Estação clínicas

Conto de Eltânia André
Ilustração: Carolina Vigna-Marú
01/02/2012

Foi o diabo quem a obrigou. Em delírio confessou que ardia como o fogo selvagem, um calor desconhecido e alucinante, a pele queimava como na fogueira de enxofre do inferno, então tirou a roupa para o Aquiles, patrão. Prometeu a salvação e os irmãos em oração, louvação, profecias, línguas estranhas, coitada está perdida, ela é filha do demo, as irmãs com suas roupas compridas, sua falta de vaidade, sua castrante cegueira, seus cabelos raspando o chão, e sambando nas bocas suas dentaduras, aleluiavam em coro clamando aos céus, entoando hinos, salmos e corinhos, deixa essa vida, Satanás… Inócuas todas as tentativas de expulsar seus demônios, a repetitiva e farisaica ordem contra o tinhoso emanava da boca de irmãs e irmãos posicionados com as mãos sobre sua cabeça, novamente o idioma sendo violentado e o “inimigo” sem dar trela. O pastor, homem bom, praticamente deu de sua melhor comida, daquelas de lamber o fundo do prato, ofereceu abrigo. Deus e o diabo se digladiando para tomar conta de uma vida desde cedo perdida entre o tumulto das paixões insanas e o tédio dos amores insensatos,

abre seu coração ao Senhor, minha
filha, não deixe que o devorador tome
conta de sua vida, irmã, o sangue de
Jesus tem poder, eu ordeno, quebra as
correntes agora, liberta essa vida, eu
clamo em nome de Jesus, ó derrotado…

(…) Essa gente tem mais medo do diabo do que fé em Deus.

Eu sou eu e minhas circunstâncias — gritou bem alto Ortega y Gasset. Quem não ouviu, que ouvisse. Que depois não venham dizer que eu não avisei. Não coloquem nas costas de quem não deve a culpa pelos seus fracassos. Somos o que somos, porque não sabemos o que fazemos de nós, o que deixamos que façam de nós. “São Paulo esfrega seu sexo na minha cara”, grita o CD no aparelho de som, enquanto tento procurar respostas para tantas interrogações. E o que esfrego na face intangível da realidade? O que faço para desfigurar-lhe o rosto sinistro, que cada dia me desafia com sua sisudez e suas tantas exigências?

“Cospe em mim, Cássia Eller”, diz a música. É preciso ir fundo como a letra fria, mas verdadeira da melodia que sensibiliza meus tímpanos e ressoa em minha consciência. E como o poeta que carregava sobre os ombros a dor do mundo, entre uma tosse tísica e o suspiro de suas viagens oníricas, que no início do século passado, quando uma guerra mundial estourou depois de sua morte em Leopoldina, não temia instigar-nos — “escarra nessa boca que te beija”. Quero também recolher minhas mãos hábeis, para não receber o gesto vil das que me afagam impunemente. Boa noite, Augusto dos Anjos!

A mesa dos sacrifícios se divide entre o medo do indizível e a solidão de não saber nada, nada, nada, nada… a pressão atmosférica da vida é um poço fundo onde a falácia de vozes não impede o vácuo. Um balcão de ouro habita o menor país. O bispo Edir empanturra os cofres impunemente. Os santos se embebedam num bailar contagiante. Seja em Pirapetinga ou Budapeste, os homens sofrem do mesmo jeito. E nenhuma religião terá sido suficiente para minimizar as suas dores. A literatura é que nos redime, é a palavra poética que nos faz crer que não acabaremos nunca (“Se não for pela poesia/ como crer na eternidade?” — Alphonsus de Guimaraens Filho). Quimbanda, umbanda e Padre Marcelo Rossi e Fábio de Melo distribuindo melodias como se percebessem o mundo. Mas à parte de tudo, a miscelânea de verdades prontas e certezas envelhecidas que envilecem o mundo. A melodia e a palavra são as únicas instâncias da liberdade — é nelas que o espírito, a consciência e a vida se expressam sem condicionamentos. Na voz de Caetano, Chico, Gil ou dos Beatles, nos acordes de Tom ou de Mozart, no canto afiado, enfrentando os quartéis, de Mercedez Sosa, Violeta Parra ou Geraldo Vandré, nos versos de Neruda ou Gullar, há mais ciência e verdade, há mais religiosidade e poder que nos templos e academias.

O cemitério repleto de jazigos onde repousam silenciosas as vidas que conhecemos e as que nunca vimos: é uma lição nova a cada dia. Ensina tanto como os aeroportos. As lições de partir e recomeçar. Nos mármores suntuosos ou nas covas rasas, nos mausoléus aristocráticos, ou nos jazigos sem arte — a morte nivela sem condescendência. E todos são os mesmos, crentes de sinagogas, fundamentalistas de mesquitas, budistas, católicos, terreiros. Entre divindades e orixás, o que resta é a certeza de que toda fé, todo sistema de pensamento, religioso o filosófico, são como os rios, que correm para um único oceano: o mar de dúvidas onde tentamos entender a passagem do tempo e a morte.

Quando o pavor consome a carne e o espírito, é apenas assim que se pode seguir? Pura tritura da hóstia e o pó em apenas um sopro pode romper as dissimuladas barreiras da fé que agoniza no ínfimo da alma que não quer conviver com a falta. O vazio existencial é o ser que fala, além do arco-íris, pois o infinito é maior ainda se não estamos com as mãos entrelaçadas aos amuletos dispersos ao redor do homem. Nas mãos vazias, límpidas, sedentas de vida, encontram alças para percorrer a viagem em terrenos áridos e pedregosos.

Oxalá! Assim seja! Amém!

Eltânia André

Nasceu em Cataguases (MG). É autora de Meu nome agora é Jaque (contos, 2007).

Rascunho