Três novelas compõem O deus das avencas, livro mais recente de Daniel Galera. Cada uma a seu modo toca em temas como futuro, medo e incertezas. O mundo está condenado, parecem-nos dizer as histórias reunidas pelo autor. Independentemente do que aconteça com qualquer um de nós, com qualquer um dos personagens, nada ou pouco poderá ser feito. Aceitemos.
A novela O deus das avencas abre o volume. Na história, o casal Lucas e Manuela espera o filho que há de nascer próximo à eleição presidencial no Brasil. Embora não diga, tudo indica que é o pleito de 2018 que elegeu você-sabe-quem. Entre outras marcações temporais que auxiliam o leitor há o “Ele não”. Soou-me interessante a escolha em não dar nome ao candidato. Mais que um recurso literário, pareceu-me, mesmo, um ato de resistência. Tudo é político.
O narrador, em terceira pessoa, constrói uma angústia generalizada a partir da vida do casal. Ambos ligados às ciências humanas — ele, jornalista; ela, professora de literatura —, decidiram fazer do apartamento um casulo, uma proteção contra o mundo. Além disso, a criança deverá nascer numa espécie de parto humanizado. Há pouco contato com o exterior — como se lá fora não fosse um local ideal. A aflição que perpassa a narrativa também é percebida nos dois personagens. Eles pouco falam, é mais o narrador quem nos conta o que cada um deles viveu e vive até ali. A sensação é que, a partir da descrição de Galera, somos pressionados pelo tempo, pelo espaço do apartamento, pelo medo do futuro, talvez emulando o que sentem Lucas e Manuela.
A melancolia também dá as caras na novela de abertura, e isso toca quem viveu os anos recentes. A certa altura, Manuela, quando vai ao hospital, encontra-se por acaso com um grupo de pessoas que quer mudar a escolha de quem pensa em votar em você-sabe-quem. Essa cena carrega algo de poético, mas também de cômico. São jovens festivos em meio a um mundo que se perde, achando que vão mudar alguma coisa. Na prática, quem mudará algo, ou melhor, terá a vida mudada, é a mulher, pois terá um filho. O restante, a descrição da cena nos dá a entender, é mais uma tentativa fugaz de apreender o que é impossível. Em certo sentido, esse encontro entre grupos diferentes, entre aquilo que estava interno (o casal no apartamento) e o externo (os jovens) foi a busca por um alívio, por algum gozo. Um gozo que não chegará.
Eu, robô
Tóquio, narrada em primeira pessoa, é a segunda novela e se passa por volta de 2050 — em um mundo depois do fim. A história acompanha a saga de um protagonista não nominado que ainda busca se adaptar à realidade, ao planeta diferente. A sociedade agora vive numa relação entre humanos e objetos inanimados que podem ser humanos (pós-humanos?). Entre plantações criadas em apartamentos e uma São Paulo poluída, há uma busca constante por algo: a memória, o passado, o perdão. (Alou, Black Mirror, é você?)
Foi na capital japonesa que o narrador e a então namorada, Cristal, encontraram-se com a mãe do protagonista. A descrição desse momento é um dos pontos altos da narrativa, com um debate de ideias relativas ao dinheiro, à tecnologia, à luta de classes e à relação mãe x filho. É como se, nessa dialética envolvendo polos completamente opostos, residisse o último resquício de humanidade em uma vida sem os humanos, sem a forma que conhecemos em 2021.
A mãe do protagonista, aliás, uma empresária bem-sucedida, agia mais como máquina do que qualquer outra coisa — mesmo sendo pessoa. À la coachs que imaginam que a vida é apenas metas e objetivos, esse tipo de gente é, de certa forma, desumanizada. Noto, por conseguinte, que essa personagem com um quê futurista nos soa como um espelho. É no tempo presente que parte da sociedade funciona como máquina.
A “Associação de Pesquisas e Práticas em Pós-humanidades” também é um dos destaques dessa novela. Nela, pessoas buscam conexões com quem já morreu por meio de objetos inanimados que carregam. E isso, por si só, daria horas e mais horas de um debate que vai do tecnológico, passa pelo religioso e se entrelaça com o afetivo. Confesso ter sentido um pouco de estranheza nos momentos registrados nesse local, mas tudo bem. A arte tem disso.
Peste do sangue
Finalizando o livro, Bugônias apresenta um novo ambiente, o Organismo, e a relação entre as pessoas que vivem ali. Tal qual no livro Geórgicas, de Virgílio, as abelhas estão presentes na novela. Por meio delas, surge o necromel, uma mistura entre mel e nutrientes que elas extraem da carcaça dos seres humanos que morrem de forma natural. Das três narrativas, talvez essa tenha sido a que mais me impactou.
O Organismo tem regras próprias. Ali estão jovens e velhos; é uma espécie de nova sociedade, um recomeço. O objetivo é se manter isolado e, se possível, com poucas recordações do mundo passado — algo que leva a disputas de narrativas e poder. A Velha, por exemplo, não quer que haja história sobre o que já foi vivo; Alfredo, por sua vez, pensa o contrário. E é em meio a isso que Chama, a personagem que nos conduz, vive.
A doença do momento é a peste do sangue, podendo ser evitada apenas por meio do consumo do necromel. A comunidade parece viver bem, até que um dia chega um astronauta e vira todo o jogo. O que era verdade absoluta perde a referência. Não há certezas que não possam ser colocadas em xeque, e a novela nos prova isso.
Que mundo é esse?
Vale um registro quanto à carreira de Daniel Galera. Se na época do zine CardosoOnline, lá para o final dos anos 1990, e dos primeiros livros, no início dos 2000, a preocupação do autor envolvia mais sexo e bebidas — e não há nada de ruim nisso —, ao longo dos últimos anos a perspectiva dele mudou. Meia-noite e vinte, livro anterior ao O deus das avencas, apresenta um grupo de amigos que, em meio aos protestos de 2013, enxergam o mundo com a descrença de quem perdeu as esperanças.
Também quem acompanha o Twitter do autor, ou mesmo já assistiu alguma mesa literária com ele, sabe como a mudança climática e os problemas resultantes disso se tornaram uma espécie de obsessão para Galera. O volume de novelas, parece-me, é o resultado dessa fase.
O Galera de O deus das avencas se firma como um autor maduro, que evolui livro após livro. Os personagens têm lastro no presente, mesmo quando apontam para outro momento. É o jornalista que faz freelance, é a professora que decidiu não discutir com o pai por causa da política, é o fim dos alimentos como conhecemos, é a necessidade de novas interações com o meio ambiente. Pode assustar no começo, mas vale finalizar as três novelas.
Por último, mas não menos importante, registro, mesmo que de passagem, que tem havido na literatura contemporânea brasileira uma maior preocupação com temas como futuro, morte e meio ambiente. De cabeça, lembro-me de dois outros livros: Velhos demais para morrer, de Vinicius Mariano Neves, que resenhei na edição de abril de 2021 do Rascunho, e A extinção das abelhas, de Natalia Borges Polesso. Que mundo é esse em que vivemos? Talvez não saibamos exatamente, mas a ficção, de alguma forma, busca dar essa resposta ou ao menos ampliar as possibilidades de questionamentos.