Olhos de lince

Nos ensaios de “Assunto encerrado”, a visão aguda de Italo Calvino faz desfilar diante do leitor uma avalanche de idéias
Italo Calvino por Ramon Muniz
01/09/2009

Assunto encerrado — Discursos sobre literatura e sociedade reúne muitos dos ensaios, conferências, artigos e entrevistas, acumulados por Italo Calvino desde meados da década de 1950. Com o olhar atilado de um lince, não deixa escapar nenhum detalhe de seu foco de visão, do alcance abrangente de suas análises.

O título escolhido pelo autor, traduzido da expressão Una pietra sopra em italiano, quer conotar a intenção de fechar o ciclo de suas reflexões sobre os mais variados temas, envolvendo literatura e sociedade. Mas, no fundo, se Calvino buscava algo como “ponto e basta”, o que parece ter alcançado, devido à profundidade minuciosa desses ensaios, é exatamente o contrário. Em vez de um ponto final ou de um assunto que se encerra, vemos desfilar diante de nós a policromia de um mosaico de idéias, que só se expande e se abre a questões que propõem muito mais dúvidas do que respostas.

Talvez por isso, o leitor desavisado ao encontrar, logo às primeiras páginas e também na contracapa, um conceito de literatura enquanto arte maior e superior, cuja missão seria a de oferecer ao homem o que as demais formas de conhecimento não conseguem, poderia ficar com a falsa impressão de que Calvino, aderindo a certo proselitismo, apenas teria se preocupado em nos convencer de que a arte é, em essência, engajada, já que manifestação ideológica, que visa atingir determinados fins. Mas à medida que avançamos na leitura o que nos surpreende, positivamente, é que eles dão conta da evolução da trajetória do autor: da fidelidade à causa da resistência partigiana (numa visada literária neo-realista), até a imersão total nos conceitos do formalismo russo, no estruturalismo francês e, especialmente, na semiologia de Barthes e na narrativa como jogo combinatório, fatores determinantes em sua postura, enquanto intelectual e ficcionista.

Literatura da Resistência
Diante destes estudos, importa notar a nítida relação de complementaridade que estabelecem com a prolífera obra ficcional do autor. Assim sendo, faz-se necessário atentar a algumas particularidades do ficcionista, que ecoam ou, em boa medida, ilustram alguns dos temas abordados pelo ensaísta.

De fato, os passos iniciais da longa travessia começam com a publicação do primeiro romance, em 1947: A trilha dos ninhos de aranha. Como revela no prefácio de Os nossos antepassados (1952), o que se respirava, então, em tempos de pós-guerra, eram ares rarefeitos e sufocantes, de uma época marcada pelo terror, em que tudo ao redor só exalava o cheiro da desolação. Assim, diz ele, o que poderíamos nós escritores senão representar, por meio de um viés mais realista, o que nos bombardeava o tempo todo? Importa observar — como já verificamos na edição 111 deste Rascunho — que vários escritores italianos, àquela época, aderiram à mesma causa, assumindo-se como representantes de uma literatura engajada de Resistência. É no ensaio Três correntes do romance italiano de hoje que Calvino reafirma, como período extraordinário do espírito italiano, aquele que acompanhou e seguiu a Resistência, a vitoriosa luta popular contra o fascismo:

Foi um período duro e milagroso, um despertar único em nossa história, que nem sequer durante o Risorgimento conhecera participação popular tão generalizada, exemplos tais de abnegação e coragem, tanto fervor de renovação na cultura. A Resistência fez crer que era possível uma literatura como épica, carregada de uma energia a um só tempo racional e vital, social e existencial, coletiva e autobiográfica. Aquela espécie de tensão mítica que anima as obras de Pavese e Vittorini é o fruto mais precioso e irrepetível desse clima.

Encontramos ecos desse mesmo tipo de exaltação, não apenas no primeiro romance, já mencionado, marcado pela experiência partigiana, mas também numa segunda fase a que tem início, especialmente, a partir da década de 1950 por conta da publicação da famosa trilogia, que o tornou conhecido em diversos países: O visconde partido ao meio (1952), O barão nas árvores (1957) e O cavaleiro inexistente (1959). Esse, talvez, possa ser lido como interessante momento de primeira ruptura formal, em relação ao projeto inicial do autor, pois evidencia a opção pelo universo fabular e alegórico. Mas mesmo que, agora, os protagonistas representem o trágico homem moderno problemático e “partido ao meio”, mesmo que a alegoria assuma as vestes da inovação, atingindo em cheio as múltiplas possibilidades de representação do real, distante do projeto artístico do neo-realismo, ainda há a busca reiterada por um conceito de literatura que signifique algum tipo de resistência.

Encontraremos, também, sinais dessa tensão mítica da Resistência, por exemplo, em O barão nas árvores, a história do menino Cosme, que não suportando mais viver no reino da Penumbra (na casa da nobre família, junto aos pais e aos irmãos) decide fugir para o alto das árvores, de onde não sairá jamais. Porém, mesmo “tirando os pés do chão”, o protagonista continuará se relacionando com os demais habitantes de seu reino, atuando como importante político visionário, participativo e engajado. De certo modo, a ficção, nesse caso, estaria atualizando o conceito de “intelectual orgânico” de Gramsci, tão caro a vários escritores da época. Ir para o alto das árvores não significa, assim, fugir para o mundo inacessível da cultura hermética, desvinculada do contexto social.

A propósito da importante ascensão de pensadores italianos do primeiro pós-guerra, no mesmo ensaio acima citado, Calvino lembra Gramsci e Gobetti, como verdadeiros patrimônios de toda jovem cultura italiana.

Tendências da literatura italiana
Quanto às tendências da literatura italiana atual, concluirá afirmando que só será possível analisá-las a partir do impulso épico inicial da literatura da Resistência. O que se observa como diferencial, desde então, não será a existência de vertentes literárias bem explícitas, como por exemplo, as do noveau roman e a da école du regard francesas, mas personalidades de escritores muito complexas e diferentes entre si.

Num primeiro bloco, destaca Vasco Pratolini, Carlo Cassola e Giorgio Bassani como representantes da busca de um aprofundamento sentimental e psicológico em chave melancólica.

Pasolini é o nome mais significativo, ao lado de Carlo Emilio Gadda, dos que investem em uma literatura de tensão lingüística, tensão que se estabelece por meio de um mergulho na língua falada, dialetal. Aqui, Calvino propõe interessante problematização, mesmo reconhecendo a maestria dos dois autores:

Nesse ponto, porém, perguntamo-nos se o retorno às expressões rudes, simples e limitadas, como as do dialeto, seria o caminho correto para transmitir uma imagem do mundo cada vez mais complexo em que vivemos.

Ao tocar de perto na chamada “eterna questão da língua italiana”, ele acusa a ênfase excessiva dada à preservação original e genuína dos dialetos, especialmente ao se pensar em termos de uma língua italiana que se pretenda traduzível, que almeje ser difundida em outros países.

Tratando do tema, demonstra-se partidário de uma língua que busque um grau de abertura maior, num alargamento de fronteiras, em que o italiano seja compreendido em relação a outras línguas e não voltado apenas às questões internas e dialetais.

Rumo à terceira tendência, que ele define como a da transfiguração fantástica, toma a si mesmo como exemplo de autor representativo. E então, passa a justificar a sua, já referida, guinada de postura (nos anos 1950) como ficcionista que, tendo partido da ambientação neo-realista dos escritores do pós-guerra, buscará respostas a um novo projeto formal de representação do real, por meio do fantástico, fabular e alegórico.

Arte combinatória
Outro longo ensaio digno de nota é o que trata da narrativa como arte combinatória: Cibernética e fantasmas, extraído de uma conferência inicial proferida em Turim, Milão, Gênova, Roma e Bari para a Associazione Culturale Italiana (em novembro de 1967).

Aqui, verificamos a evolução da trajetória das concepções do autor acerca da literatura, particularmente devido à sua imersão em dado período na intelectualidade do estruturalismo francês e nas lições de semiologia de Barthes. Em 1968, de fato, participa dos seminários do eminente professor na Sorbone, além de outros realizados por Greimas, em Urbino. Permanecerá um bom tempo em Paris, freqüentando Queneau e outros do grupo Oulipo (Ouvroir de Littérature Potentielle).

Partindo do pressuposto de que todo ato narrativo implica a exploração das possibilidades implícitas da própria linguagem, combinando e permutando as figuras, ações e objetos, toca o cerne do conceito de ars combinatoria, associado ao conceito de literatura enquanto jogo, tão defendido por Barthes e filosoficamente analisado por Huizinga em Homo ludens.

Calvino postula que a narrativa oral primitiva, assim como a fábula popular, da forma como se transmitiu quase até nossos dias, molda-se em estruturas fixas que permitem um número enorme de combinações. Para tanto, também lança mão das teorias de Propp, na análise do conto maravilhoso.

O que se tem como conseqüência disso, em termos de problemática da narrativa contemporânea, é o que, segundo o autor, foi muito bem formulado pelas pesquisas estruturais francesas, tais como as propostas pelo grupo Tel Quel, em que:

Escrever não consiste mais em narrar, mas em dizer que se narra, e aquilo que se diz se identifica com o próprio ato de dizer: a pessoa psicológica é substituída por uma pessoa lingüística ou até gramatical, definida apenas por sua posição no discurso.

Assim sendo, já que é possível desmontar e remontar o processo da composição literária e que a figura do autor tende a desaparecer, o momento decisivo da literatura será o da leitura, o do olho que lê.

Em síntese, poderíamos concluir que a arte combinatória, intrínseca aos modos de narrar e de fabular, nos autoriza a verificar o fenômeno literário, muito mais centrado nos procedimentos de arranjo de um sistema de estruturas, que busca o “como” se conta, em detrimento do que “o quê” se conta. Em operações como essas, o eu do autor que escreve se dissolve e concentra todo poder na percepção do leitor, que assume totalmente a cena. Teríamos, em certa medida, assim explicada, a verdadeira avalanche de estudos atuais em torno de uma Teoria da Leitura. A propósito, o próprio Calvino ilustra bem isso, no famoso romance Se um viajante numa noite de inverno.

Biblioteca ideal
No ensaio dedicado a Northrop Frye, A literatura como projeção do desejo, Calvino assume deliberado posicionamento anticanônico, dando a entender o quanto certas obras à margem ou escondidas mereceriam vir à luz. Assim agindo, situa-se ao lado de ensaístas como Susan Sontag que propõem a releitura como estratégia de combate às classificações peremptórias e preconceituosas ditadas por segmentos da cultura, detentores de poder.

Daí por que afirma:

A biblioteca ideal para a qual eu tendo é aquela que gravita em direção ao exterior, em direção aos livros “apócrifos”, no sentido etimológico da palavra, isto é, os livros “escondidos”. A literatura é busca do livro escondido distante, que muda o valor dos livros conhecidos, é a tensão em direção ao novo texto apócrifo a ser reencontrado ou inventado.

Ficção e ensaio
Se o nome de Italo Calvino é considerado um marco da literatura italiana e mundial, referência no universo das letras, cumpre observar que a força torrencial de sua narrativa ficcional deve muito à sua produção ensaística.

O desenvolvimento dos temas concernentes à literatura, tratados nessa sua antologia de ensaios, dá conta de um amplo espectro conceitual, que parte da noção de literatura engajada para atingir, em outro extremo, a da literariedade, das pesquisas de cunho formalista e estruturalista da linguagem.

A versatilidade dos assuntos aqui tratados aponta à trajetória evolutiva de um autor que não se deixou encapsular pelas tendências de determinada época, mas soube se renovar, traduzindo, de maneira lúcida, as transformações pelas quais, necessariamente, toda cultura passa.

Mais ainda, conforta perceber que o Calvino ensaísta caminha, de mãos dadas, com o Calvino escritor. No romance de estréia, direciona o olhar ao diminuto microcosmo dos ninhos das aranhas para chegar, ao final, em sua última obra, à visão maximizada e telescópica do Sr. Palomar.

Assunto encerrado
Discursos sobre literatura e sociedade
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Italo Calvino
Trad.: Roberta Barni
Companhia das Letras
384 págs
Italo Calvino (1923-1985)
Nasceu em Santiago de Las Vegas (Cuba) e foi para a Itália logo após o nascimento. Participou da resistência ao fascismo durante a guerra e foi membro do Partido Comunista até 1956. Estreou na literatura em 1947, com A trilha dos ninhos de aranha, e passou a ser conhecido com a trilogia O visconde partido ao meio (1952), O barão nas árvores (1957) e O cavaleiro inexistente (1959).
Maria Célia Martirani

É escritora. Autora de Para que as árvores não tombem de pé.

Rascunho