Na capa azul escuro do livro que reúne as traduções do norte-americano E. E. Cummings, um perfil do rosto do poeta, sereno, de olhos fechados, confronta a tradução de um de seus poemas, numa acareação a princípio desigual, entre poeta e tradução — e não entre o poema original e a tradução. Parece tratar-se de uma ironia e de uma homenagem. Uma ironia porque, na tradução deste poema, Augusto de Campos consegue tantos jogos de linguagem que acaba superando tecnicamente a versão original. O que não deixa de ser uma homenagem: a Cummings, que ganha uma tradução mais “cummingsiana” que o original, e à língua portuguesa, que realiza a obra — e o estilo — de um poeta da língua inglesa.
A tradução-arte a que se propõe Augusto de Campos procura traduzir o conteúdo e a forma do poema relacionados. Como em cada língua essa relação se dá de modos diferentes, poucas vezes é possível manter a mesma relação original entre forma e conteúdo. Assim, o tradutor, se quiser produzir, na tradução, um poema (em vez de uma paráfrase em outra língua), precisa responder o poema original com novas relações de forma e conteúdo, compensando a traição do traduzir. É necessário, portanto, criar mais uma vez aquele poema, exigindo, do tradutor, habilidade — e dom — de poeta.
Na tradução que se lê na capa do livro, por exemplo, a imagem (que constitui todo o poema) de um floco de neve sobre um túmulo é sintetizada, com imaginação tipográfica, no trecho final.
sobre um t
ú
um
l
o
(No original: “is upon a gra// v/ es/ t// one”.) A consoante “t”, isolada, ressalta, pela pronúncia oclusiva (ou seja, que interrompe momentaneamente o fluxo de ar da boca para se pronunciar), os sinais de interrupção da morte, ao mesmo tempo em que desenha uma cruz no papel. Já a vogal que segue, “ú”, é a única no poema que recebe um acento gráfico, recurso inexistente em língua inglesa. Com isso, ela acaba sugerindo, pelo desenho, o detalhe (fundamental, para o poema) do floco de neve, branco e efêmero, sobre um túmulo. E se o original termina, no último verso, enfatizando a unidade do floco de neve (“one”), a tradução devolve, embora com menos ênfase, a consoante “l” isolada no penúltimo verso, muito semelhante ao algarismo correspondente ao número um.
Minúcia construtiva
Tal minúcia construtiva contamina inclusive os sinais de pontuação, cujos desenhos servem a uma imaginação poética que prescinde da tradução. Num poema que descreve a fase nova da lua, o desenho do parêntese, destacado num verso, sugere a lua minguando, prestes a se tornar nova:
(lua começa A
)
A poesia de E. E. Cummings se aproxima curiosamente das pesquisas científicas que, na primeira parte do século 20, investigaram o mundo do muito pequeno: atômico, subatômico. Primeiro porque ela se baseia, em muitos poemas, na decomposição das palavras a um nível, digamos, submórfico (ou seja, menor do que o nível dos radicais, afixos e desinências). Assim, fragmentando o núcleo semântico das palavras, outros sentidos se irradiam, à semelhança da grande liberação de energia que a divisão de um núcleo atômico produz.
O trecho que representa as migalhas com que uma velha alimenta os pardais numa praça é exemplo disso: “mig alha/ sumaa umaado/ istrêsq uatroc/ inços eisp/ ard ai// s”. Nele, os grupos de letras são divididos independentemente da unidade das palavras (“migalhas uma a uma três quatro…”), seguindo, em vez disso, a lógica do número de letras (três letras, quatro letras, cinco letras…).
Outro motivo de aproximação com as pesquisas científicas subatômicas encontra-se no fato de que, quanto menor for o objeto observado, maior será a interferência do observador em seu posicionamento, já que luz emitida para visualizar uma partícula é uma onda eletromagnética que exerce uma força sobre a partícula, deslocando-a. Na poesia de Cummings, o olho do leitor precisa estar sensível a cada letra ou espaço em branco, de modo a movimentar o sentido dessas formas mínimas.
Mas tanto essa relação com a ciência do muito pequeno quanto o desafio da tradução tipográfica constituem uma herança da leitura que os poetas concretos construíram da obra de Cummings. Especificamente no caso de Augusto de Campos, que tem a carreira de tradutor marcada pela obra do norte-americano: seu primeiro livro de tradução, Dez poemas de E. E. Cummings, foi publicado em 1960, e desde então o poeta vem reunindo, praticamente a cada década, novas traduções, chegando a 74 poemas na coletânea recém-lançada pela editora Unicamp. Trata-se, portanto, de um trabalho tradutório que já dura pouco mais de meio século e parece fundamental na constituição da escrita de Augusto.
Microestrutura do poema
A princípio, a obra de Cummings interessou ao poeta paulista pelo que se poderia chamar, tecnicamente, de uma inteligência isomórfica na microestrutura do poema. É que ela, em sua vertente mais experimental, é composta por poemas que descrevem elementos simples do mundo: trem, lua, espelho, gafanhoto, gato, chuva, camisa, formigas, estrelas, pássaros, mosca, névoa, botão, jornal, abelhas. Ao descrever esses elementos, através do recurso da fragmentação das palavras e da motivação tipográfica, o poema procura imitar a coisa representada sem utilizar nenhum artifício além da língua e da tipografia.
Por exemplo, num poema que ecoa a cantiga “brilha, brilha estrelinha”, a cada aparição do verbo brilhar, uma letra diferente é destacada em maiúsculas, como a sugerir a cintilância inconstante do brilho das estrelas no céu: “brIlha”, “bRilha”, “Brilha”, “briLha”. Este procedimento foi privilegiado pela vanguarda concreta em detrimento do caligrama, um tipo de poema formulado pelo francês Guillaume Apollinaire que propunha que a mancha gráfica do poema desenhasse o objeto a ser representado, sobrepondo à escrita o artifício do desenho. O mérito de Cummings estaria em manter a autonomia tipográfica do poema em face da suposta facilidade do desenho.
Daí que a edição das traduções de Cummings vem acompanhada, nos diversos prefácios de Augusto de Campos para cada edição, de uma defesa da “verdadeira”, da “necessária” revolução poética de Cummings. Embora o valor histórico e a inteligência dessas leituras sejam muito evidentes, as transformações por que a poesia brasileira vem passando nos últimos 40 anos mostraram que a via única das vanguardas não garante a qualidade da poesia do futuro, sendo, na verdade, uma via possível — mas não inevitável — para a poesia.
Por isso a leitura de E. E. Cummings em nova edição dirige a atenção do leitor para a beleza dos poemas que não utilizam o recurso da fragmentação das palavras, mas, em vez disso, se compõem em versos longos, numa prosa experimental, lírica e seca, o que transforma a recepção que o poeta tem tido no Brasil. Tais poemas muitas vezes são imagens da própria obra de Cummings, como o do espelho quebrado, que se pode ler como metáfora das palavras quebradas do poeta.
cacos(no mais escuro
que mínimo é mais sujo
da cidade o menor
beco)de espelho
são cada qual(por que
a gente diz que é des
graça quebrar um)
céu por sua vez
Torna-se importante notar, portanto, que o privilégio inicial de Augusto de Campos na tradução dos poemas mais descritivos e fragmentados estava fundado na noção, fundamental à época para o programa da poesia concreta, de que o poema consistia num objeto de palavras. Como objeto, ele era produto de uma inteligência poética que investia nele técnicas inovadoras. Como objeto, era preciso reconhecer, por exemplo, o “equívoco” do surrealismo, que estava “comprometido até os dentes com o formal sintático convencional”. Como objeto, era preciso contrapor o poema à experimentação subjetiva que não implicasse experimentação formal.
Ora, em lugar de centralizar a novidade do poema na exclusiva experimentação formal, podemos entender que, como a forma e o conteúdo estão, em poesia, relacionados, a experimentação do conteúdo onírico do surrealismo também é um modo de experimentar a forma da arte. O poema como objeto sai de cena; o poema como performance é uma imagem que entende qualquer poema, por ser poema, como uma experimentação.
Eu lírico
No caso de Cummings, seus poemas líricos e de reflexão não abrem mão do testemunho de um eu lírico, de modo que, no conjunto de sua obra, é possível afirmar que ela se aproxima mais — teoricamente — das propostas do “Manifesto Neoconcreto” do que daquelas presentes no “plano piloto da poesia concreta”. Não será à toa que encontramos, no último livro de poemas de Ferreira Gullar, pequenos trechos “cummingsianos”, como no poema Abduzido, em que o apagar da luz se confunde com os versos cada vez menores:
e
apa
go
a
luz
Afinal, já encontrávamos a presença de Cummings — ainda que muito discretamente — na obra de Manuel Bandeira, que, no livro Mafuá do Malungo, compõe um poema à maneira de Cummings dedicado a Elizabeth Bishop. Além disso, em 2007 foi publicada uma pequena coletânea de traduções de poemas de Cummings, realizada por Adalberto Müller, Mario Domingues e Mauricio Cardozo (chama-se O tigre de veludo: alguns poemas). Nela, uma proposta tradutória um pouco diversa da de Augusto de Campos comparece, como um modo de reler a recepção do poeta no Brasil. Os mesmos versos de um poema são mais coloquialmente traduzidos por Mario Domingues (“curto meu corpo quando junto ao teu/ corpo”) do que por Augusto (“eu gosto do meu corpo quando está com o seu/ corpo”).
A curiosa dispersão da obra de E. E. Cummings pelo Brasil é, sem dúvida, fruto do pioneirismo de Augusto de Campos, que, com esse livro, produz a antologia mais completa do poeta em língua portuguesa. Com isso, a leitura do poeta norte-americano vai se descolando aos poucos da visão interessada e excelente que a poesia concreta produziu dele. Percorrer as superfícies textuais de Cummings é uma experiência única, de muita surpresa e sensibilização poética. Um laboratório do poema, a leitura deste moderno retorna como um jogo de equilibrar o poema na corda bamba da língua, no fio tênue que sustenta a relação infra-semântica de uma letra a outra.
n
AdacO
n
segue
s
obrEpas
s
ar o m
i
StéR
i
o d
o
silÊnci
o