico, pois obviamente aquilo era uma mensagem ameaçadora.
O desfecho do livro não é óbvio e nem feliz, chega a soar esquisito, mas isso pouco importa. Natsuo fez uma ótima construção até então. Do outro lado é um ótimo policial, com uma boa trama de suspense, cenas horripilantes, estilo que a autora domina e o qual já lhe garantiu reconhecimento e meia dúzia de prêmios.
Em Do outro lado, Natsuo Kirino foi além do romance policial. As personagens são bens construídas e o cenário em que vivem reflete um Japão atual e desmistificado. Tóquio, assim como qualquer outra cidade, tem sua boca-do-lixo, com garotas de programa e cafetões circulando todas as noites pelas vielas de Kabuki-cho.
Nas fábricas, os dekasseguis brasileiros são vistos como uma espécie exótica, competentes, trabalhadores, mas incapazes de compreender os costumes do povo que lhes deu origem, além de terem dificuldade com a língua japonesa.
Natsuo foi também corajosa ao expor tudo isso, num país que, por exemplo, finge combater a pornografia do modo mais arcaico possível. Uma revista Playboy enviada para o Japão pelo correio chegará às mãos do destinatário com tinta preta nas fotos de partes genitais. Enquanto isso, como Natsuo relata, as caixas de correio das residências são entupidas diariamente com panfletos de garotas de programa.
De certa forma, Yayoi, Masako, Yoshie e Kuniko são um contraponto às personagens principais de As irmãs Makioka, de Junichiro Tanizaki, um dos principais romances da literatura japonesa atual. As Makiokas representam o Japão antigo, no tempo em que uma delas só poderia casar depois que a mais velha casasse, e assim por diante. E a vida das mulheres era o casamento arranjado pela família, a casa, a futilidade, enquanto os maridos trabalhavam.
Para essas Makiokas do século 21, o casamento é um fardo. Puderam escolher o marido mas não tiveram escolha na vida que levariam a seu lado, exceto, obviamente, por Yayoi, que pôs fim à vida daquele lhe agredia. Talvez não tenha sido intenção deliberada de Natsuo Kirino de fazer contraponto algum, talvez ela tenha tido apenas a intenção de escrever um bom livro policial, mas ela conseguiu mais que isso. Do outro lado é mais uma obra recomendável neste cartel de altíssima qualidade que é a literatura japonesa contemporânea.