A velhice é muito mais cruel que a morte. A velhice não se rende a eufemismos, venham das plásticas, dos tratamentos ortomoleculares ou das pílulas milagrosas. Nada impede o tempo de cometer seus estragos. Você, jovem leitor, conhece alguém que antecipou a própria velhice? Mas a morte sim. Com certeza conheceu ou sabe de alguém que tenha cometido suicídio. Pois é, a velhice não pode ser mexida, mas a morte pode. Os índios do Alto Solimões sabem disso e são adeptos da prática. Ano passado, a taxa de suicídios deles superou em quase dez vezes a média nacional. Falta de perspectivas profissionais, dizem os antropólogos. Repararam que sempre há um antropólogo e um cientista social à mão, para palpitar? Aqui não.
A morte como matéria-prima da arte não é novidade. A vida como matéria-prima da morte, tampouco. A falta de talento e coragem para acabar com a própria vida é coisa de cada um. Se examinar a aproximação inevitável da morte é um problema assustador — vamos mudar de assunto —, o que dirá da possibilidade de urdir um plano para colocar o ponto final em sua vida, jovem leitor aspirante à imortalidade? Escolher a tática e botar o time em campo para um jogo decidido. O suicida é ator de um único papel, protagonista de uma cena, uma e não se fala mais nisso. Sempre impactante, atrai as atenções, longe dele os lugares-comuns. Viver com a idéia do suicídio a povoar pensamentos é coisa para obcecado nenhum botar defeito. Levar essa idéia a cabo é outra história. Algumas amostras desses indivíduos podem ser examinadas em Suicídios exemplares, livro de contos de Enrique Vila-Matas.
O leitor encontrará dez contos cujo tema comum é o suicídio. Aparentemente trata-se de um samba de uma nota só, mas ao aguçar o ouvido se poderá perceber que não é bem isso. Trata-se de composição que exigirá alguns conhecimentos literários e paciência. O autor anuncia suicídios, usa essa introdução em todas as partituras. No entanto, desenvolve temas dos mais variados, do tédio de uma vida sem acidentes a tentativas quase desesperadas de inventar outras vidas. Citações de Moby Dick, Walter Benjamin, Sêneca, Mario de Sá-Carneiro fazem parte do trabalho do autor espanhol. A famosa, agora na ordem do dia, intertextualidade. Não conta com minha simpatia, se contar com a sua, caro leitor, tanto melhor.
Sem pessimismo ou auto-ajuda
Vila-Matas produziu histórias que flertam com o surrealismo, com o realismo, não esquecem o romantismo e o existencialismo sartreano. Não há pessimismo, tampouco, auto-ajuda: viver está longe de ser um navegar no mar de águas límpidas, mas também não é festa a ser abandonada tão logo se chegue.
É, acima de tudo, uma enorme possibilidade de rir. Rir das peças repetitivas que a vida não cansa de aplicar. Os personagens de Vila-Matas têm preferência pelas situações extremas. Lembram do escrivão Bartleby, de Bartleby e companhia, acometido de uma paralisia que o impede de realizar qualquer tarefa? Em O mal de Montano, o leitor encontrará a doença literária, autores que transformam a própria vida em literatura. Em A viagem vertical, Federico Mayol vive o desespero desde que ouviu de sua mulher o quanto ela ficaria satisfeita caso ele fosse embora. Uma noite antes tinham comemorado suas bodas de ouro.
No conto Morte por saudade, que abre o livro, um professor de redação coloca o aluno no rastro de suicídios de uma família. É o aspecto metaliterário que está prestes a virar eficiente e sonolento predador das letras. Vale lembrar que o escrivão Bartleby é criatura de Herman Melville. Feito o lembrete, sigamos.
Um tio mata seu melhor amigo durante uma caçada. Desesperado, interna-se num hospital fingindo-se doente, rouba uma forte dose de cianureto e com ela se mata. Uma tia abre o gás e também se mata. Deixa uma carta onde confessa que a impossibilidade de frear o desejo de viver era a causa direta de seu suicídio. A filha dessa tia se joga, numa exibição primorosa do salto triplo, do alto de uma torre. Sem rede de proteção, cabe informar. O asfalto acolheu suas angústias.
E o aluno resignado diz:
Vou me sentar para esperar, haverá uma cadeira para mim nesta cidade, e nela poderei ver todos os entardeceres, calado, praticando a saudade, o olhar fixo na linha do horizonte, esperando a morte que já se desenha em meus olhos, e que aguardarei, sério e calado, todo o tempo que for necessário, sentado diante deste infinito azul de Lisboa, sabendo que à morte lhe cai bem a tristeza leve de uma severa espera.
Esse personagem traduz a tônica desses contos de Vila-Matas, o enigma: como matar a sede de viver?
E a saudade que perpassa o conto de abertura se mostra já no conto seguinte, Em busca do parceiro eletrizante. Ator decadente busca companheiro na tentativa de voltar aos tempos áureos. A saudade movimentando vidas, a saudade impulsionando ao futuro.
Porque eu, meu querido amigo Brandy, tenho uma grande reserva natural de riso, e rio sempre a todas as horas e, quanto mais desgraçado sou, mais rio. E riu. Se já não tivesse morrido, teria morrido ali mesmo de tanto rir.
Vila-Matas é o contraponto de Louis-Ferdinand Céline, experimente a novela Mort à crédit (1936), e depois me diga se existe outro olhar tão deprimente e negativo. Perceberá que em nome da sobrevivência vale tudo, todos os métodos são aceitos: mentira, corrupção, crimes. Em Vila-Matas temos o inusitado, o cômico, o patético, jamais o depressivo.
Não, paciente leitor, não é nada fácil extrair da saudade a nostalgia, o pessimismo, a melancolia, o vazio, como bem faz Vila-Matas, e transformá-la em motor do otimismo. Afirmo isso do alto de minha montanha de saudade que só me faz entristecer, minha saudade me derruba num nocaute repleto de déjà vu desde a primeira vez em que amei de forma equivocada. E assim me repeti, amando, pessoas, coisas, profissões… A saudade sempre dói. Em Suicídios exemplares, ela salva. Posso afirmar que o flerte com o suicídio pode ser uma porta de entrada para uma vida nova. Condição sine qua non: alguém lhe dar a mão. É possível inventar um destino com poesia.
Em Rosa Schwarzer volta à vida, pode-se notar que a monotonia da vida de Rosa Schwarzer, funcionária de um museu em Düsseldorf, ela já vive entre mortos, faz com que imagine diversas formas de se matar: haraquiri, tomar alguns goles de água sanitária, se jogar na frente de um carro.
— O que vai ter para o jantar? — perguntou do sofá um exigente Bernd. — A morte — ela disse. — Apenas a morte. Disse isso tão baixo, da solidão da sua cozinha, que eles não podiam escutar que naquele momento era degolada uma galinha.
Certa manhã, entre bocejos, sente o perfume de sedução que vem do quadro O príncipe negro de Paul Klee. O príncipe a convida a entrar e se perder na tela rumo ao recanto mais cruel que se possa imaginar: o país dos suicidas. Rosa Schwarzer resiste ao chamado, desvia o olhar que descansa em outro quadro de Klee, o de tênues cores rosadas, Monsieur Perlacerdo. Rosa completara cinqüenta anos no dia anterior, tem marido e dois filhos e uma questão: “Esta vida para quê?”
Rosa retoma sua rotina no museu, sabe que “a felicidade mata, e esses suicidas imitam não o inimitável, mas o inexistente”.
O conto O colecionador de tempestades traz o único suicida que consegue morrer. Preparava uma engenhoca capaz de provocar uma tempestade de onde um raio o encontraria deitado numa tumba vazia e o fulminaria.
No instante em que se preparava para acionar o invento, sofreu um ataque do coração.
Contou-me então como algumas múmias egípcias mostram sintomas de pneumonia e outras formas de resfriado.
— Seria engraçado — comentou — que depois de tantos preparativos para viver um bel morir, um simples resfriado me tirasse a vida.
Os suicidas de Vila-Matas, ora risíveis, ora melancólicos, nunca trágicos, não alcançam seus objetivos. Se covardes ou valentes, cada um que faça seu juízo, embora não lhes caibam tais rótulos, meros personagens, meros retratos de nossos fracassos. Viver é muito mais que assimilar rotinas, por mais saborosas que sejam. É criar, é se reinventar, mesmo que, como os personagens de Suicídios exemplares, para isso seja necessário um breve namoro com a morte.
No apagar das luzes, meu papagaio falou Mia Couto, o grande imitador de Guimarães Rosa, e me veio o trecho que estava faltando. Se Mia pode, sem citar o original, eu, humildemente, também posso.
O senhor… Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas — mas que elas vão sempre mudando.