José Cardoso Pires foi um dos maiores romancistas portugueses e, entre suas obras, O delfim destaca-se como reconhecida obra-prima. Já nas primeiras páginas arma-se o cenário no qual destaca-se a figura do autor; e os recursos modernos de uma narrativa fragmentada entre os discursos dos diversos coadjuvantes vão sendo costurados com elegância e economia por esse autor-personagem, um caçador de aves e de histórias que revelem os motivos da existência de cada um dos infelizes habitantes da vila da Gafeira.
Outro dos “monstros sagrados” da literatura portuguesa, António Lobo Antunes, amigo e admirador de Cardoso Pires, comenta:
Quase todos os seus livros são fábulas. Fábulas sobre o poder, e muitos deles mesmo têm a estrutura de um romance policial, o que é extremamente curioso. E, através de meios aparentemente económicos, através de uma escrita despida de adjectivos, de metáforas, de imagens, de uma escrita escrita no osso, de uma escrita escrita com o gume da faca, consegue dar-nos da vida e das pessoas uma imagem de um apuro artístico e de uma verdade humana difíceis de encontrar na literatura portuguesa de qualquer época.
Nesta fábula do Engenheiro, de sua “mulher inabitável” e do criado maneta concentra-se a história de uma vila dominada por esse senhor quase feudal, medieval em sua alegoria de cães, lagoas e pássaros, que impedem o desenvolvimento dessa vila imaginária e metafórica. A trama se desvenda aos poucos, em pequenos retalhos oferecidos ora por “um Dente”, ora por um Corregedor, ou padre novo, ou pela maternal figura disforme da estalajadeira. Todas as personagens, inclusive a do autor, adquirem um caráter alegórico quando substituídas por “sinais” a serem decifrados. Um autor e um livro já escrito no passado, combinados a duas mortes e a um desaparecimento. Uma vila parada no tempo, erigida sobre as ruínas de uma área dedicada ao prazer dos sentidos. Os antepassados que já se inscreveram na “história” e a percepção da decadência social da aristocracia. A mutilação e exploração de uma classe trabalhadora que vive entre a tecnologia (o Jaguar) e a barbárie (os cães). O papel da mulher à margem da sua liberação. Sutilmente, os temas de O delfim se reúnem numa história quase policial, que pretende compreender e solucionar as mortes ocorridas no local.
Profunda mutação
O narrador, figura central e protagonista, por um lado, observa tudo o que o rodeia com uma minúcia quase televisiva ou cinematográfica, por outro lado, as suas imagens não são nítidas pois refletem a visão de um estrangeiro, estranho a si mesmo, estilhaçando a realidade com a sua subjetividade, percebendo-a através das brumas da lagoa e dos sonhos, problematizando com ironia e discurso aparentemente fácil, um Portugal em mutação profunda. A Gafeira, vila imaginária, é uma metáfora do país estagnado e é observada com uma mirada objetiva como a de um patologista, e, ao mesmo tempo, emocionada como a de um filho pródigo.
O delfim se desenvolve numa prosa de um realismo concreto e visual que aproxima as suas palavras da linguagem cinematográfica. Esta faceta apresenta ainda uma outra marca de modernidade. O narrador, funcionando como uma espécie de detetive e guia no labirinto do romance, estabelece com o leitor uma relação de cumplicidade. Cardoso Pires faz de seu Autor um Leitor que busca, com as leituras que faz, o processo de construção do texto. Esse processo é marcado pela colaboração entre o narrador e o leitor, e é o modelo que devemos seguir para a decifração dos mistérios levantados.
No romance, as pessoas encetam uma viagem pela bruma e de perda de identidade, em solitários monólogos, num convívio de singularidades e desencontros quase sempre trágicos. Na vila, dominada pela lagoa, cria-se um trio trágico: Tomás Manuel, Maria das Mercês e o criado Domingos. A morte envolve a figura feminina, que possivelmente se suicida na lagoa, e a do criado que aparece morto na cama do casal. A figura central, encapuzada em alcunhas e títulos (O Delfim, O Infante, O Engenheiro) é Tomás Manuel Palma Bravo. Undécimo de seu nome, apresenta-se como um “homem em fuga”. Desaparecido ou refugiado na sua casa da lagoa, vivendo em dor e agonia, sem ligações sociais nem laços com o tempo que o rodeia, retira-se para a memória dos antepassados e cerca-se de cães, cavalos, caça, numa atmosfera de senhor feudal agonizante que teme a população de Gafeira. Ao mesmo tempo que exerce seu poder com violência e venalidade, também é um exemplo de machismo exibicionista, da atitude antiquada e ligeiramente folclórica que os portugueses conhecem como “marialvismo”, que pretende afogar sua frustração existencial num copo de uísque.
Brutal e provocador
Quase sempre bêbado, invariavelmente brutal e provocador, desafia a bela Maria das Mercês com suas referências às amantes, suas acusações sobre a possível infertilidade da mulher, e a obriga a uma existência de prisioneira, sem vontade própria. Maria das Mercês, uma espécie de moderna Penélope, acorrentada, por assim dizer, às máquinas de tricô que tecem sua estranha e infindável “baba”, definha perante nossos olhos, deixando atrás apenas uma versão de si mesma.
O Engenheiro, esse delfim destronado, vagueia na escuridão, repetindo casos do passado, destruindo (e se destruindo) com sua insaciável busca todos aqueles que o rodeiam. Temido, bêbado, violento e sempre insatisfeito, ele passa a ser um “animal”, xingamento, que a esposa ferida finalmente te a coragem de proferir. Mas, antes mesmo que percebamos isso, o Autor já nos mostrou os cães, emblemáticos, espécies de alter-ego do casal. E as aves e os peixes da lagoa da Urdiceira, espécie de pântano comparável ao pântano moral do qual os personagens não conseguem escapar. Os pássaros feridos, os peixes orgulhosos, que se enterram na lama, os cães que se destroem em pesadelos sexuais, as fálicas enguias, que fumegam e são consumidas com sofreguidão, nas noites iluminadas pelas fogueiras infernais.
No texto, a reportagem se monta através dos diferentes pedaços apurados com uns e outros. Lembranças e sonhos do passado, conversas do presente, e o livro da crônica dos primeiros Palma Bravo, aliados a algumas conjecturas do Autor, vão criando flashes, pequenas cenas de caráter cinematográfico, cuja justaposição esclarece umas às outras. Enquanto isso, o agressivo costurar do “Dente” espalha sua versão apocalíptica anunciando o fim da casa dos Palma Bravo, do odiado infante que dominou a vila com seu exemplo decadente. O que o velho vendedor de loterias não pode perdoar a esse Infante é ele ser tão pouco condizente com seus ancestrais. Motivo de escândalo, ele é ridicularizado, desmascarado pelas metáforas do Velho, secundado pelo Batedor, seu acólito.
Tudo isso chega a nós, leitores, numa linguagem próxima à de Hemingway, a quem Cardoso Pires confessadamente admira o “traçado substantivo da escrita e a visualidade dos diálogos”. Escrito nos anos 1960, o romance não envelheceu. Conserva seu vigor e o interesse, embora os personagens que retrata estejam, nos dias de hoje, já em extinção. No entanto, as dinâmicas entre eles continuam válidas e as lições de leitura ministradas pelo Autor, em sua apaixonada observação, nos permitem compreender como nossos quebra-cabeças particulares se montam em verdadeiros painéis de nossa história contemporânea.