Mister Magic em Campo Seco

Conto de Henrique Schneider
Ilustração: Maureen Miranda
01/10/2009

Quando o ônibus deixou-o em frente àquela casinhola desamparada, Mister Magic pensou que fosse um engano. Apenas no momento em que leu o cartazete afixado na porta, com os dizeres “Rodoviária de Campo Seco”, é que teve a triste certeza de que aquele era o lugar. Tratou de abrigar-se logo da chuvinha gris que deformava ainda mais as casas pobres do lugarejo, em cujas ruas reinava um silêncio estranho de deserto, e entrou na saleta da estação, onde um casal de velhos parecia esperar o próximo ônibus há muitos anos. Ninguém mais por ali, além do vendedor pendurado no guichê sonolento. Mister Magic remexeu nos bolsos e tirou deles uma papeleta amarrotada.

“O Hotel Real, por favor?”

O atendente mantinha toda sua atenção estranhada naquele recém-chegado carregando uma valise vermelha e tão variados apetrechos, mas lembrou-se de responder:

“Reto nesta rua, duas quadras, em frente à praça.” E, como se fosse necessário informar: “É o único hotel da cidade”.

Mister Magic olhou para os seus sessenta anos e todas as tralhas que há tanto o acompanhavam e achou que merecia um táxi. Mas o dinheiro contado na carteira negava-lhe este luxo e o contrato só lhe oferecia alimentação e hospedagem, além do cachê vergonhoso que aceitara sem hesitar; assim, resolveu enfrentar aos saltos aquela chuva que, mais tarde, lhe cobraria algum preço. Duas quadras não eram o fim do mundo; aquela cidade talvez fosse.

“É bom o hotel?”

“O melhor da cidade”, respondeu o outro, como se contasse uma piada.

Mister Magic riu apenas por não ter outra coisa a fazer, enquanto recolhia os apetrechos recém-desembarcados. Quando levantou do solo a valise vermelha que lhe fazia as vezes de bagagem, sentiu novamente nas mãos aquele tremor cada vez mais constante e que tanto o assustava.

As duas quadras lhe pareceram quilômetros de distância e a garoa teimava em vencer, com a ajuda daquele vento puro dos descampados, as frágeis defesas do guarda-chuva amarelo que também usaria à noite, no espetáculo. Quando chegou ao hotel, trêmulo e com os ossos úmidos, suas seis décadas de vida pesavam como uma centúria e sua figurinha miúda tentando um resto de imponência causaria risos em qualquer um se não despertasse tanta pena.

“Boa tarde”, cumprimentou o atendente, a voz sumida. “Tem uma reserva em meu nome. Mister Magic.”

O homem olhou-o com uma dó que ia além de sua pobre figura; mirou-o como se fosse o arauto de uma tragédia:

“Ah, o senhor é o mágico? Infelizmente, a reserva foi cancelada.”

O chão faltou, por um momento, às pernas magras de Mister Magic, mas ele recompôs-se logo: um artista internacional sempre é maior do que as pequenas adversidades.

“Deve haver algum engano. Eu tenho uma apresentação aqui, hoje à noite. No Clube Comercial. Fui contratado pela Prefeitura, é um espetáculo comemorativo ao aniversário da cidade. Quarenta e três anos de emancipação.” Ele desfiava informações como se estas tivessem o poder de resolver a situação.

“Eu sei”, disse o homem do hotel, compreensivo. “Parece que a apresentação foi cancelada. Mas quem vai lhe explicar melhor é o secretário do prefeito. Ele pediu que eu ligasse assim que o senhor chegasse.” E, condoído ante a velhice solitária que se enxergava atrás da pequena pose de artista, disse: “Sente, que em cinco minutos ele vai estar aqui”.

“Bom.”

O mágico atendeu ao pedido como se cumprisse uma ordem. Sentou-se numa das poltronas plásticas do saguão, gastas por tantos anos, e nada disse enquanto aguardava o secretário. Agradeceu com um gesto o copo de água que o homem lhe trouxe, embora preferisse uma xícara de café, e destinou o tempo a tentar acalmar-se e pensar na grande merda que era a solidão de sua vida: noites maldormidas em pensões baratas, apresentações em cirquinhos perdidos na história, coelhos assustados em aniversários infantis, os anos na estrada empoeirada dos caminhos pobres, os amores fugazes que nem deixavam nome, seis décadas de carteira vazia. E este tremor nas mãos, agora.

Quando o secretário do prefeito chegou e viu aquele velhinho estático e sentado na poltrona como se não estivesse ali, pensou que não seria fácil a conversa.

“Boa tarde, Mister Magic.”

O velho pareceu levar um choque e voltou assustado de suas lembranças solitárias. Levantou-se com dificuldade e estendeu a mão ossuda para o recém-chegado.

“Boa tarde”, respondeu. “O senhor poderia me explicar o que está acontecendo?”

O secretário parecia constrangido.

“É que a apresentação foi cancelada.” E, ante os olhos esbugalhados do velho: “Nenhum ingresso vendido”.

À falta do que dizer, o mágico sentou-se novamente, sentindo com mais força a umidade das calças; se não tivesse direito a um banho quente e roupas secas logo, amanhã estaria com febre e sem ter quem o cuidasse. Por isso, precisava resolver a situação. Nenhum ingresso vendido, pensou: ninguém mais se interessava por mágica. E ele era um homem velho e miserável perdido numa cidadezinha descampada onde ninguém iria ajudá-lo a não ser por dó.

Mas também era o artista, e esta aura precisava de alguma valia.

“Não divulgaram direito, com certeza. E por que não me avisaram?”

“Ligamos para o hotel onde o senhor mora. Disseram que já havia saído. Aí, já não dava para fazer nada.”

O mágico quis contemporizar; quanto mais rápido tudo estivesse resolvido, melhor.

“Tudo bem. E o meu cachê?”

“A Prefeitura paga a metade.” O secretário estendeu-lhe um cheque.

A metade de nada é nada, pensou Mister Magic. Mas era isso e pouco havia a discutir. Fora de casa somos menores, pensou o mágico, esquecendo que não tinha casa.

“Está bem.” Ele pegou o cheque, as mãos em surpreendente calmaria, e leu a quantia com dificuldade, olhos gastos ansiando por descanso. “E agora o senhor me dê licença. Este corpo velho precisa de um banho.”

Novamente, o secretário tinha dificuldade de esconder o constrangimento.

“A Prefeitura paga o cachê, mas não paga o hotel.”

De novo, a velhice solitária desabando em suas costas. Sem trabalho e pouso, um cheque mirrado no bolso, a gripe batendo à porta, ninguém a estender-lhe a mão. Não podia dar-se ao luxo de um hotel; não tinha dinheiro para isso. Teria que tomar o próximo ônibus de volta, seis horas molhadas e cada vez mais frias invadindo a madrugada, os sessenta anos gritando em protesto e transformando em dores a sua vingança. Viera para uma apresentação, um jantar garantido, uma noite quentinha; voltava sem nada disso.

O mundo não quer mais saber de mágica, pensou.

O homem do hotel olhou aquele velho sentado na ponta da poltrona, como se não quisesse estragá-la com seu peso inexistente, e percebeu que ele não agüentaria uma viagem de volta ainda no mesmo dia. Estavam vagos alguns dos quartos mais baratos — cama, pia, banho coletivo.

“Se o senhor fizer uma apresentação para os outros hóspedes, pode ficar por aqui esta noite.”

“São quantos hóspedes?”, perguntou o mágico.

“Uns seis ou sete.”

O velho soube, na hora, que a oferta era só comiseração. Enfim.

“E a diária é com café da manhã?”

“Com café da manhã.”

Mister Magic levou alguns segundos para responder o que já estava decidido desde o primeiro instante da proposta.

“Está bem.”

•••

Naquela noite, num hotel perdido de uma cidade-fantasma, apresentando-se em troca de cama e comida, seis hóspedes sonolentos assistindo sem luzes ao espetáculo da humilhação, Mister Magic só conseguia pensar, enquanto se atrapalhava com suas mãos cada vez mais trêmulas, que se a mágica servisse para alguma coisa, certamente deveria existir algum truque que o fizesse desaparecer dali.

Henrique Schneider

Nasceu em 1963, em Novo Hamburgo (RS). É autor das novelas Pedro BruxoO grito dos mudosA segunda pessoa e Contramão. Também integrou as coletâneas Antologia universitáriaCaio de amoresO livro dos homensPorto Alegre — curvas e prazeres e Os cem menores contos brasileiros do século.

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