Claro que não. Nem mesmo o filho da outra. Pode ser da outra, mas é seu, e está acima do bem e do mal. Título de livro é assim: não importa a origem, tem que ser bom. Se possível, ótimo. É um dos elementos decisivos da obra literária. Mesmo quando soa estranho, a exemplo de No Urubuquaquá, no Pinhém, de Guimarães Rosa.
E livro é mesmo uma espécie de filho que vai viver solto na pradaria. Não pode falhar. É astuto, tem coragem, e seduz. Mas não precisa ser Don Juan. Nem mesmo O belo Antônio, que as complicações são muitas. E demais. Portanto, deve ser extremamente sério — mesmo quando irônico ou cômico, tão sério quanto o nome de um personagem ou de uma região. Por exemplo, Macondo, de Gabriel García Márquez, ou Yoknapatawpha, de Faulkner. No meu caso, criei a região geográfica Arcassanta, que pode ser uma fazenda, um povoado, uma cidade, ou apenas um simples lugar deslocado do mapa, à beira da estrada, de um rio, de um açude. Érico Veríssimo inventou Antares. Outros autores preferem nomear os lugares pelo nome que receberam na tradição. De minha, porém, prefiro ter mais liberdade. Minha região começou com Santo Antônio do Salgueiro, pode ser simplesmente Salgueiro, e evoluiu para Arcassanta, porque não sou retratista, sou intérprete.
Portanto, se há tanto cuidado com nomes de regiões e de personagens, então é fundamental que seja assim também com os títulos. Há, porém, um dado importante: o título deve surgir a partir através de dois caminhos:
1) Pelas epígrafes, conforme a temática ou a reflexão.
2) Pelos pontos de vista. Ou do ponto de vista, segundo decisão do autor. Mas não existe apenas um ponto de vista numa obra. De forma alguma. Encontra-se o título em epígrafes e pontos de vista.
A) Pontos de vista:
Na técnica, são muitos os pontos de vistas divididos em, pelo menos, três:
1) Ponto de vista do autor, que coordena todos os demais.
2) Ponto de vista do narrador, que pode ou não coincidir com o autor.
3) Ponto de vista do personagem ou dos personagens.
Sempre destacando que, no nosso caso, ponto de vista é a idéia ou a ideologia do autor, do narrador ou do personagem, no sentido amplo, e não foco narrativo, que é a técnica que o autor escolhe, através do seu narrador ou do personagem. Não esquecer nunca que A hora da estrela, de Clarice Lispector, tem quatorze títulos, mas só um aparece na capa do livro, e mais: logo no começo do texto, ela explica, através do narrador Rodrigo, quais as razões de tantos títulos. Mostra, por exemplo, que um título pode ter dois pontos no princípio e no fim para causar maior impressão ao leitor, ou usar palavras soltas que facilitem a compreensão. Mas opta por A hora da estrela que, embora ambíguo, aponta para o brilho ofuscado de Macabéa.
Mas para efeito de classificação, podemos distinguir três situações para escrever títulos:
1) No caso do ponto de vista do autor, um exemplo clássico é Crime e castigo, de Dostoievski. Isto é, o título representa a ideologia do autor e já registra a opinião que ele tem sobre o assunto. Está sob o domínio dele. Todos os outros assuntos são resultantes do primeiro. Ou, ainda, Um coração simples, que interpreta o autor, a opinião de Flaubert sobre Felicidade, que vem de Madame Bovary.
2) A pedra do Reino, de Ariano Suassuna, é um título cultural, mas sob o ponto de vista do narrador Quaderna.
3) Dom Quixote, Madame Bovary e Anna Kariênina, por exemplo, são títulos tipos de ponto de vista do personagem, porque toda narrativa estará sempre sobre o seu comando. Revela um enorme e decisivo “Eu”.
B) Epígrafes:
Numa outra categoria, essa idéia ou ideologia vem também assinalada numa epígrafe, quando o autor deseja esclarecer, de logo, o mistério do texto, ampliá-lo ou provocá-lo. O nome da rosa, de Umberto Eco, não tem uma epígrafe, mas é, por assim dizer, antecedido de uma abertura em itálico, seguida de uma nota, onde são oferecidas informações decisivas para o leitor. No entanto, o breve texto Pós-Escrito a O Nome da Rosa tem uma epígrafe, que pode esclarecer o próprio romance, a partir de uma estrofe de Santa Joana Inês de La Cruz:
Rosa que al prado, encarnada,
Te ostentas presuntuosa
De grana y carmín boñada:
Campo lozana y gustosa;
Pero no, que siendo hermosa
También será desdichada.
Assim, ela pode servir de chave interpretativa tanto do pós-escrito quanto do próprio livro, de forma a decifrar caminhos insondáveis. Claro que cada leitor faz sua própria interpretação, seguindo os caminhos indicados por Santa Joana ou não. Cada um conhece as suas próprias estradas. Diz o verso que o caminheiro é quem faz o caminhar. Mas não deixa de ser motivo de estudo. Sobretudo da realização de um título. De minha parte, por exemplo, sempre achei que Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto, representa a morte e a ressurreição de Jesus Cristo, sendo um auto natalino. Mas essa é a minha interpretação. Pode não ser nem mesmo a do poeta, a do leitor, ou a do exegeta.
De minha parte, porém, gosto de usar epígrafes como chaves interpretativas, que provocam o título. Em Somos pedras que se consomem sou muito breve e uso uma frase de John Fante: “Cada palavra deste livro é pura verdade”. Por quê? Porque o romance é resultado de uma pesquisa em revistas e jornais brasileiros onde registro todos os fatos reais, embora ficcionados e seguindo a cronologia que me interessava, a respeito da crescente violência brasileira contra mulheres e crianças. No corpo do texto, várias citações são lembradas, numa recorrência a outras vozes para compor o meu tecido narrativo.
Em Sombra severa, porém, é diferente. Em princípio, a novela se chamaria “Memorial de Judas”, um conto que eu havia escrito na praia do Janga, na cidade do Paulista, bem próxima do Recife. Depois que o transformei numa novela, achei que devia ser seco e indireto. Então encontrei-o num poema de Carlos Drummond de Andrade, aquele em que ele conta como andava com o pai pelas ruas de Itabira, Minas Gerais.
Para interpretar, porém, a história e os personagens, optei por três epígrafes, ou seja, três pontos de vista, que me vieram de Henry Miller e Mario Arregui, além da última, de Shakespeare, que fecha a compreensão da novela. Noutra página, recorri a Thomas Mann, que, na verdade, oferece a chave de todo o texto. Para definir a sombra severa recorri ao ponto de vista dos personagens Judas e Abel, e mais adiante convoco Shakespeare para representar o ponto de vista do autor, esclarecendo Dina e, em conseqüência, Abel.
Judas:
Dá-lhe um nome feio: traição. Mas é justamente essa índole traiçoeira do rebelde que o diferencia do resto do rebanho. É sempre traiçoeiro e sacrílego, se não literalmente pelo menos em espírito. Comporta-se, no fundo, como um traidor porque tem medo de sua própria humanidade, que o aproximaria de seu semelhante.
Henry Miller
Abel:
Muitas coisas foram ditas, repito, mas não houve quem fosse capaz de formular sequer uma aproximação daquela frase antiqüíssima (nascida na costa ocidental do Mar Egeu há vinte e cinco séculos) que asseverava que ninguém fica tão unido a ninguém como o homicida da sua vítima.
Mario Arregui
Deixa-me saber por que teus ossos abençoados, sepultos na morte, rasgaram assim a mortalha em que estavam? Por que teu sepulcro, no qual te vimos quietamente depositado, abriu suas pesadas mandíbulas marmóreas para jogar-te novamente para fora.
Shakespeare
Observe-se, assim, que as epígrafes são importantes para a decifração do título, algo que tortura e alegra o autor. Estão sempre juntas, unidas, inquietas. Sem esquecer, por exemplo, que Moby Dick, de Melville, tem mais de vinte epígrafes a respeito de cachalotes, e em A pedra do reino, de Ariano Suassuna, chegam a oito a dez. E ainda mais: Hermilo Borba Filho, em Um cavaleiro da segunda decadência, usa epígrafes nas aberturas de cada capítulo, o que, de certa forma, substitui os títulos. São caminhos e indicativos dos escritores para desenvolver a técnica narrativa. Hermilo, aliás, conhecia muito bem a eficiência das epígrafes.
Na verdade, ultimamente os críticos passaram ou a desdenhar das epígrafes ou a não lê-las. Algo totalmente equivocado. Significa profunda desatenção com o autor e, mais ainda, com o livro. Um romance bem elaborado não começa no primeiro capítulo mas na capa, junto com o título. E um título, além de um indicativo de leitura, é, sobretudo, a chave para toda a compreensão da obra. E, em conseqüência, do pensamento do autor, da sua ideologia, da sua confrontação com o mundo.
Cuidado com os títulos. Sempre cuidado. Um título mal cuidado pode prejudicar uma obra-prima. Porque há também títulos que podem indicar a temática, mas não participar da intimidade da obra. Que tal Doutor Fausto, de Thomas Mann? Um leitor desavisado não vai encontrar nenhum Doutor Fausto no livro. E Dom Casmurro? Desde o primeiro capítulo que Machado de Assis avisa: não há nenhum Dom Casmurro no livro. É certo. Afirma, com a maior clareza, absoluta clareza, que o título é uma homenagem a um poeta que o interpelou no trem. E só. O leitor é que pensa estar lendo a história de Dom Casmurro. Só uma provocação: Dom Casmurro é um dos narradores do livro — o narrador onisciente —, o outro é Bentinho — o narrador oculto. Mas Bentinho está ali, presente, no livro todo. Não é? Silvia, de Gerard de Nerval, não conta a história de Silvia; conta a história de Adriana.
É assim.