Escritor-objeto

Existe uma camada da escrita — inexplicável — em que o autor não é exatamente sujeito do que escreve, mas também objeto
Ilustração: FP Rodrigues
01/01/2022

Quando estou escrevendo algo de maior fôlego, como um romance, o que mais me mobiliza a escrever é ir correndo para o computador para descobrir o que vai acontecer. Não tanto o que vai acontecer, mas como vai ser contada a história que prossegue. Que palavras vão ser usadas, que ritmos de frases, como vão ser os diálogos, haverá diálogos, que característica nova a personagem vai adquirir?

Escrevo como se estivesse assistindo a algum seriado, curiosa pelo próximo capítulo. Só que, no caso, sou eu mesma a criadora do que vai pela tela, mas muitas vezes sinto como se não fosse e, nesses momentos, é quando sou mais feliz e, invariavelmente, quando o texto sai melhor.

Existe uma camada da escrita — inexplicável — em que o autor não é exatamente, ou ao menos não exclusivamente, sujeito do que escreve, mas também objeto. Percebo, intuo que existem dimensões do cérebro que operam de forma praticamente autônoma, especialmente no que diz respeito a associações: sonoras, semânticas, sintáticas e estruturais. Assim, quando deito ao papel uma palavra como, por exemplo, “risco”, deixo à função da memória associativa o papel de completar a frase, o parágrafo, embora mantenha a consciência do que, mais ou menos, quero dizer. É uma mistura de controle e descontrole que, não raro, surpreende mais a mim do que a qualquer pessoa. Vamos lá: “risco o que quero porque assumo o risco e sei que o maior risco que já corri foi entregar o que escrevo para quem não sei. E me pergunto por que o verbo que se usa para risco é correr, como se ele adquirisse uma transitividade que não costuma ter. Quem corre, apenas corre e não corre alguma coisa. Mas eis que um risco se corre. Tem gente que corre do risco, tem gente que corre no risco, mas como corrê-lo?” Pois é. Foi só escrevendo que me veio a ideia, nunca antes nem imaginada, do estranhamento da relação de regência entre o verbo “correr” e o substantivo “risco”, e é claro que eu poderia ir bem mais longe nessas especulações, pois é realmente esdrúxulo que seja esse o verbo usado para se arriscar.

Tornar-se objeto, permitir que a escrita ganhe corpo e forma por si mesma, entregando o corpo ao gesto e deixando que a escrita seja não apenas expressão, mas também ela corpo, matéria feita de letras e sons, é um dos maiores prazeres do ato de escrever e é também uma das formas mais criativas de inventar histórias e maneiras de contá-la. Nossa mente guarda alguns conhecimentos que só podem ser acessados por caminhos inadvertidos, despropositados, que se traçam a nosso despeito. De repente, percebemos lembrar de algo que já tínhamos esquecido, de uma palavra que pensávamos nunca ter usado antes, de uma associação que nos surpreende pela beleza ou pelo ineditismo.

Estamos constantemente sendo pressionados, por motivações sociais, políticas, publicitárias e psicológicas, a sermos condutores autônomos de nossas vidas e de nossa história. Temos pavor a nos reconhecermos dependentes ou meros pacientes do que ocorre, no lugar de agentes. Entretanto, na escrita — e penso que também em muitos momentos da vida — ser objeto é fundamental. Ser objeto do acaso, do imponderável (a campainha, a chuva, o café), da própria memória, do próprio corpo e das mãos, dos sentidos que, livres do nosso controle, produzem sentidos que escapam à consciência judicativa.

Afora a delícia de escrever como se estivéssemos numa espécie de montanha russa, em que aguardamos, ansiosos ou medrosos, a próxima curva, a próxima descida, a próxima subida íngreme imediatamente seguida de uma reviravolta no ar. Quando as palavras nos guiam, em vez de sermos somente nós a guiá-las, conhecemos os segredos que elas ocultam nas profundezas cerebrais e suas ligações voluntariosas. E nos surpreendemos: olha só essa frase, de onde veio essa palavra, como esse adjetivo foi se juntar a esse substantivo, eu já tinha esquecido desse objeto que pertenceu à minha avó.

O escritor-objeto é semelhante ao caminhante que flana e que, diante de um desvio que surge no caminho, decide mudar de rota. Ele não sabe exatamente aonde quer chegar; só sabe que quer caminhar e encontrar o que as ruas apresentarem a ele. Pode ser algo interessante e, muitas vezes, desagradável ou até doloroso: nem por isso ele se retrai. Segue curioso, deixando-se atingir pelo acaso e pelo inesperado. Para esse caminhante, o meio é o próprio fim e não somente uma forma de chegar a algum lugar. Também para o escritor literário, tantas vezes a escrita é, igualmente, um fim em si mesma e ele, sem saber muito bem aonde aquilo vai dar, acompanha os caminhos e descaminhos das palavras que, sozinhas, vão levando-o pela mão, pelos braços, pernas e, inclusive, pelos cabelos. O escritor se delicia e sofre: algumas associações vão fazê-lo chorar, sentir medo outra vez, sonhar acordado, relembrar cheiros e sabores há muito desconhecidos. Afinal, a memória involuntária de Marcel ao morder a madeleine terá sido somente do personagem ou também de Proust? Nunca saberemos, mas algo me diz que também o Marcel autor conheceu o prazer imenso de ser acometido pelas palavras no lugar de cometê-las.

E a verdade é que, mesmo esse mesmo texto teve seu tanto de surpresa: quem é que disse que eu sabia que iria falar de Proust?

Noemi Jaffe

É escritora, doutora em literatura brasileira pela USP e coordenadora do Espaço Cultural Literário Escrevedeira. Autora de O livro dos começos, Írisz: as orquídeas e O que ela sussurra, entre outros

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