Alonzo de Céspedes — filho adotivo da escritora ítalo-cubana Alba de Céspedes — lança alguma luz sobre o relacionamento de sua mãe com o Lúcio Graumann, ganhador do prêmio Nobel de Literatura. A entrevista não terminou nada bem.
• Fale-nos da amizade entre a sua mãe e Lúcio Graumann.
Eles se conheceram pessoalmente na Ledig House, em Hudson. No entanto, três cartas de 1969 (cartas de Lúcio Graumann para a minha mãe, que então morava em Roma) revelam que já se conheciam de antes. Se o senhor quiser pesquisá-las, as cartas estão hoje — como toda a correspondência da escritora — nos Archivi Riuniti delle Donne, em Milão.
• Eles foram íntimos?
O que o senhor pretende insinuar?
• Perguntando de outro modo: Alba de Céspedes, aos 54 anos, teve um relacionamento com o prêmio Nobel, na Ledig House?
A minha mãe foi uma respeitável escritora, uma partigiana que lutou na Resistência italiana. Era uma militante política da esquerda e dos direitos das mulheres, conforme acabam de atestar as homenagens que recebeu da Unione Femminile Nazionale, na Itália. O seu avô e o seu pai foram presidentes de Cuba, e ela ainda…
• Não estou interessado na árvore genealógica da família Céspedes, me desculpe. Gostaria que falasse do “encontro”, então, de Alba com o Nobel…
Antes de mais nada, Lúcio Graumann não era prêmio Nobel nenhum, naquela época, e estava muito longe de o ser. Tratava-se, na verdade, de um escritor brasileiro bolsista na instituição norte-americana com a qual a minha mãe colaborava. Graumann escreveu A intrusa na sombra a pedido dela.
• Chegaram a ser íntimos?
Volto a dizer: ou o senhor respeita a memória de Alma de Céspedes…
• “Alma”?
É como eu a chamo, uma vez que ela mesma quis mudar o nome, quando se tornou espiritualista, no final da vida. Tinha poderes mediúnicos e se comunicava com grandes espíritos, entre os quais posso citar Rabindranath Tagore, Emiliano Zapata e Flora Tristan-Moscoso, avó de Paul Gauguin. Exijo que a respeite, na condição de filho e herdeiro de uma das escritoras mais importantes das Américas.
• Ninguém conhece Alba de Céspedes, no Brasil.
Pior para o Brasil.
• Enquanto Lúcio Graumann foi o laureado do prêmio Nobel de Literatura 2001.
Sully Prudhomme foi o primeiro escritor a ganhar o Nobel de literatura, em 1901. Alguém ainda se lembra dele? O senhor se lembra, sabe que Sully existiu?
• O entrevistado é o senhor. Peço que responda à pergunta.
Qual pergunta?
• Se chegaram a ser íntimos, a sua mãe e Lúcio Graumann.
Não no sentido que o senhor pretende sugerir. A minha mãe e o senhor Lúcio Graumann foram íntimos como podem (e devem) ser os amigos que têm afinidades de alma, gosto e profissão. Gostaria de lembrar que Alma de Céspedes foi uma mulher nobre e digna de respeito, admiração e amor dos seus leitores no mundo inteiro, com a exceção única do Brasil, onde o senhor acaba de me dizer que ela é desconhecida, infelizmente (para os brasileiros, bem entendido). No meu país, a fama do senhor Lúcio Graumann, por outro lado, se resume a um caso de plágio levantado contra ele, logo depois que recebeu o Nobel e morreu de emoção.
• Lúcio Graumann não morreu de emoção. Estava doente. E foi acusado de plágio por um escritor desconhecido. Nada foi provado e o caso está hoje quase completamente…
Peço desculpas pelo equívoco. E quero dizer que o fato de, no meu país, a obra de Lúcio Graumann não ser conhecida apenas depõe contra o nosso interesse por escritores, de um modo geral. A literatura já não está no centro da vida.
• Alguma vez esteve?
Sim, no tempo em que a minha mãe se iniciou na profissão, a literatura se achava ainda num lugar central. Havia…
• O que nos faz voltar à idade da senhora sua mãe. Aos 54 anos, é verdade que ela se apaixonou por Lúcio Graumann?
Não.
• Qual sentimento, então, teria despertado nela?
Afeição e admiração. E, se caso houvesse despertado amor ou paixão, isso não estava proibido para uma senhora de 54 anos, na segunda metade do século 20.
• Eu diria que era ainda moça, até. Existe um grande preconceito contra a idade, no mundo atual siderado pela juventude — ou com seus jovens parecendo donos exclusivos do direito às emoções mais intensas da vida.
Concordo. E, mais do que eu, a minha mãe concordaria plenamente com o senhor, caso ainda estivesse viva.
• Com cem anos. E ainda disposta a se apaixonar por…
Por favor!
• Por tudo que significa vida. Deixe que eu termine as frases, meu caro. E compreenda que o interesse pela suposta relação amorosa que Lúcio Graumann teria mantido com Alba de Céspedes, na Ledig House, não envolve qualquer tipo de censura ou de curiosidade malsã pelo comportamento sexual dos dois escritores. Aliás, é sabido que Graumann se sentia atraído por mulheres mais velhas, desde a juventude, quando teve relações dessa natureza com uma pessoa, uma mulher da própria família.
Sinto-me aliviado ao ouvir isso. E peço desculpa também, mais uma vez. Acontece que o senhor não é o primeiro a insinuar uma relação amorosa entre a minha mãe e o senhor Graumann. E nem todos o fizeram com delicadeza, mas tratando do assunto como se Alma de Céspedes fosse uma Mae West da literatura, uma Marlene Dietrich seduzindo o jovem Gary Cooper — que nem era tão jovem assim. Seja como for, nada houve de mais “íntimo” entre Alma e Lúcio, na primeira Ledig (que foi aquela com a qual a minha mãe colaborou, dando o melhor de si). Houve uma aproximação, uma amizade, e nunca um envolvimento amoroso entre os dois adultos, que, aliás, eles teriam todo o direito de se envolver, não é mesmo? Não está vetado para uma senhora de cinqüenta e tantos anos ter vida sexual ativa, ou emoções sensuais…
• Nunca treparam, portanto.
…
• Sr. Alonzo? Esta entrevista está sendo paga, nas suas condições, pelo meu jornal. Sugiro que se sente de novo, por favor, e passemos ao assunto que me trouxe aqui: a descoberta do original da novela A intrusa na sombra.
Minha mãe guardou esse original durante anos, como uma lembrança de Graumann. Já disse que ele escreveu a novela — na qual Alba de Céspedes figura como autora de um livro que ela nunca escreveu — por instigação dela, de tal modo que chegamos a pensar que fosse uma novela realmente de Alba de Céspedes, lendo o seu nome na folha de rosto, onde Graumann o escreveu quiçá por algum espírito de brincadeira. Afinal, O anelante que está dentro dela é um livro “atribuído” à minha mãe. Depois da sua morte, em 1991, guardamos aquelas páginas como se fossem dela, compreende? Um original dentre os muitos que deixou. Não havia outro nome, nada que pudesse indicar outro autor. Alguém fez cálculos no verso de algumas páginas…
• Cálculos?
Cálculos matemáticos. Talvez uma criança os tenha feito. Seja como for, não sei quem nem quando — nem tem muita importância, na verdade. O documento não parecia que fosse, originalmente, de Graumann, mas da minha mãe, visto apenas como um envelope anotado “NOVEL”, à mão, com a letra da escritora. Fica uma grande confusão quando um escritor morre, já notou? No que diz respeito a originais inacabados e até mesmo completos, em primeira, segunda, terceira — quantas versões? O senhor conhece o caso de Espacio e Tiempo, de Juan Ramón Jiménez?
• Espacio y Tiempo?
Não. Espacio e Tiempo, duas obras: Espacio um poema que nasceu em verso livre e Tiempo, prosa. Jiménez fez sucessivas versões, desde 1951. Espacio virou prosa, em 1954, e, três anos mais tarde, a terceira parte de En el otro costado, enquanto Tiempo (*) foi também intitulado Miscelánea numa das versões inéditas trabalhadas pelo poeta que foi um grande amigo de minha mãe…
• Voltemos a ela, então. Alba, Alma de Céspedes esteve com Lúcio Graumann, depois da convivência na Ledig?
Que eu saiba, não. Ela foi morar em Paris, segundo um velho desejo seu. Pretendia escrever uma biografia definitiva de Flora Tristan como precursora do feminismo e paladina dos direitos de operários e operárias. Minha mãe possuía um exemplar, todo anotado por Flora, do interessante Nécessité de faire bon accueil aux femmes étrangères…
• Ouvi falar de uma coleção de fotos de Graumann, tomadas por uma espécie de detetive que a sua mãe teria contratado para acompanhar o escritor, na sua volta para o Brasil. Existe esse material nos Archivi Riuniti?
O que o senhor acha? Primeiro, a minha mãe não teria dinheiro para patrocinar tal coisa, um “detetive” na cola do amigo de volta para o seu país. Depois, com que finalidade ela se daria ao trabalho de contratar alguém para isso? E o que ela haveria de fazer com as tais fotos de Graumann, como se ele fosse um criminoso nazista fotografado nas ruas de Buenos Aires? É a segunda vez que ouço falar sobre esse absurdo. Espero que seja a última. E gostaria de voltar a falar de literatura, ou de assuntos pertinentes aos dois escritores enquanto autores, que foi o combinado para ser tratado nesta entrevista. Senão, senhor, eu prefiro encerrá-la agora mesmo.
(*) Em Juan Ramón en los espacios del tiempo, Arturo del Villar escreve: “Tiempo fue escrito en enero de 1941, al menos en su arranque. Hay una carta a Diez-Canedo, en la que Jiménez menciona el año 1941 (‘enero’) como fecha de creación de Tiempo en su escritura primitiva de ‘embriaguez rapsódica’, así como Espacio está datado POR LA FLORIDA, 1942-1954, pese a que en ese último año el poeta residía en Puerto Rico. En su versión definitiva, la de 1954 (de Florida), Espacio aparece dividido en tres capítulos o fragmentos”.