Um jardineiro que ama as plantas e se devota aos livros. Lê-os de modo contumaz, enquanto mastiga o pão, fruto de seu trabalho operário, digno suor de quem aprendeu a contentar-se em colher apenas o dia de hoje, num ritualístico carpe diem, em que tudo tem que ser agora, sem nenhuma perspectiva de amanhã.
Numa fusão sinestésica entre o alimento do espírito e o do corpo, habitua-se a ler, às refeições, virando “páginas dóceis, a bocados lentos”.
Mais do que um ser atento e paciencioso, no cultivo de quem aprendeu a ler as árvores a que se dedica, é um homem que ama a palavra. E, aos poucos, nos convence de que os homens, assim como as plantas, precisam de um olhar que saiba vê-los, da sensibilidade de quem se curve, com serena humildade, a fim de colher suas sementes e, acima de tudo, suas histórias.
Esse é o protagonista do romance Três cavalos, de Erri De Luca, um autor singular na narrativa italiana contemporânea. Singular, por não ser facilmente classificável, por não se vincular a tendências ou modismos estéticos. Deixa-se escapar, intencionalmente, a qualquer enquadramento que tentem lhe impor e não tem resposta quando lhe perguntam a que gênero literário esta ou aquela obra pertencem.
Napolitano, deixa transparecer em sua matéria ficcional a importância do Sul, por exemplo, na voz de um seu personagem, que pendura um mapa mundi de ponta cabeça na parede, com a Antártida no alto, e afirma: “os do norte ficam apatetados ao verem seu belo planeta de cabeça para baixo. Para nós, ao contrário, o mundo está assim, com o Sul no alto”.
Desse modo, com o Sul no alto, Erri De Luca assume a voz meridional dos que não têm vez e nos instiga, com uma vasta produção literária, que abrange, significativamente, até a tradução de textos bíblicos do Velho Testamento, referência fundamental à compreensão do que cria.
Sua vida é, também, digna de nota. Vindo de uma família de classe média, aderiu aos ideais políticos de 1968, largou os estudos e tornou-se operário, trabalhou na Fiat, foi caminhoneiro e pedreiro. De alguma forma, ao eleger o trabalho manual, o do homo faber, em muitas de suas obras, aproxima o ofício do operário ao do escritor, conciliando arte e vida.
Urgência do presente
O jardineiro narrador, em Três cavalos, elege o tempo verbal do presente para contar sua travessia. Essa urgência do presente, carpindo o dia no jardim e, também, no texto, é o lenitivo que ensina a deixar para trás um passado ao qual não se quer voltar.
Nada na obra é explicito ou se revela de antemão. Como se fôssemos abrindo, com dificuldade, os parênteses da vida misteriosa e contida do jardineiro é que descobrimos que está de volta à Itália, sua terra natal, depois de um longo período de perseguições e mortes na Argentina, à época da ditadura militar. Sabemos que, para lá, fora por amor a uma mulher que perde, vítima da violência, tornando-se, também ele, outra vítima, entre as tantas desaparecidas no país:
Matam todos nós, da resistência.
Corremos de um esconderijo ao outro.
Trazemos no corpo o cheiro do medo. Na rua os cães o farejam e nos seguem.
Na fuga procuramos alguma vingança.
A Argentina arranca do mundo uma geração sua como uma louca arranca o cabelo. Mata os seus jovens, quer passar sem. Nós somos os últimos.
Estou aqui há anos por amar uma mulher e agora estou em guerra.
Há um passado, do qual o narrador pretende fugir, tentando, de toda forma, se reinventar, criando uma nova identidade, capaz de apagar os espectros daquela primeira vida. Mas a morte continua rondando, à espreita.
Cumpre observar que essa inclinação ao uso reiterativo do presente, mesmo quando volta, em flashback a flagrantes pontuais de cenas do passado, parece traduzir o desconforto do protagonista ao lembrar. O fluxo da narrativa, então, assim como a consciência do narrador, não quer se sujeitar aos apelos da memória. Daí por que não possa e não queira ceder espaço a qualquer outra forma de narrar que não seja a de resistir aos chamados do que foi, com os apelos do que está acontecendo agora. Já que é impossível esquecer, apagar da memória uma vida que se queimou em cinzas, que venha o presente, com sua força, com seu remédio, planta curativa para as dores da alma.
Dessa tensão entre o passado, que se represa como dique, e o presente, que se esforça por imperar, obtém-se o efeito de um narrar acuado, ofegante e denso, talvez como o da respiração dos passos fugitivos daquele eu guerrilheiro de outrora, que o jardineiro de hoje pretende sepultar, com as mãos enfiadas na terra.
Talvez daí também se intensifique a condensação da linguagem que toca o poético, nos modos concisos de narrar, o que parece ser uma das marcas do autor. Uma busca do essencial, de um desnudamento da palavra, que não por isso se banaliza, antes se mostra límpida, sem se esconder atrás das máscaras da excessiva adjetivação:
Há em mim o que se encontra em muitos homens do mundo, amores, disparos, algumas frases cheias de espinhos, nenhuma vontade de falar nisso. Nós os homens somos dúzia. Especial é só viver, olhar à noite a palma da mão e saber que o amanhã volta novo outra vez, que o alfaiate da noite cose pele, remenda calos, conserta os rasgos e desincha a fadiga.
Escuto palavras minhas vindas à voz sem mim.
Essas palavras ele diz a Laila, amor que encontra na segunda vida: “voltou-me a acontecer amor, por isso penso no primeiro, enquanto tomo trem de novo”. Mas nem aqui encontrará redenção. O passado volta com a mesma força do destino trágico e o arrasta à condenação da morte, mais uma vez. Agora, a de ter que matar o homem, que detinha o poder sobre a mulher que está amando, na realidade, uma prostituta.
A última parte do livro concentra-se no preparo minucioso do protagonista que precisa, para salvaguardar o presente, encontrar-se com aquele tão temido eu do passado, o fantasma do guerrilheiro deve vir em auxílio do operário do jardim. A causa, sempre a mesma, é nobre: amor. Inevitável: os tempos de Argentina vêm ao encontro deste tempo presente. A força descritiva do epílogo investe no detalhe, adquirindo uma nova cadência, como se passado e presente se reconciliassem:
Eu deveria ir para casa e dormir em cima disto e voltar a pôr as mãos no bolso como antes de Laila. Antes dela eu sei o mal de matar e agora posso poupá-lo a ela. Vou e improviso esta mesma noite, como na Argentina.
Enquanto isso os nervos se endurecem.
Creio poder atacá-lo, atirá-lo ao chão. Se tiver uma arma no corpo uso-a, se não, me arranjo.
Sinto uma força desenfreada subir à boca do estômago e uma calma na cabeça mais sólida que a de então. A Argentina não vai embora do corpo, só um pouco de pêlo voltou a crescer sobre a úlcera da guerra e dos assassinos.
E chega uma mulher que à primeira vista sabe quem sou e não se desgosta, mas me escolhe e volta a me colocar no compartimento infame.
Mas a reconciliação dos tempos é só aparente. O passado, com suas garras afiadas, vence. A morte ocorre, dessa vez, mas não pelas mãos do protagonista que se preparara para tanto, mas sim pelas de seu melhor amigo, um africano que, em gesto de gratidão, resolve doar a própria liberdade, assumindo o fardo do assassinato.
Ainda que travestido em nova roupagem, o destino que se anunciara antes volta cíclico. O jardineiro, que queria apenas colher o dia, “com a cabeça entre os pés… dobrando a nuca sobre a terra, tendo por ela mais desvelos que para os homens”, se sente morrer, pela segunda vez, em vida.
Consoante com o título do livro, proveniente de uma cantilena da Emília-Romanha, a vida de um homem equivaleria, em média, ao tempo de vida de três cavalos. Ao final, dá-se conta de que já enterrara dois deles, duas duras mortes, numa mesma vida…
Agora, mais do que o presente para tentar curar as feridas do passado, restam os livros e as palavras:
Na escuridão da cozinha morre o meu segundo cavalo…
Pego o livro marcado onde parei, reponho-me em sua andadura, na respiração de um outro que conta. Se eu também sou um outro é porque os livros, mais que os anos e que as viagens, deslocam os homens.
Depois de muitas páginas acaba-se por aprender uma variante, um movimento diferente do praticado, que se acreditava inevitável.
Afasto-me daquele que sou quando aprendo a tratar de outro modo a mesma vida.
Barbeio-me em pouca luz o rosto molhado e a navalha experimenta uma outra maneira de passar na pele.
Ponho o livro no bolso de dentro do casaco, fixo-o no peito a partir do interior. No velho lugar da arma agora há uma coisa completamente diferente.
Quase como uma ode ao ato de ler, o final surpreende e toca o início, em que a primeira cena é a do narrador, lendo. Induz a uma reflexão metaliterária sobre o poder dos livros e da literatura na vida dos homens, em que a verdade é a de que, diante do deserto, só a palavra salva.
A face feminina de Deus
Em nome da mãe, outra obra de Erri De Luca traduzida para o português, pode ser analisada como uma releitura do mistério da natividade cristã, desde a concepção de Jesus até seu nascimento na manjedoura.
Nesse sentido, dialoga com outras obras literárias, teatrais e cinematográficas que tocam o tema, tais como O evangelho segundo Jesus Cristo de Saramago, A última tentação de Cristo de Nikos Kazantzakis, adaptado para o cinema por Martin Scorsese, Je vous Salue Marie, de Godard, para citar algumas.
Nítida correlação, também, pode ser estabelecida entre a estrutura do livro, dividido em estâncias e cantos, e certos textos do teatro medieval, que se prezavam à encenação popular das verdades bíblicas, como os “autos de Natal”.
O texto de Erri De Luca, no entanto, toma outro rumo. Concentra sua poeticidade, na voz de quem o autor escolhe para contar a história: Miriam/Maria, a face feminina de Deus. Daí porque, logo no preâmbulo, justifique: “Em nome do pai inaugura o sinal-da-cruz. Em nome da mãe inaugura-se a vida”.
Importa notar, como presença favorável à composição da obra, o hebraísmo adotado pelo autor. Explícitas referências bíblicas, nomes dos personagens no original hebraico, citações dos livros do Deuteronômio, Eclesiastes, dos Números são índices da ambientação que se quer criar.
Mais ainda, interessa perceber o contexto histórico, aqui bem representado por uma vivência estrita do judaísmo à época da ocupação dos romanos. Iosef é quem melhor encarna ao longo da narrativa o descontentamento do judeu médio, diante daquela opressão.
O simples fato de aceitar a gravidez de Maria, sua noiva virgem, diante de todos, sem querer apedrejá-la (como de costume, em caso de adultério), torna-o cúmplice do mistério da concepção e o posiciona, frontalmente, contra as calúnias dos demais e contra os donos da lei.
Vale conferir a sensibilidade com que o personagem José é construído pelo autor. Embora a voz narradora seja a da mãe, a figura do carpinteiro revela uma coragem rústica, capaz de ir às últimas conseqüências, para salvar o nascimento daquele filho que não é seu, num legítimo ato de fé.
Ao atribuir voz à mulher Maria, o autor propõe uma reflexão da condição feminina à época, em contraposição ao rigor do universo masculino: “os homens conhecem a história sagrada melhor que as mulheres, podem estudá-la, nós não podemos”.
Mas o que justifica essa opção, acima de tudo, parece ser a correspondência entre a palavra e a criação, uma vez que o mistério da concepção, aqui, é traduzido, simbolicamente, por um vento que sopra: “o vento da palavra”. Analogamente, lembramos São João, em seu Evangelho: “No princípio era o verbo”. E Maria afirma:
Com a gravidez cresceu meu gosto pelas palavras, pela importância delas. Entendo melhor os homens, que têm tantas. Deve ser o menino que me ensina, ele, que foi plantado em mim com um anúncio, com as palavras de uma bênção.
Maria se humaniza
A prosa poética de De Luca se intensifica na última parte, quando depois de dar à luz ao menino, Maria hesita.
De fato, um dos traços mais conhecidos da personalidade da mãe de Cristo seria o da sua capacidade de aceitação, a da mater dolorosa. Ao romper o pacto de subserviência à vontade de Deus, o autor inverte os papéis, fazendo com que ela saia da posição de santa para a de mulher.
A tensão do epílogo, assim, é criada pela exposição do lado humano de Miriam/Maria que, ao intuir o calvário pelo qual deverá passar seu filho, pede a Deus que o livre, em situação análoga ao episódio de Jesus no Jardim das Oliveiras, quando diz: “Pai, afasta de mim esse cálice!”:
Senhor do mundo, abençoado, escuta a prece da tua serva que agora é mãe. Quando nasce uma criança, a família faz votos de que ela se torne alguém, inteligente, se distinga dos outros. Faz com que não seja assim. Faz com que esse arrepio que subiu por minha espinha, esse frio vindo do futuro, fique longe dele. Chamo-o Ieshu, como desejas, mas não o reclames para nenhuma missão tua. Faz com que ele seja um filhotinho qualquer, até mesmo um pouco estúpido, preguiçoso, sem estudo, um filho que se introduz na oficina do pai, aprende o ofício, e prossegue.
O que Miriam de Em nome da mãe e o jardineiro anônimo de Três cavalos têm em comum, talvez, seja uma misteriosa forma de conceber e plantar a palavra no ventre da terra, santa mãe fecunda, de onde, na hábil escrita de Erri De Luca, possa germinar algum broto de salvação.