Fortes estranhamentos

A relação entre vida e arte é o eixo central da proposta estética que norteou a produção de Antônio Fraga
Antônio Fraga, autor de “Desabrigo”
01/08/2009

Desabrigo, de Antônio Fraga, publicado pela primeira vez em 1945, continua sendo um desafio para escritores, leitores e críticos. Considerado por autores ilustres como Oswald de Andrade como marco importante de uma nova literatura, objeto de estudos acadêmicos, é reverenciado pela literatura contemporânea como ícone da irreverência e da crença na literatura como instrumento de liberdade para as vozes condenadas ao silêncio pelo cânone oficial. É, portanto, um caso a considerar com seriedade dentro de uma perspectiva histórica de uma tradição literária como a nossa. Paradoxalmente, à margem e, ao mesmo tempo, no centro de velhas questões, insere-se obrigatoriamente na nossa história cultural. Por mais anacrônica que possa parecer sua narrativa, mais o passado se faz presente e adentra pelos becos, vielas, ruas e esquinas dessa cidade das letras e dos homens, cujas vidas parecem precisar da palavra, de testemunhas e de narrativas para conquistarem sua legitimidade.

Inútil enquadrar esta “quase novela” em qualquer ismo já conhecido ou estabelecido. Tudo parece indicar que há nessa proposta estética uma singularidade que intimida e provoca fortes estranhamentos. Isto trouxe como conseqüência certa ilegibilidade e, portanto, isolamento do circuito das belas letras. Este é sempre o preço a pagar quando se determina a pôr em prática um projeto sem qualquer possibilidade de concessões. O desafio de sua leitura é, antes de mais nada, compreender os elementos que continuam estabelecendo elos do nosso passado literário mais remoto com esse presente em curso através da pluralidade de vozes que se manifestam na obra de Antônio Fraga.

Como essas vozes ensaiam caminhos e percursos labirínticos no texto que se inscreve num tempo histórico determinado, mas se propõe a transgredi-lo? Foi escrito na década de 40, publicado ainda sob os ecos das metralhadoras da Segunda Guerra Mundial, das britadeiras de demolições do centro da cidade e das perseguições do Estado Novo, no Rio de Janeiro das grandes reformas urbanas. O texto transita do debate dos primeiros modernismos heróicos, dialoga com a tradição canônica e elitizada do bom português falado e escrito, namora as utopias sem panfletos, num momento em que a geração de 45 se afirma criticando ou tentando aparar arestas dos radicalismos dos anos 20.

Proposta de vanguarda
O texto, em si, é construído num código pouco familiar ao mundo acadêmico. É a realização radical de uma proposta de vanguarda quanto a linguagem e a perspectiva social e política. Como diria Manuel Bandeira, farto do lirismo comedido, do lirismo bem comportado: “Eu quero o lirismo dos loucos/ o lirismo dos bêbados/ o lirismo difícil e pungente dos bêbados”. Através de sua obra, atestamos uma tomada de posição solitária, solidária e empática ao lirismo difícil e pungente dos bêbados, marginalizados, silenciados pelas vozes do poder vigente. Desabrigo é, portanto, um manifesto que se inscreve não apenas pela afirmação teórica de preceitos, mas pela habilidade de colocar em prática vários enfoques de diferentes pontos de vistas que dialogam entre si, através de personagens que se expressam como desvalidos e marginalizados. É um lirismo difícil também porque é datado, diz respeito a um tempo que se perdeu nas demolições da praça Onze, do mangue, e das adjacências para a construção da Cidade Maravilhosa que hoje conhecemos. É a tentativa de registro desse tempo que desmoronava e que como elemento teimoso resistia na fala de seus personagens mais malditos. Vagabundos, malandros e prostitutas desta época já não são mais os mesmos que transitam em nossas favelas ou centros urbanos. Os códigos, as gírias, as sintaxes de exceção e os barbarismos são outros.

Talvez o que ligue um tempo aos outros talvez que se sucederam na voz de nossos escritores contemporâneos seja a vida, o desespero, a necessidade de “um vastíssimo berro do ipiranga em prol da liberdade estética” e social. Talvez seja essa marca suja da vida que garanta o eterno retorno da leitura de Desabrigo e o resgate da obra de Fraga num país sem memória e sem apresso a seu patrimônio cultural mais caro.

Numa tomada intertextual, o narrador cita, entre outros, Unamuno na discussão “clássicos e modernos”, num viés, de certa forma, romântico que ficou de herança para modernismos e vanguardas: “La vida es lo que hace la obra de arte… Sin vida, no perdura… Vivamos, apasionada y livremente, nuestro tiempo”. A relação simbiótica entre a vida e arte é o eixo central dessa proposta estética que norteou a produção de Antônio Fraga, aspecto evidente em seus textos escritos, depoimentos e fragmentos de vida. A professora Maria Célia Barbosa Reis da Silva, em Antonio Fraga — personagem de si mesmo, aprofunda essa questão, e tem como maior mérito o de resgatar a história desse personagem das nossas letras que, mesmo tantas vezes relegado ao silêncio e ao esquecimento, deixou suas marcas em muitos dos nossos consagrados e reconhecidos valores literários.

A luta dos personagens
Desabrigo divide-se em três partes: Primeiro round, Segundo tempo, Terceiro ato. Esta divisão traz por sua caracterização três aspectos importantes da ação na qual se movimentam os personagens: primeiro, a luta; segundo, o jogo; terceiro, a dramaticidade teatral. Essas partes se relacionam entre si pelas personagens que se movimentam pela cidade no mais completo desabrigo. Lutam, jogam e dramatizam a vida em seus encontros, desencontros e desatinos.

Evêmero, enquanto personagem, pretende-se escritor das ruas e dos becos, das prostitutas do mangue, dos vagabundos, malandros e bêbados do Estácio e das ruas da cidade, sentir e testemunhar seus amores e suas dores, seus silêncios, seus gritos e sua linguagem. É assim que, cambaleando bêbado pelas ruas, fala, do seu projeto para um poste que “só tinha tamanho e safadeza”:

— …vou escrever ele todo em gíria pra arreliar um porrilhão de gente Os anatoles vão me esculhambar Mas se me der na telha usar a ausência de pontuação ou fazer as preposições ir parar na quirica das donzelinhas cheias de nove horas ou gastar a sintaxe avacalhada que dá gosto do nosso povo não tenho de modo nem um que dar satisfações a qualquer sacanocrata não acha?

Claro que o poste não se manifestou de imediato, “nem deu confiança pra evêmero e atravessou a rua todo circumcisfláutico feito um gentlemem”. Só depois de um xingamento de Evêmero, resolveu revidar: “— Your self ye son of a bitch”. As gírias, a ausência de pontuação ou as preposições que vão parar na quirica das donzelinhas cheias de nove horas dessa sintaxe avacalhada que dá gosto do nosso povo dão a tônica ao texto. Mas não se constitui em sua principal fonte de irreverência, são signos de relação com uma realidade que se pretende registrar como ponto de resistência de um mundo que está se perdendo, de uma língua que não tem prestígio, mas que busca sentido e se inscreve na sua luta pela sobrevivência e pela dignidade.

No primeiro round, ou seja, na primeira parte, os personagens principais são apresentados e a luta é estabelecida. Cobrinha e Desabrigo se encontram: “Alta madrugada oscar pereira vulgo desabrigo topou na rua benedito hipólito com seu velho desafeto amauri dos santos silva mais conhecido na zona do canal e redondezas por cobrinha”. O narrador aí é implícito e só mais adiante surge enquanto o andarilho e personagem evêmero. A luta iniciada por um sururu no mangue entre Desabrigo e Cobrinha, continua em várias direções. Nas esquinas da cidade encontra-se malandros, vagabundos, prostitutas, afetos e desafetos, mas também diferentes ponto de vistas quanto ao fazer literário. A luta se desenvolve e intensifica com superposição de fragmentos, opiniões e debates metaficcionais ou metalingüísticos encenados por representantes de diferentes posições. Nessas esquinas da cidade das letras, Campos de Carvalho, Anatoles, José Guerreiro Murta e Evêmero e seus diferentes pontos de vista digladiam-se. O primeiro round da luta entre Desabrigo e Cobrinha é interrompido por um camelô que se aproveita do ajuntamento para vender sua “loção mercúrio”.

No segundo tempo, o jogo prossegue e algumas das regras de leitura ficam mais claras. Margô e Durvalina, as prostitutas entram em cena, Evêmero e Anatole se encontram, Miquimba contrariado com Margô e com a vida convida Desabrigo para uma partida de sinuca. Durvalina cidade das letras se de para uma partida de sinuca carvalho, anatoles, ev por cobrinha. dmens, cujas vidas precisam de  busca proteger Desabrigo sem alarde, apesar do rompimento. Poetas e vagabundos jogam, conversam e se embriagam no bar “flor do estácio”.

No terceiro ato, a cidade é mais que cenário, é personagem, é a vida que se descortina num palco de representação da tragédia cotidiana. Dentre a polifonia de vozes que dialogam constituindo esse tecido, encontra-se Evêmero, como o poeta grego humanizava os deuses, ele busca divinizar os homens tão perdidos em suas fragilidades. Neste sentido, o “punto di vista” de Pirandello em Seis personagens em busca de um autor encontra-se invertido na perspectiva de Evêmero, que se caracteriza ao final do terceiro ato dessa tragédia como um autor em busca de seus personagens, em busca do cenário para seu drama, do tempo perdido, do espaço roubado, da cidade aprisionada em novos projeto: “Cadê a sara saracura o coisa o miquimba o velho bonzão na cuíca o rio de janeiro do meu tempo que não é o tempo do senhor luiz edmundo? lco de representaça luta pela sobrevitaxe avacalhado que djogam  …Cadê meu irmão desabrigo cadê?” Só a voz do Verbo ainda respondia qualquer coisa: “Eu acho melhor que em vez de tar berrando aí feito bezerro tu faça alguma coisa”. Não foi feito um esbregue danado de medonho ou uma revolução como cogitou Evêmero. Mas Desabrigo foi metralhado na reminton, no eterno retorno do mesmo que como a Fênix renasce das cinzas ou como Dionísio se reconstrói em fragmentos. Está aí para ser lido e relido, discutido na embriaguez, na festa, no riso, na afirmação da vida pela arte e da arte pela vida, mais uma vez.

Desabrigo
Antônio Fraga
José Olympio
207 págs.
Vilma Costa

É professora de literatura.

Rascunho