No quadro do Estado-nação moderno — dentro do qual a literatura se tornou peça-chave, como comentei no número anterior deste Rascunho —, pensava-se a história através de acontecimentos propostos como objetivos, encadeados a partir de causas e propósitos compreensíveis, que poderiam ser demarcados por itens seguros, muitas vezes certificados em celebrações cívicas. Por exemplo, no caso da história do Brasil, havia momentos decisivos claros como descoberta ou achamento, entradas e missões; vinda de D. João, independência e república; Getúlio, golpe militar, nova república, entre outros — cada tópico desses sendo articulado progressivamente a um conjunto único da “história nacional”.
Hoje, diferentemente, essa história se desdobrou em diversos pontos de vista, e já não é possível contá-la, com credibilidade, sem referência à posição parcial que envolve o próprio narrador. A tendência entre os historiadores atuais é criticar qualquer noção de “fato” que se explique por si mesmo, o que conduz, entre outros efeitos, à revisão dos marcos tradicionais da história moderna. O que se apresentava, há pouco, como história nacional, agora se dilui em favor de outros dados e conexões de um relato fragmentário, associado à memória de grupos e de indivíduos em diferentes posições na estrutura social. No limite, as únicas histórias públicas nas quais parecemos dispostos a acreditar são as que se apresentam como documento privado.
Na literatura contemporânea, esse processo está igualmente evidente — e não apenas na literatura identitária, que explicitamente defende um ponto de vista particular, um “lugar de fala” geralmente assumido por alguém cuja voz é abafada ou suprimida da versão oficial da história. Posso dar um exemplo de natureza bem diversa, para mostrar como é amplo o processo atual de fragmentação subjetiva em curso. Consideremos o livro de um autor francês recente, Laurent Binet, que venceu há alguns anos o Prêmio Goncourt para romancistas estreantes. O título da obra, HHhH, remetia à expressão alemã Himmlers Hirn heiBt Heydrich [“o cérebro de Himmler se chama Heydrich”], e, assim, de forma engenhosa, aludia às duas questões que estruturam o romance: de um lado, o relato dos acontecimentos que culminaram no atentado contra Reinhard Heydrich, o sanguinário comandante nazista da Tchecoslováquia, anexada pelo Reich em 1939; de outro, a expressão da dificuldade de compor esse relato, manifesta por esse vazio impronunciável de agás.
Diante do dilema de como contar o horror, Binet mescla o que aconteceu em Praga naquele período com os passos erráticos do autor-narrador para ler e pesquisar sobre Heydrich, incluindo o que falou com amigos a respeito, os testemunhos um tanto aleatórios que ouviu, as lembranças do seu próprio pai, etc. Vale dizer, na sua narrativa, o processo histórico sofre uma ampla subjetivação, que, por sua vez, se torna a fonte mais verossímil da história que narra. De uma história objetiva se passa à experiência pessoal de conhecê-la, e é nesta que se centra o novo interesse público — de resto, confirmado pela posterior premiação. A busca do jovem autor, que poderia parecer irrelevante, e mesmo frívola, diante da história do “carrasco de Praga” — que custara tantas vidas e que se passara muito antes —, adquire, contudo, em HHhH, o estatuto de grande novidade diante dela.
Uma pista interessante para a explicação desse fenômeno pode ser encontrada no livro Regimes de historicidade — presentismo e experiências do tempo (2003), do historiador François Hartog, a despeito de não ter foco na literatura. Para ele, a “crise do tempo” que estaríamos vivendo diz respeito a uma absolutização do presente, que ele chama de “presentismo”, o qual se oporia à orientação teleológica da história moderna, na qual os processos históricos compreendiam-se a partir da orientação para um ponto futuro, admitindo-se sempre alguma noção de “progresso”.
Hoje, segundo Hartog, os parâmetros da história moderna deixaram de funcionar como organização do crível, o que atinge toda a estrutura das disciplinas históricas. E, a meu ver, atinge também os paradigmas da ficção. As narrativas já não nos convencem como ordenamento para o futuro, pois este se exaure em anúncios de catástrofes. E se o encadeamento das ações apenas pode conduzir ao desastre, os verossímeis das narrativas buscam, a contrapelo, não o progresso, mas a suspensão temporal: a fundação de um presente indeterminado cuja função é adiar o fim.
Aqui, um aspecto curioso a considerar é que a tecnologia, ao contrário do que usualmente se pensa, é um fenômeno bem ajustado a tal concepção de tempo sem avanço consistente. Pois o que pode traduzir melhor a ideia de precariedade permanente do que a velocidade da evolução tecnológica? O que pode se tornar mais ultrapassado do que o último modelo de um gadget? A constatação talvez insinue uma nova época relevante da “ficção científica”, não apenas relativa ao futuro distópico, mas até mesmo ao passado, como se dá no subgênero das “histórias alternativas”. Também as narrativas de “mistério” ganham espaço nesse horizonte de suspeita e temor difuso, especialmente quando associadas ao que os italianos chamam de dietrologia, isto é, as teorias conspiratórias que buscam os móveis das ações no que estaria “por trás” das explicações usuais, destinadas a manter no engano a gente ingênua e iludida.
Outro aspecto a considerar é que, quando os eventos já não se orientam para uma finalidade, mas apenas para o seu fim — “nunca houve tanto fim como agora”, na fórmula feliz de Evandro Affonso Ferreira —, todos eles valem aproximadamente o mesmo. Os grandes marcos da idade moderna se diluem no emaranhado de todos os outros eventos e, a rigor, cada um deles pode candidatar-se ao posto de potenciais monumentos de um presente que não vai a lugar algum. Sem distinções objetivas, há uma “museificação” precoce de tudo. Arquiva-se qualquer experiência e, quiçá, antes de qualquer experiência, como substitutivo vicário de um evento que já não se pode viver no tempo. Não se faz apenas selfie da viagem: a selfie é a viagem.
Nesse quadro de registro fragmentário, dispersivo e de autopublicidade, a obra literária, que vive de distinção, e, portanto, de crítica externa, também perde valor relativo. Sem hierarquia, não há diferença entre inventores e epígonos, para referir uma distinção moderna célebre. Antes disso, o que conta é a eficácia de divulgação de registros e testemunhos. Ou, para dizê-lo de outra maneira, a obra vale sobretudo como depoimento privado para leitores próximos, habitués da mesma “bolha”. Nesse ambiente de “subjetividade expandida”, como diz Tony Judt, qualquer crítica — ou “filtro”, como dizem no ambiente de rede —, é mal-vinda.
No limite, a questão a ser formulada agora é a de saber se, nas circunstâncias do presentismo, a noção de “literatura”, irreversivelmente ancorada nas de “valor”, “universalidade” e “crítica”, ainda pode guardar alguma funcionalidade no âmbito das sociedades contemporâneas.