Duas almas

A chave estrela traduz as incertezas de Primo Levi ao abandonar a profissão de químico e dedicar-se exclusivamente à literatura
Primo Levi por Ramon Muniz
01/07/2009

Sempre que se fala em Primo Levi, a primeira palavra que nos vem à mente é Auschwitz. De fato, este judeu italiano, membro da resistência partigiana à época de Mussolini, preso em 1943 e deportado para aquele campo de concentração nazista, tornar-se-á um dos nomes mais representativos da chamada literatura de testemunho, do período da Segunda Grande Guerra. Seu primeiro livro É isto um homem? (1947), assim como A trégua (1963) e Os afogados e os sobreviventes (1986), eminentemente autobiográficos, buscam denunciar o inferno das experiências sofridas nos lager nazistas.

Segundo o autor, Auschwitz representou o divisor de águas de sua existência. Diante das atrocidades e traumas lá sofridos, o sobrevivente teria duas opções: lembrar ou esquecer.

Levi assume integralmente a postura dos que testemunham. Concebe a memória como antídoto contra os males do esquecimento, já que, apenas por meio da lembrança do vivido, é possível evitar que crimes hediondos como aqueles voltem a ser cometidos.

Vale retomar alguns dos versos do poema introdutório Shemá, escrito pelo autor em É isto um homem?, em que essa necessidade de contar faz-se imperativa, como forma de alertar os homens para que fiquem vigilantes, a fim de que nunca, jamais se esqueçam do que ocorreu:

Vós que viveis tranqüilos
Nas vossas casas aquecidas
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
Considerai se isto é um homem
Quem trabalha na lama
Quem não conhece paz
Quem luta por meio pão
Quem morre por um sim ou por um não
Considerai se isto é uma mulher
Sem cabelos e sem nome
Sem mais força para recordar
Vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no inverno.
Meditai que isto aconteceu
Recomendo-vos estas palavras.
Esculpi-as no vosso coração.
Estando em casa andando pela rua
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repeti-as aos vossos filhos.
Ou então que desmorone a vossa casa
Que a doença vos entreve,
Que os vossos filhos vos virem a cara

Levi, Calvino, Pavese
Mas nem toda literatura de Primo Levi se resumiu às questões do holocausto. De fato, ele surpreendeu os leitores ao publicar, em 1966, o volume de contos intitulado Histórias naturais. Sob o pseudônimo de Damiano Malabaila, o escritor italiano passava da literatura de testemunho para o campo da ficção científica e do conto fantástico, rompendo o pacto autobiográfico dos três primeiros livros.

Em 1971, lançou nova antologia de contos: Vício de forma, em que confirmava as opções procedimentais do livro anterior, publicando, finalmente Lilith, seu terceiro livro de contos, em 1981.

Importa notar que aquilo que, num primeiro momento, foi lido pela crítica abalizada como uma guinada escapista e despropositada, para um autor de quem se esperava sempre um recorte literário de cunho mais realista, também ocorreu, em boa medida, com dois outros grandes nomes da literatura italiana da época: Italo Calvino e Cesare Pavese.

Calvino lançou seu primeiro romance: O caminho para o ninho de aranhas, em 1947 (mesma data em que Levi publica É isto um homem?) Trata-se de sua obra mais realista, uma transfiguração de suas experiências de combatente para contar a história de um adolescente durante a guerra.

Mas, nos anos 50, Calvino se direcionou definitivamente para a fantasia e para a alegoria, escrevendo os livros que o fizeram conhecido em vários países: O visconde partido ao meio (1952), O barão nas árvores (1957) e O cavaleiro inexistente (1959).

É também necessário verificar que essa mudança de enfoque ocorre com Cesare Pavese, se lembrarmos que em Trabalhar cansa (1936) temos evidenciado o viés mais realista, que deixa totalmente de existir em Diálogos com Leucó (1943-46).

O interessante é que, cada um desses três autores, respectivamente, soube lidar, de modo peculiar, com as mudanças que a concepção de arte e literatura vinham enfrentando então. Se, num primeiro momento, urgia estar atrelado aos impactos sofridos durante a guerra, num tipo de criação que desse conta das atrocidades do mundo real, numa das vertentes mais fortes da cultura italiana, qual seja a do neorealismo, paulatinamente, as potencialidades da linguagem literária, enquanto transfiguração alegórica e fantástica, vão se delineando como novas formas de representação.

O operário, o químico e o escritor
Primo Levi exercia sua profissão de químico, especializado em vernizes, quando, depois de Auschwitz, torna-se também escritor. Durante alguns anos dedicou-se às duas atividades, mas, em certa fase da vida, acabou optando apenas pelo ofício da escrita.

A chave estrela, de 1978, é o primeiro livro dessa nova fase e parece traduzir muito bem os impasses e as incertezas que rondavam a alma do escritor, quanto às suas duas funções.

De fato, ao concentrar a trama narrativa em dois personagens principais, o operário montador Faussone, que narra o tempo todo suas aventuras de trabalho nas linhas de montagem e o químico — escritor anônimo, que ouve atento as histórias do trabalhador, para depois escrevê-las —, vemos surgir uma espécie de alter ego de Levi. Embora tendo conhecido Faussone numa circunstância de trabalho em que fora convocado como químico, o que melhor o revela é a sua função de escritor, que precisa daquelas histórias para exercer seu ofício.

É tocante um dos trechos do livro, em que ele conta a Faussone sua história, comparando-a metaforicamente às duas experiências distintas, vividas por Tirésias:

…também me sentia um pouco como Tirésias, e não só pela dupla experiência: em tempos distantes também topei com deuses em disputa entre si, também encontrei serpentes em minha estrada, e aquele encontro me fez mudar de condição, dando-me um estranho poder de palavra; mas desde então, sendo um químico aos olhos do mundo e no entanto sentindo o sangue do escritor em minhas veias, parecia levar no corpo duas almas demasiadas. E não era preciso recorrer a sofismas, porque toda essa comparação era forçada: trabalhar no limite da tolerância ou mesmo fora da tolerância é a beleza de nosso trabalho. Ao contrário dos montadores, quando conseguimos forçar uma tolerância, fazer um acasalamento impossível, ficamos contentes e somos elogiados.

O que constatamos, aqui, é que Levi parece querer dar conta de uma das questões centrais de sua existência: como conciliar os dois ofícios (o de químico e o de escritor), aparentemente tão distintos. Parece ser por isso, também, que ele enaltece as funções do operário Faussone, elevando-as, conferindo-lhes a dignidade exaltada do trabalho dedicado e honesto do homo faber, cuja labuta e suor cotidianos merecem ser postos em evidência.

Levi busca, então, aproximar esse homem, cujas mãos são agente primordial de criação, ao homem intelecto, cujas idéias e força imaginativa, também constroem o universo.

Desse modo, o operário, o químico e o escritor estão em pé de igualdade e nenhuma dessas funções supera a outra. O que os dignifica é a força de sua capacidade criativa, enquanto homens livres que tocam o poder quase divino e genesíaco de todas as formas de criação da vida.

Pode-se ler, aqui, nessa abordagem assumida por Levi, sua completa adesão às teorias gramscinianas, que tanto influenciaram outros intelectuais daquela geração, especialmente no que diz respeito à postura do intelectual em relação à sociedade. Nesse sentido, o intelectual orgânico seria aquele que trata das questões ideológicas da conjuntura política, sem nunca assumir o distanciamento dos que se fecham nas torres de marfim. Em síntese, seria aquele capaz de refletir intelectualmente sobre os problemas sociais, sem deixar de tocar os pés no chão da realidade, em contato direto e visceral com as necessidades mais agudas da população.

Por isso, o escritor-químico-intelectual, nesse caso, representa o escutador dos casos do operário, sendo-lhe todo ouvidos. Essencialmente, concede-lhe o protagonismo, pois visa quebrar as distâncias e investir na igualdade de posições entre o que transforma o barro com as próprias mãos e o que o recria com as idéias. Por isso, veremos desfilar, num amplo e diversificado leque narrativo, as mais excêntricas histórias do montador, que, por não conseguir ficar parado muito tempo em uma única cidade e por não querer se submeter às ordens aprisionantes de um só chefe, viaja pelo mundo, em verdadeiras expedições, carregadas do mesmo tom de aventuras das narrativas de viagem.

Muito mais do que um operário que vibra com o trabalho que, árdua e apaixonadamente executa, Faussone corporifica a ágil voz do narrador, contador ancestral de histórias infinitas, capazes de alimentar o espírito humano.

Interessa observar, nesse tipo de estratégia que, se por um lado, temos como cenário um pano de fundo bastante simples, centrado na figura do trabalhador braçal que conta suas peripécias a um ouvinte atento, toda complexa densidade da obra se concentra nessa versatilidade dos modos de narrar de Faussone, que escapam a um tipo de padronização homogênea, que poderia conduzir a uma certa monotonia narrativa. Melhor dizendo, se a temática central da narrativa se reduzisse às histórias monotemáticas de um trabalhador e suas linhas de montagem, refletindo apenas sua visão de mundo uniforme e ensimesmada, talvez o desenvolvimento da história ficasse preso às malhas dessa teia, impedindo os malabarismos criativos dos mais altos e ricos vôos ficcionais.

Talvez, a genialidade do escritor Primo Levi, nesse caso, possa estar, justamente, nessa capacidade de traduzir, de modo colorido e extremamente vibrante, o universo daquele trabalhador, confirmando o que sua intuição já asseverava: o trabalho bem executado, com intensidade e amor, é capaz de libertar, na mesma medida em que as histórias bem narradas também libertam.

Como se respondesse ironicamente ao massacre de Auschwitz, em que a inscrição de entrada no campo dizia: O trabalho liberta, a proposta de Levi, em A chave estrela, é a de provar que o trabalho, de fato, pode, sim, significar algum tipo de transcendência, desde que não escravize, nem submeta o homem.

Não fosse assim, cairíamos no grande engodo do trabalho enquanto forma de alienação do trabalhador, eterno escravo do aparelhamento ideológico do poder, que submete alguns, em prol do bem-estar da classe dominante, nos círculos viciosos de manutenção do status quo.

É por isso que, em certa passagem do livro, fica muito claro que não se pretende enaltecer todo e qualquer tipo de trabalho, mas apenas aquele em que o homem consegue se manter livre das amarras do poder.

O amor e a exaltação que Faussone sente ao narrar suas múltiplas aventuras, nas viagens que faz pelo mundo a trabalho, só podem ser enaltecidos, porque ele é um trabalhador livre que assim se define e assim justifica sua devoção:

…o problema é que dou a alma em todos os trabalhos, o senhor sabe, até nos mais estúpidos: aliás, quanto mais estúpidos, mais eu me entrego. Para mim, cada trabalho que começo é como um primeiro amor…

Questão de nome
Cumpre observar o interessante jogo de linguagem envolvendo-lhe o nome. Conta que o nome que seu pai lhe dera, originalmente, seria Libero e que depois, por questões de erro de registro, teria se tornado Libertino Faussone, conhecido como Tino. Libertino ou Libero traz, assim, já no nome, o ideal que nortearia sua existência: a de buscar sempre ser — conforme os ensinamentos do pai — um trabalhador sem patrão:

Meu pai queria me chamar de Libero porque queria que eu fosse livre. Não é que ele tivesse idéias políticas, de política só pensava que não se devia fazer a guerra, porque já tinha experimentado na pele; para ele, líbero queria dizer trabalhar sem um patrão. Quem sabe até doze horas por dia numa oficina toda preta de fuligem e gelada no inverno, como a dele, talvez até como imigrante ou para cima e para baixo com o carreto, como os ciganos, mas sem ter um patrão, não na fábrica, não para passar toda a vida fazendo os mesmos movimentos agarrado a uma máquina até que não se é capaz de fazer mais nada, e aí o dispensam e aposentam e você fica sentado num banco de praça.

Aproximando o ofício do operário ao ofício do escritor, numa ode de amor ao trabalho e à liberdade, Primo Levi nos dá a chave para o entendimento das contradições da alma humana. A sua chave é a que tem forma de estrela, a que para os trabalhadores que a carregam tem a mesma dimensão da “espada para os cavaleiros de antigamente”. Talvez, aquela mesma estrela que sobreviveu aos campos de extermínio, capaz de continuar brilhando, ainda que a tenham tentado ofuscar no reino onde não entrava luz.

A chave estrela
Primo Levi
Trad.: Maurício Santana Dias
Companhia das Letras
200 págs.
Primo Levi (1919-1987)
Nasceu em Turim, no norte da Itália. Em 1943, durante a Segunda Guerra, junta-se a um grupo da Resistência e é capturado. Passa cerca de um ano em Auschwitz e, em 1947, publica É isto um homem? Químico especializado em vernizes, Levi se divide entre as atividades de químico e de escritor até 1978, ano em que abandona o primeiro ofício para dedicar-se exclusivamente à literatura. A chave estrela é o primeiro livro dessa fase. Dele, a Companhia das Letras publicou A trégua; Se não agora, quando? e 71 contos de Primo Levi, reunião de seus contos.
Maria Célia Martirani

É escritora. Autora de Para que as árvores não tombem de pé.

Rascunho