Paralela à avenida Paulista, um dos cartões-postais da cidade de São Paulo, a alameda Santos é um desses tesouros que só quem anda pela capital paulista com alguma freqüência tem a oportunidade de conhecer. Com efeito, quem caminha por lá observa um microcosmo da metrópole, seja nos prédios comerciais e residenciais, com suas estruturas de vanguarda e espaçosas, seja na presença do comércio da região, que abriga restaurantes, cinemas, butiques, para além do vaivém de milhares de citadinos que por ali passam. Essa descrição poderia seguir apontando os detalhes precisos de cada centímetro daquele local, sem que fosse revelado um aspecto elementar, que fez o autor deste texto utilizar essa via como gancho deste ensaio: no número 8 da Alameda Santos, nas primeiras décadas do século 20, nascia Zélia Gattai Amado, autora que preferia ser chamada apenas como Zélia Gattai, embora todos a associassem, de pronto, à figura do marido, o renomado escritor Jorge Amado, um dos criadores da idéia que se fez do Brasil até bem pouco tempo atrás. À sua maneira, Zélia Gattai trilhou seu próprio caminho, totalmente diferente de Jorge Amado.
Essa característica, no entanto, nem sempre foi compreendida por quem conhecia superficialmente a obra da autora. Estreante na literatura aos 63 anos, idade em que muitos escritores já estão no outono de suas trajetórias, Zélia Gattai se destacou por construir um edifício literário baseado em suas memórias. Nesse sentido, pode-se apreender Anarquistas, graças a Deus e Senhora dona do baile, recentemente relançados pela Companhia das Letras, como uma espécie de testamento intelectual da autora, pois dos livros não constam apenas os relatos íntimos de Zélia, como se fosse um diário íntimo com confidências e detalhes sórdidos de sua vida entre o jet set artístico e literário do século 20. Ao contrário de Súplicas atendidas, livro inacabado de Truman Capote em que o autor desanca as personalidades de seu tempo, Zélia opta por um relato em que a verve literária serve para captar os momentos que ficam de fora dos relatos oficiais. Nesse tipo de observação, o que fica em primeiro plano é um olhar atento aos detalhes que tornam os acontecimentos especiais, tanto pelo aspecto cômico quanto pelo fator trágico que sempre acompanham nossas lembranças.
Traço da anedota
Tome-se como exemplo Anarquistas, graças a Deus, sem dúvida o livro mais comentado de Zélia Gattai. Trata-se, do começo ao fim, de um livro de memórias. O que o diferencia, no entanto, dos relatos dos estadistas ou dos grandes homens de seu tempo, é o fato de a narrativa da escritora não contar com um tom solene ao se referir aos acontecimentos pelos quais ela passou. Ao contrário, prefere o traço da anedota e, por conseguinte, se desvincular dessa imagem de escritora vetusta com chancela da elite cultural do País. Assim, no início do livro, a autora começa por descrever as cenas de uma cidade que nem de longe é o epicentro cultural e econômico do Brasil. O que se lê, em verdade, é apresentação de uma São Paulo absolutamente provinciana, desprovida, a cidade, de seus gestos de elegância conquistados com a força do dinheiro:
A alameda Santos, vizinha pobre da Paulista, herdava tudo aquilo que pudesse comprometer o conforto e o status dos habitantes da outra, da vizinha famosa. Os enterros, salvo raras exceções, jamais passavam pela avenida Paulista. Eram desviados para a alameda Santos, nela desfilavam todos os cortejos fúnebres que se dirigiam ao cemitério do Araçá, não muito distante dali.
Em Anarquistas, graças a Deus o leitor descobre como se deu a primeira formação de Zélia Gattai, especificamente sua infância e, de quebra, a história de uma geração de imigrantes italianos que ajudou a forjar a comunidade anarquista no Brasil. Os documentos, aqui, perdem força para o relato de Zélia que ganha o leitor ora pela forma de tratamento dado aos temas, ora pela exposição de suas impressões, que, se não aparecem de forma enfática, surgem como uma conversa ao pé do ouvido. Nota-se, nesse caso, que a maior virtude de Zélia Gattai foi não ter emulado a voz de Jorge Amado, mas, sim, de ter encontrado sua própria voz. Não se trata de uma aquisição fácil. Muitos escritores já experientes ainda estão à cata de uma forma de se colocar como narrador ou de apresentar seus narradores em suas obras. Ciente da comparação automática que teria para com o marido, escritor que em 1979 era o maior do Brasil, a autora optou por um jeito particular para contar o que viu e o que viveu, algo entre a crônica e o memorial.
Como crônica, seu texto se aproxima não somente pelo estilo, mas, especialmente, pelo relato histórico contado em primeira pessoa. Os leitores mais habituados aos blogs e aos textos de jornais praticamente desconhecem o fato de que, no passado, eram os cronistas os responsáveis pelos relatos “oficialescos”. Tais textos, inclusive em alguns casos, servem até hoje de base para que se conheça mais acerca do desenvolvimento de uma determinada cidade ou até mesmo de um grupo social. Já no tocante ao aspecto memorialístico, há que se lembrar de textos como Memorial de Aires, de Machado de Assis, ou mesmo de Memorial de Maria Moura, de Rachel de Queiroz, que, pela veia da ficção, encontram uma forma de revisitar determinados acontecimentos históricos. A seu modo, Zélia Gattai utiliza esses estilos como referência para apresentar essa história aos leitores. E, nesse caso, não se tem a sensação de que se está diante do mesmo caso contado com outras palavras. Antes, tem-se a possibilidade de descortinar uma faceta que em outro gênero narrativo ficaria em segundo plano, porque, em outro contexto, não era relevante. Para o formato escolhido por Zélia Gattai, no entanto, são esses detalhes corriqueiros que de fato merecem atenção especial e um tratamento diferenciado no tocante à articulação das histórias.
Imprevisível
Nesse sentido, há que se mencionar, ainda, o fato de que a condução da história nunca se dá de forma previsível. Em outras palavras, é como se a autora ora optasse por descrever detalhadamente cada acontecimento de sua infância, ora escolhesse dar mais atenção a fatos mais específicos, como quando de sua sessão de cinema, experiência em que ela relata com vigor, como se pode perceber a seguir:
O cinema representava o ponto alto da nossa programação semanal. Próximo à nossa casa, único do bairro, o Cinema América oferecia todas as quintas-feiras uma “soirée das moças”, cobrando às senhoras e às senhoritas apenas meia-entrada. Era nessas noites que mamãe ia sempre, levando consigo as três filhas: Wanda, Vera e eu, e também Maria Negra, que a bem dizer era quem mais ia, adorando filmes e artistas, não abrindo mão de seu cinema por nada do mundo.
Em passagens como esta, fica evidente que a autora contava com certo domínio do texto e do que gostaria de enfatizar. Trata-se, afinal, de um trabalho autêntico, sobretudo porque a escritora tinha domínio da maneira como deveriam ser narradas as cenas mais significativas de sua trajetória.
Adiante, é preciso mencionar, também, que se torna possível aproximar o texto de Zélia Gattai com o de outro autor pouco mencionado nas letras nacionais, o escritor modernista Antonio Alcântara Machado. Alcântara Machado dá nome a um dos principais pistas da cidade de São Paulo, trecho quase obrigatório para quem sai da Zona Leste para ir à Zona Sul ou à Zona Oeste, por exemplo. Noves fora esse detalhe, digamos, “geográfico”, cabe constatar que, a despeito desse item, ele, Alcântara Machado, permanece como um ilustre desconhecido no cenário dos bem pensantes da literatura brasileira. Há, claro, as exceções de sempre, como é o caso de Flávio Moreira da Costa, que no livro Os melhores contos da América Latina menciona o autor em um de seus principais contos: Gaetaninho, extraído do fundamental Brás, Bexiga e Barra Funda. Neste livro de contos, obrigatório até outro dia em boa parte dos vestibulares de algumas das principais universidades de São Paulo, Machado resgata a memória dos italianos que se estabeleceram por aqui no início do século 20. Assim como Zélia, Alcântara Machado articula o fato com a ficção, dando mais ênfase, obviamente para com o segundo gênero, enquanto Zélia, de forma similar ao autor modernista, trabalha com a memória como peça de base para sua imaginação literária.
À medida que as páginas do livro avançam, o leitor percebe que a personalidade da protagonista da história começa a encontrar um sentido de existência junto àquela família. Aos poucos, portanto, ela percebe quais são os valores que sustentam e definem aquele grupo. No texto, ela mostra como passou a respeitá-los e, de certa maneira, quase que automaticamente esboça uma justificativa para o título da obra:
Liberal, papai não se incomodava que fôssemos a quermesses de igrejas. Sua posição em face da religião era honesta e coerente: não acreditava em nada, não acreditava na continuação da vida após a morte, mas não impunha seus pontos de vista: — Religião é coisa íntima, de cada um. Por isso não posso cometer a violência de impor uma religião, uma determinada doutrina aos meus filhos, apenas para atender às exigências da sociedade em que vivemos.
Narrativa que mescla as memórias sentimentais e a história que viu passar diante de seus olhos, Anarquistas, graças a Deus é, também, um livro que apresenta lugares, pessoas, estilos de vida e uma outra visão de mundo de acordo com um recorte bastante específico. Conforme escreve Lilia Moritz Schwartz no posfácio do livro: “nesse jogo de lembrar e esquecer, quem ganha é o leitor, que, bem acompanhado, visita uma São Paulo de outrora; um momento marcado de utopias de toda sorte”.
A dona da história
Se em Anarquistas, graças a Deus o leitor visita uma São Paulo de outros tempos, em Senhora dona do baile, é a vez de acompanhar a viagem de Zélia Gattai por outras plagas, mais precisamente a Europa, chamada de “continente sombrio” pelo historiador Mark Mazower, tendo em vista seu incrível histórico de guerras e conflitos, mas que, segundo o olhar da escritora, trata-se da oportunidade única de fazer o caminho de volta de seus ancestrais. Ela mesma afirma isso, a certa altura do livro, como se lê a seguir:
Sensação mais estranha eu sentia, lá no alto, na torre de comando, a contemplar os altos e baixos do contorno da cidade de Gênova, encoberta pela névoa matutina.(…) Daquele mesmo porto, em 1890, meus avós — de pai e de mãe — haviam partido, em viagens diferentes para o Brasil, carregados de filhos, famílias numerosas.
Seja pela maturidade como escritora, seja pelo seu projeto literário, nota-se em Senhora dona do baile que os relatos assumem um tom mais grave, em vez do discurso quase descompromissado do livro anterior. Que o leitor não se engane: não quer dizer que este livro não esteja à altura do anterior. É que as histórias são outras, e a abordagem, diferente.
Tal mudança se dá de forma objetiva, uma vez que logo nas primeiras linhas, o leitor já descobre uma Zélia em movimento. Em abril de 1948, ano tão emblemático para a história mundial, a esposa de Jorge Amado e seu filho desembarcam em Portugal, após longa jornada, que, se não foi cheia de sobressaltos, foi marcada pela saudade e pelo sentimento de impotência de deixar o Brasil, a viver em uma terra estranha. No livro, Zélia opta por não reportar detalhadamente todos os problemas que a família Amado sofria no Brasil. Novamente sem ordem cronológica, aqui e acolá surgem depoimentos como se fosse uma confissão dos momentos que antecederam a viagem. O medo de não encontrar Jorge Amado; o horror de ter a casa invadida por policiais; a sensação de estar sendo perseguida. Fantasmas que transformaram uma mulher acima de tudo otimista em alguém ensimesmado e pessimista.
Tal sensação se dissiparia com a chegada à Europa e, depois, com o encontro, em Genova, com o marido Jorge Amado. A família estaria, afinal, completa, e nesse momento a escritora não se esqueceu de mencionar que, naquele momento, só as lágrimas puderam expressar o que aquele reencontro significava. O tom mais sério e bastante politizado do livro se deve ao fato de aqueles tempos representarem o auge da identificação política por parte dos intelectuais. Nesse quesito, Jorge Amado, como grande escritor brasileiro, atuava também como propagador político das idéias do Partido Comunista, a ponto de Zélia Gattai temer pelo futuro do casal na Europa tendo em vista a derrota que a agremiação de esquerda havia sofrido na Itália. Pelo que se lê, Zélia se preocupava mais com o descontentamento do marido do que com a derrota em si. “Jorge devia estar chateado ao infinito”, escreveu.
Impressionada
Embora houvesse espaço tanto para o descontentamento como para o temor, Zélia não deixou de se impressionar com os lugares que via, como do hotel majestoso em que ficaram hospedados na Moravia; ou com o fato do marido ter sido convocado às pressas por intelectuais para participar de um congresso mundial pela paz, contando com a presença de escritores como Paul Eluard e Aragon, e de artistas como Pablo Picasso; ou, ainda, deslumbrada pela cidade de Roma, que já no primeiro impacto causou excepcional impressão junto à memorialista.
Meu encontro com Roma fora aquele impacto. Espetáculo grandioso: ruínas, praças, fontes e museus… Freiras e padres aos milhares invadindo as ruas, andando de bicicleta e de lambreta, coisa que me causou espécie e, sobretudo, me divertiu.
Ao preferir as memórias à ficção, Zélia também observa de que forma a obra do marido se consolida na Europa. Isso, ao contrário do que o leitor mais apressado há de especular, sem elogios rasgados à qualidade literária do escritor. Nesses momentos, a autora prefere o registro direto e objetivo do que é dito fora do Brasil acerca de Jorge Amado. O autor, ao menos naquele momento, era conhecido no círculo intelectual europeu, em especial pelo livro Jubiabá, além de ter sido traduzido, durante sua presença na Europa, Seara Vermelha, que, em francês, ganharia um título mais vinculado à causa que Jorge Amado defendia ideologicamente.
A participação política do autor, aliás, merece uma análise mais acentuada, uma vez que, a despeito de ter se associado ao longo da sua vida com determinada vertente política de esquerda, goste-se ou não, é louvável o fato de Jorge Amado, e, por extensão, Zélia Gattai, ter estado bastante mobilizado com uma causa. Trazido para os dias atuais, essa participação é, a um só tempo, ínfima e esdrúxula, uma vez que poucos são os artistas, escritores e intelectuais que assumem suas posições ideológicas, seja à direita, seja à esquerda, de maneira clara. O que se nota, atualmente, é uma tentativa de ficar bem com todos os grupos — algo que é conceitualmente confuso. Quando muito, a classe artística se mobiliza para debater o projeto de lei ligado às mordomias, em alguns casos, da isenção fiscal. No que se refere ao livro, inúmeros encontros de caráter político são relatados, e a obra cumpre bem a função de dar cor ao resgate histórico.
Num contexto cultural em que a literatura brasileira consolida seus novos medalhões, talvez seja pertinente observar a produção de autores, que, como Zélia Gattai, produziram um tipo de obra que não é das mais comuns por aqui. Por essa razão, embora tenha feito parte de um núcleo artístico célebre, seus livros ficaram mais escondidos do que merecem, não tanto pela prosa repleta de galeria de personagens construídos com a pena de um Jorge Amado. No caso de Zélia, o que mais chama e cativa a atenção do leitor é a forma como ela apresenta o relato, privilegiando um olhar peculiar que não se destaca pela abordagem superlativa, mas, principalmente, pela atenção aos detalhes que escapam nos grandes relatos. Paradoxalmente, a autora consegue produzir um ótimo panorama, sobretudo quando se toma Anarquistas, graças a Deus e Senhora dona do baile como peças que se completam, ainda que possam ser apreciadas separadamente.