🔓 Austin

Conto inédito de Marina Navarro Lins
Ilustração: Dê Almeida
01/01/2022

O garfo caiu da minha mão e quicou no prato. Grãozinhos de farofa espalhados pelo chão que eu tinha acabado de varrer. A velhice me irrita, onde já se viu ficar assustada com barulho de tiro?

Já ouvi tantos. Pei-pei-pei.

Antes, corria para o quarto com o terço de continhas rosa-claro escorregando na mão suada.

Não mais. Fico onde estou e espero passar, como se fossem apenas as badaladas do sino da igreja. Que já não badalam há anos.

Mas dessa vez foi diferente. Pei e pronto. Um só. E tão perto que cheguei a ver o sangue manchando a minha blusa.

Deixei a farofa no tapete e fui para a janela.

A galera do mexerico já em posição na porta do Castelinho azul. Que de castelinho não tem muita coisa, mas é azul. Eu, mais uma integrante do grupo dos alcoviteiros, perguntei logo:

— Quem é o presunto?

Seu Justino veio, a mão no peito fingindo-se de comovido. Preparou a voz de William Bonner, mas saiu só aquele ganido de cachorro faminto que não combina em nada com a barriga, que dá para ver lá da Dutra.

— É o seu João, dona Ivone. Parece que foi assalto, a sala tá toda revirada. O cabra não tinha coragem de enfrentar aquele vagabundo do filho dele, mas parece que teve para botar banca para bandido. Deu no que deu.

Deu no que deu. Seu João do Castelinho quis proteger seu império para lá de duvidoso e acabou com a cara comida de bala. Um roteiro previsível, com lição de moral embutida. Mandem descer as cortinas. The end.

Acho que ninguém chegou a descobrir do que consiste o tal império. O homem mudou-se para o bairro com a mulher, o filho e uma aura de realeza que rapidamente se dissipou quando os dentes de ouro reluziram no seu sorriso de travessão.

Logo recebeu visitas das autoridades: o prefeito e a claque de vereadores, empresários e o chefe da boca. Seu Justino, dono da banca de jornal que há muito só vende tupperwares variados, tentou entrar no grupo, mas não passou da soleira da porta.

De início, não foi de todo mal. Dona Carmen, a senhora do Castelinho, distribuía sanduíches e doces para as crianças. Que comam bisnaguinhas!

Depois chegou a equipe da Secretaria de Obras Públicas e nosso asfalto perdeu o caráter de superfície lunar. Em dias de chuva, deixamos de caminhar com passo de astronauta, as sacolas do supermercado Vianense fazendo as vezes de botas espaciais.

Até uma viatura da polícia passou a embicar na nossa rua todas as manhãs. Os PMs vinham cautelosos, de início, temendo o terreno desconhecido. Logo passaram a zunir pelo asfalto lisinho, parando só para descer o cacete nos meninos que se escondem atrás do ponto de ônibus para limpar os bolsos de quem vai para o trabalho antes do nascer do sol.

Fazem ainda a escolta do filho do seu João, da delegacia, onde ele costuma parar após as noitadas no centro, até o Castelinho. Depositam o rapaz caindo de bêbado no sofá e saem satisfeitos, o pernil do natal garantido.

Pode-se dizer que a vida ali melhorou e, como cavalo dado não se olha os dentes, deixamos os molares reluzentes do seu João quietos.

Fora Dona Carmen, o resto da família real de Austin, Nova Iguaçu — que não é para confundir com Austin, Texas, que nem família real tem — só sai de casa dentro do casco reforçado de um blindado. Óculos escuros, estilo filme de espião.

A empregada e o motorista fazem, juntos, as compras do mês. Não dá nem tempo de decorar o nome deles e já aparecem outros em seus lugares. A rotatividade é tanta que até os fofoqueiros mais empenhados desistiram de acompanhar as mudanças.

Especulou-se muito, como era de se esperar. Contrabandista? Bicheiro? Político? Depois se especulou menos, até que a especulação parou de todo, porque, querendo ou não, as pessoas têm mais o que fazer.

Uma sirene invadiu a bolha de tensão quase sólida que se formara ao redor do Castelinho. As vozes cessaram para dar lugar ao barulho que prenunciava uma solução. Se é que eles ficariam sabendo do desfecho.

Os policiais afastaram os vizinhos, que tentavam dar explicações que não foram pedidas, e cercaram o Castelinho com fita de isolamento. Começaria agora o entra e sai de PMs que não dizem nada, a retirada do corpo num saco preto e a caça aos bandidos que já devem estar em casa assistindo à Sessão da Tarde.

Peguei a vassoura para limpar a farofa do tapete e, com um garfo limpo, voltei ao meu almoço gelado. Não senti nada.

O corpo que não vi parecia ser só mais um, por mais que morasse de frente para mim, no Castelinho — chamado assim por causa das ameias e merlões no parapeito do segundo andar (palavras que só descobri depois de anos olhando o muro entrecortado sem saber como descrevê-lo).

Aquele homem com o rosto perfurado já era quase mítico em vida. Fazia parte do imaginário do bairro, das rodas de conversa em frente à padaria, das ameaças que pais cansados fazem aos filhos impossíveis:

— Vou te mandar lá pro Castelinho pra ver se você toma jeito!

Sua presença física é o de menos; sempre foi o de menos para nós. Seu corpo logo vai partir no rabecão e pouco mudará. A fábula ganhará novos contornos, talvez. Mas só.

Por isso, voltei aos meus afazeres. Tenho que passar pano na casa que é para quando a minha neta chegar não ficar espirrando.

Desde que meu marido morreu, ficou mais fácil limpar os móveis. Chorei uma perda, mas comemorei outras: a dos bibelôs que ocupavam cada centímetro das superfícies da sala.

Eram caixinhas, santos de madeira, passarinhos de vidro, bonecas russas e enfeites de plástico do Vasco. Joguei tudo num saco e guardei no fundo do armário, para o caso de bater nostalgia.

Minha neta diz que entendo de décor. Parece que sou minimalista.

Dei uma espiada pela janela e vi os carros da imprensa enfileirados no início da rua. Seu João devia ser peixe grande, vamos descobrir amanhã pelos jornais.

Dona Marisa me viu pela fresta da cortina e veio saber por que eu estou entocada justo hoje.

— E eu lá sou urubu pra ficar rondando defunto?

Abri a porta porque não tinha escapatória. Dona Marisa se aprumou no meu sofá e seu Valdir veio atrás, como um cachorrinho embevecido. Um casal de velhotes sem senso do ridículo.

— Eu sempre soube que ia acontecer, era só questão de tempo. Não tem como viver nessa arrogância e escapar ileso. Tudo na vida tem um preço — filosofou dona Marisa.

— Ele foi burro. Se fosse eu, andava com segurança armado até dentro de casa. Não ia dar esse mole de ser pego desprevenido de cueca por uns bandidinhos — avaliou seu Valdir, que aplicava o mesmo diagnóstico para todos os casos: fulaninho foi burro.

— Ele estava de cueca?

— Samba-canção e meias. Não tinha nem roupão e o povo achando que ele era chique.

— E a família dele? — perguntei.

— Ninguém sabe, ninguém viu. O homem estava sozinho.

Livrei-me dos dois faltando menos de meia hora para a novela das seis. Não admito para ninguém, mas morro se não assistir ao último capítulo hoje. E, quando chegar ao Juízo Final, vou dizer logo que pouco me importa descobrir o sentido da vida e o que vem depois.

Vou querer saber se Teresa terminou com Joaquim e quantos filhos eles tiveram. E se Otávio Augusto pagou seus pecados estatelado na base de um penhasco ou debaixo de um trem.

Adoro um romance açucarado e previsível. A previsibilidade é, sem dúvida, a condição mais subestimada que existe no mundo.

Pão francês torrado, café passado, eu a postos no sofá. Quando recomeça, pei-pei-pei. Não apenas um, mas uma dezena.

Minha porta é escancarada e duas moças mergulham no meu tapete, tremendo da cabeça aos pés. O crachá que quase estrangula uma delas mostra que é jornalista. Estagiária, talvez.

— O que está acontecendo lá fora? — pergunto, segurando o controle remoto com força para dominar o tremor dos dedos.

Elas me olham pela primeira vez, quase surpresas por eu estar ali, dentro da minha própria casa.

— Tinha um cara andando pela mata, naquele moro atrás do Castelinho. Ele não quis se entregar e os PMs abriram fogo.

Ficamos mais um tempo num silêncio áspero, por longos minutos que na verdade foram apenas segundos.

Aproximamo-nos da janela e, aos poucos, o povo foi saindo dos esconderijos, como minhocas depois de uma chuvarada.

— Puta que pariu, irmão. Avisa antes de disparar.

— Já avisei que não é para vocês ficarem tão perto, porra.

Ninguém se mexeu.

— Cadê o seu Justino?

Estranho, seu Justino jamais perderia esse show. É do tipo que passa a noite toda em claro para dar as notícias em primeira mão no grupo do zap, com direito a análises que mesclam crítica social e teorias da conspiração.

Não tardou para um corpo cravejado de balas aparecer, arrastado para fora da mata por um policial. A camiseta branca empapada de sangue arroxeado, o rosto com uma máscara de terra e gravetos coletados no percurso.

A barriga não deixava enganar.

— Seu Justino tinha conluio com a bandidagem?

— Vai ver que era por isso que estava sempre bem informado.

— Vocês beberam? Seu Justino era honesto. Aposto que estava ajudando na investigação do caso.

— Ele foi burro. Pra que foi se meter na mata com esse bando de PM aqui?

— Deu no que deu.

Fechei a porta, com chave dessa vez. Sentei no sofá, mas não deu vontade de ligar a TV. As vozes entravam sem convite pelo vão da janela, que continuava aberto mesmo quando eu a fechava.

Coloquei a mão sobre os ouvidos e esperei. Às vezes, tenho vontade de fazer com os meus sentidos o que fiz com os bibelôs. Jogar tudo num saco, torcer as abas e colocar no fundo do armário.

Não escutar mais os estampidos, não cheirar podridão, não assistir a esse faroeste macabro, não sentir na boca o gosto metálico que não sai nem com pasta de dente.

Quero decorar meu corpo como decorei a minha casa. Sem sentidos e sem memória. Um minimalismo duro e reconfortante.

Marina Navarro Lins

Nasceu no Rio de Janeiro (RJ). É jornalista e tradutora. Em 2017, foi para Londres, onde cursou mestrado em Comunicação e Desenvolvimento na London School of Economics (LSE).

Rascunho