“Não me interessa a crítica quando ela não se desenvolve na esfera daquilo que pretendi fazer”, respondeu uma vez a escritora norte-americana Flannery O’Connor, quando lhe perguntaram sobre uma resenha feita de seu livro. Em carta à amiga Elisabeth Bishop, O’Connor lamenta quando os críticos buscam em seus livros aquilo que não está nele, em vez de construírem suas análises a partir do que ele é. “Escrevo sobre os ideais da fé religiosa e da convivência humana, corrompidos pelos preconceitos enraizados, naturalizados e pela decadência econômica.” Vale lembrar que a escritora, assim como Willian Faulkner e Truman Capote, era do sul dos Estados Unidos. “Mas a crítica prefere dizer que faço apologia da religião católica em um país protestante do que reconhecer que coloco a fé espiritual em combate na alma humana”, disse à amiga poeta, “prefere dizer que sou racista a reconhecer que é justamente a intolerância, em todos seus aspectos, que coloco em confronto e evidência em meus livros”. Uma resenha havia especialmente irritado a escritora: “Como sou mulher e não escrevo histórias românticas, não tenho como temas a paixão nem o sexo, fui considerada ‘esquisita’. O que, em outros escritores, seria interpretado como humor ácido ou ironia, em mim foi visto como frieza”.
Não é preciso ir à América do Norte para encontrar outros escritores que pensam ou pensaram de forma semelhante à Flannery O’Connor a respeito da atividade da crítica literária. “O crítico deve saber a matéria em que fala, procurar o espírito do livro, escarná-lo, aprofundá-lo, até encontrar-lhe a alma”, escreveu em um artigo o nosso Machado de Assis, em pleno século 19. O escritor brasileiro, hoje cânone nacional, ouviu duras palavras a respeito de seu trabalho. “Um artista de menor porte e sem autenticidade”, sentenciou Silvio Romero, nos primeiros anos da escrita machadiana. E mesmo posteriormente, após o lançamento de Dom Casmurro e Memórias póstumas de Brás Cubas, “o estilo de Machado de Assis, sem ter grande originalidade, sem ser notado por um forte cunho pessoal, é correto e maneiroso, não é vivaz, nem rútulo, nem grandioso, nem eloqüente. É plácido e igual, uniforme e compassado”. O que hoje a recepção crítica considera profundamente inovador na obra de Machado, como a fragmentação e a não linearidade, o discurso psicológico integrado à narrativa dos acontecimentos e fatos, Romero considerava falhas imperdoáveis: “Vê-se que ele apalpa e tropeça, que sofre de uma perturbação qualquer no órgão da palavra […] repisa, repete, torce, retorce tanto suas idéias e as palavras que as vestem, que nos deixa a impressão dum perpétuo tartamudear”.
No decorrer de sua carreira, o próprio Machado de Assis exerceu a crítica, sem deixar de perceber que havia no ofício perigosas armadilhas. “A crítica, que para não ter o trabalho de meditar e aprofundar, se limita a uma proscrição em massa, é a crítica da destruição e do aniquilamento”, ele escreveu em um artigo. O nosso grande escritor brasileiro, ao sair de sua posição de criador para a de leitor especializado, reconheceu que havia a sua frente um trono transitório, no qual, pelas horas em que levaria escrevendo a crítica, poderia sentir-se Deus de um pequeno mundo. Pequeno, como é o mundo literário, mas, visto do ilusório trono da crítica, aparentemente infinito e suscetível a tudo que o seu olhar aludisse e o seu dedo apontasse. “Uma crítica que para a expressão de suas idéias só encontra fórmulas ásperas pode perder as esperanças de influir e dirigir.” Machado tinha as esperanças de que, um dia, a crítica literária se ocuparia mais com a estética e a concepção criativa do que com vaidades ideológicas e interesses circunstanciais. “Do outro modo, o crítico passará do limite da discussão literária para cair no terreno das questões pessoais; mudará o campo das idéias para o de julgamentos e recriminações.” Machado de Assis não tinha dúvidas de que quem perdia com isso não era ele, ou qualquer outro escritor, mas a própria literatura.
No entanto, as esperanças de Machado só encontraram eco no século seguinte, na figura sempre interessada, e, talvez, por isso, também sempre interessante, do crítico Antonio Candido. Em Estouro e libertação, artigo escrito sobre Oswald de Andrade, Candido demonstra ponderação para tratar da obra do controverso escritor: “Ainda não é o momento de julgar uma atividade que se inicia cheia de expectativas e promissoras de renovação”. Candido sabia que Oswald de Andrade era uma figura polêmica, e, por isso, amada e odiada com intensidade, independentemente de sua obra. “Tudo isso nos leva à necessidade de estabelecer a seu respeito alguns juízos cuidadosamente formados, e não oriundos das conversas de café ou da informação apressada”, ponderou o crítico, que escreveu um artigo com critérios de análise bem definidos. “Nota-se, antes de mais nada, uma técnica original de narrativa e uma procura constante de estilo. Um esforço de fazer estilo.” E é a partir da experimentação estética em Memórias sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande que Candido inicia sua reflexão teórica, buscando as referências na própria obra oswaldiana, e não fora dela.
Candido pensava a literatura brasileira como um embate expressivo entre a língua e o pensamento. Para ele, cada livro publicado era o resultado de uma visão e posicionamento a respeito desse embate. Cada escritor, um novo universo a ser desvendado, um novo enigma a ser decifrado, e não julgado. Provavelmente, por isso, a sua reação ao ler o romance de estréia de Clarice Lispector, Perto do coração selvagem, foi bem diferente da de seu colega Alvaro Lins. Enquanto Lins apontava no romance da autora os aspectos que não correspondiam à estrutura tradicional da narrativa, julgando-os grandes equívocos, Candido buscou se aproximar das diferenças da escrita de Clarice, reconhecendo em seu estilo e voz narrativa grande singularidade. “Este romance é uma tentativa impressionante para levar a nossa língua a domínios pouco explorados”, escreveu no artigo Uma tentativa de renovação. E disse, anos depois, “Clarice Lispector forçou a crítica brasileira a rever as suas referências”, com a consciência de que a literatura não é uma estrutura sólida sobre a qual cada escritor deve pôr a sua massa, mas sim um organismo em constante elaboração, feito, não de regras, mas de convenções, nas melhores vezes, criadas pelo próprio autor. O movimento de uma crítica digna não seria então de fora — dos arcabouços e critérios teóricos — para dentro, mas de sempre de dentro para fora, da visão pessoal do artista para os ditames do nosso mundo.