Poemas de Wanda Monteiro

Leia os poemas "No depois da senda das palavras" e "sem titulo"
Wanda Monteiro, autora de “A liturgia do tempo e outros silêncios”
01/11/2021

No depois da senda das palavras

I
Corpos desgarram-se da super-
fície para onde não há camadas protetoras:
para além do tempo divisível: para além do espaço de-
marcado

negam limites: vagam desertos: glaciais: gravitam circundantes sobre i-memorial esfera

algo inominável se expande
: outro atalho existencial

II
Espectro: turva lâmina a rasgar o
espaço: fraturar o tempo em sumi-
douro portal: nele a contrafação das certezas: entremundos de dúvidas: antAgonias

ser o corpo espelhado
ser a traição do reflexo: o registro pretérito na escura câmara do olho: a imagem futura

no milagre do espelho: o silêncio
o não dito

III
Do vítreo ao visgo
as aparências se avizinham

O que é o céu senão veios espelhados
do pensar

O que é o chão senão o crânio estilhaçado
depois da queda

IV
Ilha: a lexiocografia diz daquilo que é isolado
ilha a palavra: aprendi em tenra idade

minha primeira escuta diz de ser ilha o muro, a varanda, o alpendre: a casa feita de paredes,
janelas, portas e feita de quintal

o quintal: portal para o céu, para a lua e para o sol que nunca foi rei e sim rainha: rainha de luz e fogo: assim dizia a mãe: “mania dos homens de matar o feminino do mundo”

de ilha — meu pai dizia de sermos nós: a carne que nos abarca: a barca: trama de tecidos: malha de artérias: a serpente: milhares de metros cúbicos movendo-se feito boiúna sanguínea nadando, rasgando, devorando o tempo: oroborus

a barca abarca a malha, a trama, o lastro:
oito litros de sangue
oito litros de vícios
oito litros de memória
oito litros de tempo
oito litros de guerra

de mim, digo ser essa guerra

eu, ilha dentro da ilha
desaprendi o rito de não seguir e
de sempre ficar: desaprendi de ser ilha: aprendi a partir, atravessar feito raio mordendo horizontes curvos; infindos: atravessar a clandestinidade das horas de um chão derruído

atravessar e ver
o onde não há fastio de palavras
o rio partir sem nunca voltar
a estação vingar
a chuva cair pra florir

V
? como atravessar o agora se o agora é esse sem nome: essa clareira que se esparrama em amplidão de ausências: esse quando de saudade que engasga, reflui e dói à exaustão?

há certas coisas que carregam consigo os silêncios

no agora, com o agora e sobre o agora
esse mundo carece de ser nomeado

Neste anverso insone e branco
irrompe a vertigem da palavra

do que somos feitos senão da palavra

a palavra esse animal feroz
que engole as noites
negro jaguar que a tudo forma
no frêmito dos instintos
no tumulto dos sentidos

a palavra esse onde
que no abismo da luz
consuma o gesto que liberta
o início

Wanda Monteiro

Nasceu à margem esquerda do rio Amazonas, em Alenquer (PA). Autora de O beijo da chuva (2008), Anverso (2011), Duas mulheres entardecendo (2015), em parceria com Maria Helena Latinni, 2016; A liturgia do tempo e outros silêncios (2019), edição bilíngue para o espanhol (2020).

Rascunho