O milagre do pão
ou Receita para fazer poema
Para fazer o poema
é preciso pôr a mão na massa.
Escolher os ingredientes:
as palavras na medida certa
— trigo e fermento
para o poema crescer.
Uma pitada de sal não pode faltar.
Açúcar, um pouquinho só:
dos açucarados devemos ficar longe.
Mas há poema doce e de sal,
sovado, light, integral.
Capriche na forma e evite as fôrmas.
Não enfeite demais,
no miolo está o valor do poema.
Mexa, remexa,
trabalhe bastante.
É preciso comer o pão que o diabo amassou,
mas não deixe o suor à vista.
Pequenos cortes darão vida
e consistência.
Quando estiver pronto,
deixe-o descansar
— na gaveta.
Não há forno para poema.
É no calor do leitor que crescerá.
Muitos dizem que ele não é necessário,
mas a alma precisa comungar com a poesia.
No poema a hóstia será consagrada
e o pão nosso virá a cada dia.
…
Mudança
Lá se vai a casa
cheia de medos da infância
e malas confidentes.
Os caminhos a levam.
Da viagem
o cansaço acomoda
panelas, móveis
e minha coleção de selos.
O assoalho geme à falta de intimidade.
A noite cuida do meu quarto:
olhos sonolentos tropeçam
na áspera parede de chapisco
— montanhas intransponíveis.
Amanhã saberei teus cheiros,
tua voz e o segredo de tuas cores.
Hoje não tenho a chave da porta.
…
O caos e o asco
Dançar como os pardais, no azul do espaço,
para escapar à fúria que há no aço.
Reynaldo Valinho Alvarez
O caos e o asco
deixam a vida sem escolha.
O acaso, novo deus,
esbarra o dedo na ferida.
Na bolsa de apostas,
o ocaso do bom senso e o nonsense.
O que te aguarda na esquina?
A cada manhã o mesmo breviário.
Ao sinal vermelho,
a busca de abrigo,
as pernas bambas,
a balbúrdia das sirenes.
Aberto o sinal,
os malabares não brincam mais.
Restam lembranças
dos bambolês, amarelinhas
e doces balas perdidas na infância.
As mãos atadas apontam para o nada.
Dor alheia é dor do outro,
e banal a barbárie na TV.
Mas o outro somos nós,
entre o caos e o asco,
neste Rio do Esquecimento.
…
A estátua
No mar estava escrita uma cidade.
Carlos Drummond de Andrade
Ser estátua
não é pedido que se faça.
E ele nem pediu.
No banco de pedra, de costas pro mar,
pensa a cidade.
Acolhe pombos e aves agourentas.
No meio-dia branco de luz,
o menino permanece sozinho.
O homem atrás dos óculos
quer a sombra de amendoeiras.
Tem oitenta por cento de ferro na alma.
Cem por cento de bronze na eternidade.
Alguns anos viveu no Rio de Janeiro,
serviu à cidade
que agora de nada lhe serve.
Ao povo sem memória,
a história mais bonita,
comprida história que não acaba mais.
…
De um armário
Três gavetas duas portas:
o que guarda o antigo armário
mineiro pinho-de-riga?
Guarda o tempo e a memória.
Três gavetas duas portas:
não guarda roupa louça ou dinheiro
nem remédio que cura e envenena.
Guarda o mistério alcoviteiro.
Três gavetas duas portas:
não tem chaves mas segredos
que os anos agora revelam.
Em duas gavetas e duas portas
guarda gestos e remorsos
velhos sachês folhas mortas.
É a terceira gaveta que mostra
no deslizar sem atrito
o século de usura.
Esconde no vazio de pudor e nódoa
o que com zelo guardou:
envelope fechado com selo e censura
— última carta de amor.
…
Dívida
Drummond é Deus. Pai inalcançável.
Armando Freitas Filho
Eu não pensei em falar de Drummond.
Pelo menos neste poema, não quero.
Mas como evitá-lo? Como esquecê-lo
se a sua imagem é onipresente?
Lá está, sentado, de pernas cruzadas,
as costas pro mar de Copacabana.
O hábito de sofrer que o divertia,
era doce lembrança itabirana.
Já não sofre nem se diverte mais.
Agora estátua, apenas bronze frio,
o banco de pedra é quase um altar.
As crianças o tratam como santo.
Indecisos, adultos se dividem:
alguns adoram, vândalos aviltam.
No poema de Armando, Drummond é Deus.
Eu acredito. É Deus, está escrito.
…
Página virada
Ah, vida, porque pões asa
no sonho e não em quem sonha?
Afonso Felix de Sousa
O tempo se dobrou como a folha do dicionário.
E foi deixando marcas indeléveis.
À primeira dobra não dei importância.
Acreditei que um passar de dedos poderia alisá-la,
o próprio peso do papel iria corrigir o amassado.
Um dia, os sonhos foram perdendo altura
e soube que essas marcas nunca sumiriam.
Página virada, a ruga, hoje, faz parte do sorriso.