Uma espécie de relatos de sobreviventes

Texto ágil e simples, sem ser simplista, conduz narrativas sobre perda nos contos de "Cine privê", de Antonio Carlos Viana
Antonio Carlos Viana por Osvalter
01/08/2009

É possível entender toda narração como a história de quem sobrevive, principalmente se o parâmetro for Cine privê, de Antonio Carlos Viana. A obra reúne 20 contos, 18 inéditos, um deles, Santana Quemo-Quemo, publicado ano passado nas páginas deste Rascunho — no caderno Dom Casmurro.

O Raimundo Carrero, excelente escritor, não menos excelente teórico e professor de criação literária, comentou (na edição anterior deste jornal mensal) que o que pega mesmo, independentemente das palavras (literariamente falando), é a visão de mundo de um autor.

E no fundo é isso aí: como o escritor vê o mundo? Nos 20 contos de Cine privê, o leitor não tem dúvida: o mundo, pela ótica de Antonio Carlos Viana, é um lugar difícil, em que haverá perdas, muita dor — e isso (essa visão de mundo) será apresentada, nos 20 contos, pela voz de algum sujeito que era mais novo e um tanto frágil (quando experimentou a tragédia que narra).

Variações
Em Santana Quemo-Quemo o que se lê é relato dos que perderam um barraco, demolido. Duas coxinhas e um guaraná traz a confissão de quem assassinou a mãe e, posteriormente, comeu duas coxinhas e bebeu um guaraná.

No conto que empresta o título ao livro, o narrador ganha a vida limpando cabines em que pessoas se masturbam vendo filmes pornográficos.

Um filho revela a sua “falta de jeito”, para tudo, falta de jeito essa apontada pelo olhar do pai, em Quando meu pai voltou.

Uma garota de programa suas aventuras noturnas em O terceiro velho da noite, da mesma maneira que uma empregada doméstica conta as suas desventuras diante da tirania de uma patroa exploradora em Maria, filha de Maria.

Desde muito
Pode parecer óbvio, e a tendência é que algum leitor fale que o comentário a seguir não passa de obviedade, mas foi lendo Memórias: a menina sem estrela, de Nelson Rodrigues, uma edição recente da editora Agir, que uma constatação, revelação, epifania, viabilizou-se (para mim): o texto (mesmo o literário) não precisa de firulas, contorcionismos, palavras esdrúxulas e vaivéns para ter bossa.

A prosa de Nelson Rodrigues (essas crônicas reeditadas são um exemplo) é feita de palavras simples, construções até previsíveis, mas há um sujeito que pensa ali — a voz e a visão de mundo de Nelson Rodrigues, apesar da “simplicidade” do texto, provocam impacto, comovem o leitor.

Os textos de Antonio Carlos Viana também são simples. Durante esse convívio com o livro Cine privê, algo em torno de 30 dias, antes da produção dessa resenha, passei pelo menos uma semana em pânico.

Pânico sim, essa é a palavra que pode tentar traduzir a sensação em que o chamado “meu eu” se encontrava. Eu lia os contos, relia, e ficava besta. Me perguntava: mas e daí? Não são textos simples?

De fato, os textos são simples. Mas é uma simplicidade construída, articulada e que merece ser festejada. Viana narra histórias como se elas, as histórias, estivessem aí, no mundo, e no imaginário, desde muito, desde sempre.

Esses narradores, que são parecidos, são “pequenos”, são frágeis, parecem “apenas” relatar experiências que tiveram. Depois do ocorrido, eles, os narradores, em cada um dos contos, “apenas” contam, como se fosse o relato de sobreviventes, como se a mão do narrador não estivesse ali, firme, presente — como se tudo estivesse fadado a acontecer e, então, a ser enunciado.

Nuances
Sentimentos humanos ganham complexidade, por meio de olhar não-óbvio, em vários desses contos de Viana. Por exemplo, em A velhice chega de mansinho, a narração é feita pela voz do filho de um casamento desfeito. A mãe abandonou o pai e fugiu com um rapaz. Desde então, o pai odeia, não a mãe, mas o filho, que se parece com a ingrata adúltera. “Meu pai tocou sua vida como se eu nem fosse seu filho.”

O hoje chamado auto-engano, mas que possivelmente deve se manifestar desde o início da aventura primata nesse planeta, é problematizado em Minha avó Inocência. A avó, do narrador, a Inocência, não assimila o fato de um de seus filhos (tio do narrador) ter morrido e vive, desde o acontecimento, como se o acontecimento não tivesse acontecido. “Para seu bem-estar, ela tinha ido buscar refúgio num tempo que para ela era o mais feliz. Ainda bem.”

Certo humor, não esse de provocar gargalhadas, nem barulhos externos, no máximo um riso no canto dos lábios, um maravilhamento interno — esse humor se faz presente em diversos contos de Cine privê, e o momento de maior “realização humorística” acontece em Angeline.

O narrador confessa que estava impotente devido ao relacionamento com a companheira anterior. Até que encontra a solução nas páginas de jornal. Outra mulher, sexo pago, e saída para os impulsos inconfessáveis: o renascimento do tesão.

A temporada não dura muito, mas é eterna enquanto se faz. “Encontrei a mulher certa, que me dá tranqüilidade por algumas notas de real.”

Desilusão
A desilusão é algo que acompanha vários, praticamente todos, os narradores de Cine privê. Afinal, depois de terem vivido situações em que se frustraram, eles revelam, eles afirmam, mesmo que indiretamente, que o passado foi imperfeito. E a maneira como contam, re-constroem, os seus mundos em ruínas tem muito de desilusão.

O conto Esperanza, com a ironia já no título, é a saga de um menino apaixonado pela atração do circo. Pobre, esse narrador vendia produtos carregados em cima de sua bicicleta. Durante uma tarde, ele procurou e encontrou, ou supôs que encontrou, a mulher que tanto desejava. Conseguiu transar com ela. Mas teve de pagar o preço que foi perder a inocência, sob vários pontos de vista.

Suicídio, misticismo, sobrenatural, amores impossíveis, perda da fé, o final da existência e o desmanche de famílias são outros temas que ganham o foco do autor e recebem tratamento literário nesse livro que, de fato, chama a atenção porque parece que o narrador nem está ali.

Mas, depois da última página, e de alguma reflexão, evidencia-se a opção estética de Viana: não “aparecer” (com malabarismos) para, então, fixar-se na memória do interlocutor e na malha literária brasileira como uma voz inconfundível, pelo que há de único no simples, que é belo e não se esquece.

Cine privê
Antonio Carlos Viana
Companhia das Letras
124 págs.
Antonio Carlos Viana
Nasceu e vive em Aracaju. Residiu em outras cidades, Rio de Janeiro, Paris e Porto Alegre são algumas delas. É mestre em teoria literária pela PUCRS e doutor em literatura comparada pela Universidade de Nice. Ganha a vida como professor universitário e tradutor. A Companhia das Letras, que publica esse Cine privê, já editou dois outros livros de contos de Viana: Aberto está o inferno e O meio do mundo e outros contos.
Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

Rascunho