O tratador de canários
Uma gaiola saiu à procura de um pássaro.
Franz Kafka
Homem distante o meu pai,
entanto gostava de pássaros.
(Comigo não se importava,
criança sem rima e canto.)
A mim, tratador de canários,
cabia limpar as gaiolas,
soprar as cascas do alpiste,
e pendurá-los, alegres, ao sol.
E eram vários, belos, coloridos,
os canários-belgas, os pintassilgos.
Solto o azulão voava rápido,
no próprio relâmpago das asas,
e pousava no dedo de meu pai,
como na mão de um mágico.
E meu peito de menino se acendia,
em pura admiração e espanto.
Homem distante o meu pai,
entanto gostava de pássaros.
(Comigo não se importava,
criança sem rima e canto.)
E minha surpresa hoje ao percebê-lo:
o moço com aquele pássaro na mão,
mais jovem que o filho que o sonha.
Então, dispersos a casa e os umbrais,
mesmo a longa mesa dos domingos,
e ainda a primeira ideia de família,
restaram uns poucos retratos na gaveta,
da infância, na memória, as imagens,
e da vida o voo rápido do azulão.
…
Chove lá fora
Chove lá fora sobre as serranias de Ayuruoca.
Chove lá fora sobre o gado em aboio.
Chove lá fora sobre os bambuzais e o rio.
Chove lá fora sobre antigos caminhos da minha infância,
com arapucas armadas e rolinhas,
e folhas úmidas nos pés descalços,
e lírios já orvalhados.
Chove sobre os pirilampos no escuro
em verde fosforescência.
Chove sobre o corpo de minha mãe doente,
exposto ao tempo e à febre.
Chove dentro do meu peito.
Chove uma chuva miúda e triste.
Chove, afinal, sobre os telhados do mundo.
Chove nos escombros do World Trade Center,
no Marco Zero da Grande América divinizada.
Chove sobre as mulheres palestinas orando e balindo.
Chove sobre os campos de refugiados na Jordânia,
em suas barracas esfarrapadas ventando,
como antes chovera nos campos de Sabra e Chatila,
e no Gueto de Varsóvia.
Chove na piazza de São Pedro, deserta,
e sobre os ombros encarquilhados do Papa.
Ouço a chuva caindo sobre minaretes e sinagogas
com seu ruído monótono.
Vejo a chuva molhando o corpo dilacerado de um
menino palestino,
com as mãos agarradas a uma pedra.
Chove nos capacetes metálicos dos soldados de Israel,
nas suas viseiras de aço e miras telescópicas.
Chove ainda hoje sobre mim,
bêbado, sozinho e urinando na chuva,
com um miserável soluço na garganta.
Eu sei que chove hoje e choverá para sempre,
em lento e definitivo dilúvio,
sem intervalo nem instante,
até que tudo esteja submerso sob as águas,
e na superfície nada,
nada respire sobre as ondas.