No livro Entre nós — um escritor e seus colegas falam de trabalho, Philip Roth pergunta a Isaac Bashevis Singer se, quando migrou da Polônia para os EUA, teve medo de perder contato com o material que alimentava sua ficção. Num primeiro momento, Singer diz que sim; mas, logo a seguir, pondera:
Quando morre uma pessoa que é próxima a você, nas primeiras semanas depois da morte essa pessoa fica tão distante de você quanto é possível se estar; é só com o passar dos anos que ela se torna mais próxima, e aí chega um momento em que você está quase vivendo com ela. Foi o que aconteceu comigo. A Polônia, a vida judaica na Polônia, está mais próxima de mim agora do que estava naquela época.
É desse milagre da memória, e do talento para dar vida ao mundo destruído pelos nazistas, que nasce No tribunal de meu pai, conjunto de relatos autobiográficos publicados pelo escritor no jornal Jewish Daily Forward sob o pseudônimo de Isaac Warshawsky. Reunidos em livro no ano de 1966, esses textos evocam, principalmente, o bairro judeu de Varsóvia antes e durante a Primeira Guerra Mundial, concentrando-se nos personagens da rua Krochmalna, onde o menino Singer viveu com seus pais e irmãos. (Mais tarde, em 1984, o autor publicaria um livro de memórias, Amor e exílio.)
Ao resgatar as influências que o marcaram, o escritor nos apresenta histórias que poderiam ser transmitidas de geração a geração, exatamente como as parábolas, novelas e anedotas que compõem a literatura produzida pelo hassidismo, corrente religiosa à qual seus pais pertenciam. Ambos descendentes de famílias nas quais se destacavam famosos rabinos e estudiosos da Cabala e da Torá, com personalidades díspares — a mãe, crítica e racionalista; o pai, místico, alheio à realidade, sempre dedicado ao estudo e à leitura —, eles terão papel preponderante na formação do menino, que, apesar de sofrer inúmeras outras influências, jamais esquecerá sua educação kosher, de absoluto puritanismo judaico, segundo a qual “o próprio mundo era tref [impuro]”:
Embora minha mãe e meu pai não se parecessem muito um com o outro, a ambos revoltavam a vulgaridade, a ostentação, as intrigas e a bajulação. Havia em nossa família o entendimento de que a derrota era preferível ao vício, de que as conquistas que a pessoa obtinha na vida deviam ser alcançadas com honestidade. Éramos os herdeiros de um código heróico até então não descrito na literatura iídiche, cuja essência era a capacidade de suportar o sofrimento em benefício da pureza espiritual.
Ao hassidismo se acrescentarão as concepções panteístas de seu pai, homem embriagado pela mística judaica, que ensinava haver “uma partícula do divino em todas as coisas. Até mesmo a lama da sarjeta contém centelhas divinas, pois sem elas nada poderia continuar a existir”.
Quando Singer, já adolescente, acompanhado pela mãe e por dois irmãos, escapa da fome que afligia a Varsóvia da Primeira Grande Guerra, então sob domínio da Alemanha, e parte para a cidade de Bilgoray, sob poder austríaco, a fim de viver com tios e primos maternos, a relação com as tradições judaicas se aprofunda:
O iídiche que eu ouvia ali e o tipo de comportamento e costumes judaicos que eu observava eram sobrevivências de um período muito anterior. […] Nesse mundo de judaísmo antigo, encontrei um tesouro de relíquias espirituais. Tive a oportunidade de ver nosso passado como ele realmente foi. O tempo parecia andar para trás. Eu vivi a história judaica.
Leitura, drama e delírio
Na verdade, a formação de Isaac Bashevis Singer corrobora o que George Steiner diz, na longa entrevista concedida a Ramin Jahanbegloo (in George Steiner: à luz de si mesmo), sobre o vínculo entre erudição e judaísmo: “A religião judaica é a única para a qual o sábio é uma bênção”. Naquele paupérrimo apartamento do número 10 da rua Krochmalna, o pequeno Singer não se dedicava apenas ao estudo prazeroso das tradições hassídicas, mas, atormentado por inesgotáveis questionamentos, lia tudo que estivesse à mão, incluindo Crime e castigo, de Dostoiévski: “Parecia um livro de histórias, mas era outra coisa. Estranho e elevado, lembrava-me a Cabala. Quem escrevia livros assim? Quem era capaz de entendê-los? Aqui e ali, uma passagem se elucidava, eu entendia um episódio, e me entusiasmava com a beleza de uma nova compreensão”. Poucos anos depois, movido pela compulsão de saber, aprende hebraico, lê poesia iídiche e devora Strindberg, Turguêniev, Tolstói, Maupassant, Tchekhov. Apaixona-se por Sherlock Holmes, estuda Hillel Zeitlin e Spinoza — mas também se debruça sobre um compêndio de física. Tragado por um turbilhão de idéias, ele é a materialização do judeu descrito por Steiner:
[…] é aquele que lê um livro com um lápis na mão […]. É também aquele que corrige os erros mesmo ao ler um jornal. […] Eu não falo em termos de gênio, porém designo uma sede incessante de conhecimento, de transcendência e de pensamento puro. Creio que o judeu é aquele que, até na soleira de uma câmara de gás, ainda corrigia um texto. Os rabinos o fizeram. Corrigir um texto é interpelar Deus dizendo-Lhe que se é fiel a esse câncer do pensamento, a essa patologia do absoluto que Ele colocou em nós, sem que saibamos por que, é dizer-Lhe o que isso nos custou.
Aos 15 anos, residindo em Bilgoray, Singer continua lendo com sofreguidão — e certo amigo lhe traz, às escondidas, um novo autor “gentio” a cada dia.
Durante a infância, no entanto, será na tumultuada rua Krochmalna, acompanhando as demandas apresentadas ao Bet Din (“uma mistura de tribunal de justiça, sinagoga, casa de estudos e, se quiserem, consultório psicanalítico”, explica Singer), que o menino receberá as primeiras lições sobre a natureza humana e seus dramas. Dono de uma curiosidade singular, ele muitas vezes é proibido de assistir aos diálogos de seu pai com os querelantes, mas coloca-se atrás da porta e… ouve. Ou acompanha tudo através de uma fresta, deixada de propósito ao sair da sala.
É, com certeza, o embrião do escritor, ávido de se apossar das tragédias alheias, que move esse menino atento a cada pormenor, sensível, de uma perspicácia inata, pronto a se deixar absorver pelas mais sutis variações de humor ou por terríveis tragédias. Que lugar poderia ser mais útil à formação do escritor do que um tribunal onde se julga miudezas do cotidiano, pequenas vilanias, mas também crimes inconfessáveis, traições repulsivas? Onde mais o espírito humano se mostra despojado de todo verniz? Para o católico, seria como esconder-se, dia após dia, à sombra de um confessionário.
Em No tribunal de meu pai, Singer narra alguns dos fatos que presenciou, compondo uma galeria inesquecível de personagens e situações às vezes cômicos, às vezes dramáticos, mas sempre edificantes. No capítulo Por que grasnavam os gansos, a atmosfera de terror é substituída pelo confronto surdo entre o racionalismo de sua mãe e a religiosidade paterna. Um noivado desfeito nos oferece as pequenas injunções que podem impedir a concretização do amor. Na crônica Uma pergunta horripilante, o pavor nasce não das esferas sobrenaturais, mas da desgraça, da pobreza, das humilhações a que, muitas vezes, o homem é submetido. A dignidade e a virtude — ou, como afirma Singer, “o vigor da honestidade e do dever” — estão concentradas em A lavadeira. Rumo à Terra de Israel apresenta-nos Moshe Blecher, mística e singela figura, homem à espera de um sinal divino, quando, na verdade, ele próprio é o sinal. E há mais: o livreiro que refaz interminavelmente seu testamento, movido por um estranho perfeccionismo; o homem que desejava vender sua parte na vida eterna; a melancolia saudosista de Reb Chayim Gorshkover; a doce loucura de Traitl; e inúmeras outras histórias, contadas sob o olhar de um menino curioso e impressionável, por vezes confuso entre a realidade e o que descobre nos livros, pronto a aventurar-se pelas ruas de Varsóvia e deliciosamente imaginativo.
Mas, no caso de Singer, referimo-nos a um tipo especial de imaginação, que pode beirar o delírio — ou o êxtase. Certo dia, perturbado pelos ensinamentos panteístas do pai, ao descer a escada que leva ao porão, pára e fecha os olhos:
Lembrei-me […] das palavras de meu pai sobre os segredos da Torá: somos todos filhos de Deus. Em cada um de nós habita uma alma que veio do Trono de Glória. Há centelhas divinas até na lama… […] Cheguei realmente a sentir que havia um espírito santo dentro de mim, uma partícula da Divindade. Na escuridão, divisei uma flor chamejante, reluzindo como ouro, luminosa como o sol. Ela se abriu como um cálice e de seu interior saltaram cores vivas: amarelo, azul, púrpura — cores e formas como as que vemos somente nos sonhos.
Em outro momento, agora sob influência do irmão mais velho, ávido leitor de Darwin e Newton, politizado e com idéias heréticas, o garoto Singer vive experiência semelhante:
Tudo o que ele dizia ficava gravado na minha cabeça. Ao fechar os olhos, eu via figuras e cores que nunca tinha visto antes, as quais assumiam continuamente novos feitios e formas. Às vezes, divisava um olho afogueado, mais luminoso que o sol e com uma pupila estranhíssima. Até hoje consigo, com algum esforço, ver esse olho radiante. Minha lembrança daqueles dias é repleta de flores e gemas visionárias. Porém na época as visões eram tão numerosas que eu às vezes não conseguia me libertar delas.
Sem dúvida, trata-se do escritor em formação. Um menino que, antes mesmo de ler, já se pergunta sobre “os paradoxos do tempo, do espaço e do infinito” só não abraçará a reflexão e a escrita se for impedido. O que, para nossa felicidade, não ocorreu. Ao contrário, Singer era incentivado. O pai, acreditando que ele será um novo comentarista do Talmude, ensina-lhe: “Apresente um raciocínio claro e evite argumentos casuístas. Nunca houve entre os grandes eruditos quem torturasse o texto. Se é verdade que iam fundo em suas perquirições, jamais transformavam cupinzeiros em montanhas”.
Dividindo-se entre o estudo da Guemará e a leitura de Dostoiévski, o mundo dos livros passa a ser, lentamente, sua principal referência. Depois de um primeiro passeio pelo campo — no capítulo Rumo às vacas selvagens —, onde tudo o impressiona vivamente, conclui: “No fim das contas, então, os livros de histórias não mentiam. O mundo estava realmente cheio de maravilhas. Bastava a pessoa atravessar a Muranow e mais uma rua para ver-se no meio de coisas prodigiosas”. Anos depois, no trem a caminho de Bilgoray, a imaginação exaltada pela leitura ressurge:
Meus pensamentos se aceleravam com as rodas, estimulados por cada [sic] árvore, arbusto e nuvem. Vi lebres e esquilos. A redolência das folhas dos pinheiros mesclava-se com outras fragrâncias a um só tempo exóticas e reconhecíveis, embora eu não soubesse de onde vinham. Acometia-me o desejo de, à maneira dos heróis dos livros de histórias, saltar do trem em movimento e perder-me no meio daquelas coisas verdes.
O umbral da verdade
Há, contudo, uma ponta de melancolia que perpassa esses relatos. Ela nasce não apenas do fato de que a maior parte dos familiares de Singer foi morta pelos nazistas na Segunda Grande Guerra, mas também daquela certeza infelizmente tão viva para o povo judeu, e que a mãe do escritor declara sem titubear: “Os gentios sempre tiveram ódio aos judeus. Mesmo que use uma cartola, o judeu será odiado, pois é um guardião da verdade”.
Ler No tribunal de meu pai é pôr os pés no limiar dessa verdade. Próximos do que fazia o menino Singer, olhamos pela fresta da porta não só porque somos curiosos, mas porque estamos sedentos de ética, decididos a recuperar um pouco da inocência primeva — e, sobretudo, conhecer aqueles que podem nos tornar melhores do que somos.