Clarice Lispector é um dos fenômenos mais “estranhos” da literatura. Sua obra não tem nada de popular, sua escrita é repleta de signos complexos e as tramas de seus livros também podem ser classificadas como “esquisitas”. Ainda assim, tudo em relação ao seu nome gera comoção — seja nas redes sociais, na vida real, no Brasil ou no exterior.
A partir deste sábado (23), o fenômeno Clarice será colocado à prova novamente. A exposição Constelação Clarice, promovida pelo Instituto Moreira Salles, na sede da Avenida Paulista, em São Paulo, faz uma retrospectiva da vida e da obra da autora nascida na Ucrânia, que chegou ao Brasil ainda criança com a família. A entrada é gratuita, com agendamento prévio pelo site. A exposição vai até 27 de fevereiro.
No embalo da mostra, a Rocco lança As palavras e o tempo, que reúne mais de 4.500 frases de Clarice Lispector. A edição traz ainda ilustrações da neta da autora, Mariana Valente. A seleção inclui desde trechos de romances, contos e crônicas, até cartas e anotações pessoais.
Conceito
Constelação Clarice havia sido pensada para o centenário de nascimento da escritora, mas com a pandemia, a mostra ficou para 2021. O conjunto da exposição reúne aproximadamente 300 itens, incluindo manuscritos, fotografias, cartas, discos e matérias de imprensa, entre outros documentos do acervo pessoal da autora.
O conceito da exposição se baseia na relação de Clarice com as artes plásticas, um diálogo que era constante em sua obra. Daí a curadoria ter pensado em obras de artistas contemporâneas de Clarice para guiar a mostra.
São cerca de 20 artistas visuais mulheres, que atuaram na mesma época de Clarice, entre as décadas de 1940 e 1970. No conjunto, há trabalhos de Maria Martins, Mira Schendel, Fayga Ostrower, Lygia Clark, Letícia Parente, Djanira e Celeida Tostes, entre outras.
Diálogo
“Clarice era muito ligada às artes plásticas, em vários de seus livros há referências a essa manifestação artística”, diz em entrevista ao Rascunho a escritora Veronica Stigger, que junto com o poeta Eucanaã Ferraz assina a curadoria da mostra.
“Por exemplo, G. H. [personagem do romance A paixão segundo G. H.), é uma escultora. Virgínia, do romance O lustre, gostava de fazer bonecos. E há muitas outras conexões que o público vai encontrar em relação a esse diálogo”, explica Veronica, que começou trabalhar com a obra de Clarice ainda 2016, quando preparou a curadoria de uma exposição do acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM).
E, claro, a curadoria também trabalhou com “conceitos” presentes tanto nos livros de Clarice quanto nas obras selecionadas para a mostra. Na entrada da exposição, o público encontrará a escultura Calendário da eternidade, da artista Maria Martins, que também participa da exposição com outros trabalhos. De formato circular, a obra remete à ideia de continuidade, tema presente na produção de Clarice.
Em 11 núcleos, são apresentados trabalhos em diversos suportes, como escultura, pintura, desenho, fotografia e vídeo. As obras das artistas estão sempre em diálogo com trechos de textos de Clarice.
A seção “Tudo no mundo começou com um sim”, por exemplo, parte de uma frase do romance A hora da estrela, de 1977. O núcleo aborda o tema da origem, que é recorrente na obra da autora, evocado por imagens como a do ovo e da caverna.
“A obra de Clarice também fala muito sobre a casa como um lugar de estranhamento. Essa é a concepção do núcleo ‘Eu não cabia’”, diz Veronica. Lá estão obras como Caixa de fósforos, de Lygia Clark, o vídeo Eu armário de mim, de Letícia Parente, e também pinturas coloridas de Wanda Pimentel e Eleonore Koch, que apresentam uma casa estranhamente vazia, por vezes vista pelas frestas.
Clarice pintora
Outro seção que promete atrair a curiosidade do público, é a que traz pinturas assinadas pela escritora. São 18 trabalhos, produzidos entre 1975 e 1976, sem pretensão profissional — Clarice nunca expôs as obras. Nos quadros, é possível identificar algumas recorrências, como o tratamento gestual e a predileção também pela circularidade.
“Clarice era uma artista interessante também, muito preocupada com a matéria e com a experimentação. Ela usava materiais como esmalte de unha, caneta, vela, madeira. Tinha um olhar para o suporte”, diz a curadora.
Documentos
Nos dois andares da mostra, há ainda núcleos documentais, com itens que pertenceram à escritora, como cartas, diplomas, discos, máquinas de escrever e fotografias dos álbuns de família. Neste conjunto, destacam-se os quadros de sua coleção, entre os quais seu famoso retrato assinado pelo artista Giorgio de Chirico.
Entre as fotografias, está um registro de Clarice tirado pelo romancista Erico Verissimo, na década de 1950, em Washington. O material inclui também as primeiras edições dos livros da autora, periódicos, além da entrevista que a escritora concedeu à TV Cultura, meses antes de sua morte, em 1977.
A maioria dos itens exibidos provém dos arquivos do IMS e da Fundação Casa de Rui Barbosa, instituições que detêm o acervo da escritora, e da coleção pessoal de seu filho, Paulo Gurgel Valente.