Todos os meus livros são, na prática, um só. Um livro sobre a Sicília, que toca a ferida dolorida do passado e do presente, e que se organiza como a história de uma contínua derrota da razão. Leonardo Sciascia
Na Itália, giallo remete à cor amarela e também, no que concerne à literatura, ao gênero de romances policiais que se desenvolve, principalmente, a partir da metade do século 19, cuja temática é a do conjunto de situações que se configuram ao redor de um crime.
A palavra passou a ser usada como identificadora desse tipo de romance, devido à ampla difusão do gênero, com a coleção Giallo Mondadori, idealizada por Lorenzo Montano e editada por Arnoldo Mondadori, desde 1929. De fato, já que a cor da capa dos volumes de tramas policiais dessas publicações era a amarela, logo o giallo veio a substituir a expressão romance policial. Interessante observar que o fenômeno dessa renomeação ocorre especificamente na Itália.
E quando se fala em giallo italiano, o autor que aparece como pioneiro na consolidação do gênero é Leonardo Sciascia, siciliano de Racalmuto (1921-1989) seguido por tantos outros, tais como os famosos e atuais Andrea Camilleri (Comissário Montalbano) e Roberto Saviano (Gomorra).
Se pensarmos em seu livro mais famoso e amplamente traduzido, O dia da coruja (1961), e no que nasce cinco anos depois, A cada um o seu, teremos como elementos recorrentes quase todos os procedimentos que caracterizam esse tipo de trama, em sua matriz original. Há o crime a ser desvendado, um detetive, excepcionalmente racional e visionário, incorruptível, que vê o que os outros não vêem (ou fingem não ver), e também a figura do assistente, que é aquele com quem o leitor acaba se identificando. Em geral, esse auxiliar admite sua condição de “subalterno” ao detetive e talvez, por isso, chegue muito próximo à condição passiva do espectador/leitor que assiste a tudo, sem necessariamente interferir de modo direto nas ações que vão se desenrolando ao longo da narrativa.
Há ainda a necessidade de explicitar o local do crime, o terreno em que se deu o delito, como significativo pano de fundo em que se enunciam as pistas, seguindo sempre algum tipo de raciocínio lógico, aliado ao minucioso perfil psicológico dos personagens, na tentativa de resolução do enigma.
Unicuique suum
A cada um o seu não se distancia, em nada, do padrão dos romances policiais. A história é a de um crime, em que são assassinados o farmacêutico Manno e o médico Dr. Roscio, numa pequena cidadezinha da Sicília onde desfilam todos os tipos característicos locais.
À primeira página, a cena inicial é a do farmacêutico que recebe uma carta anônima com o seguinte veredicto: “Esta carta é sua sentença de morte, você vai morrer pelo que fez”. No verso, letras recortadas de um jornal, com os dizeres em latim: “Unicuique suum”. Ou seja: a cada um o seu.
O personagem que, nesse caso, assume a função do auxiliar que quer desvendar o mistério é Laurana, professor de italiano e latim no liceu clássico da capital, tímido, solteirão, com quem o leitor inevitavelmente simpatiza, já que a voz narrativa, em consonância com a estrutura dos romances policiais, em geral, visa essa espécie de cumplicidade:
Um homem honesto, meticuloso e triste; não muito inteligente, e, ao contrário, tinha até momentos de obtusidade evidente; com desequilíbrios e ressentimentos conhecidos e condenados; não privado daquela consciência de si mesmo, da presunção secreta e da vaidade características do ambiente escolar, mas, por formação e humanidade, era bem diferente dos colegas e do isolamento em que, como homem, por assim dizer, de cultura, acabava se encontrando. Em política, era considerado por todos um comunista; mas não era. Quanto à vida privada, era considerado uma vítima do afeto exclusivo e ciumento da mãe; e assim era. Chegando aos quarenta, ainda guardava dentro de si o desejo e o amor secreto por alunas e colegas que não percebiam nada ou mal se davam conta disso.
Aos poucos, acompanhando o raciocínio de Laurana, se saberá que a carta era apenas uma forma de despistar os indícios do que realmente ocorrera, e que o farmacêutico, usado como bode expiatório, nada tinha a ver com aquela ameaça que sinalizava algum tipo de vendetta (vingança).
O que se descobre, afinal, é que a mulher do médico Roscio, mantendo um relacionamento adúltero com o primo Rosello, político mancomunado com a máfia local, acata a decisão do amante — mandante do crime — e, como co-autora do delito, ajuda a maquiar todas as acusações que envolviam a morte do marido e do farmacêutico inocente.
Temos, assim, configurados todos os elementos de uma trama essencialmente policial, um thriller de suspense, em que as hipóteses são elaboradas, pelo viés da lógica do raciocínio articulado, pelas observações pontuais do professor que se dispõe a elucidar os assassinatos.
Porém, o que é muito importante verificar é que, nos gialli de Sciascia, os crimes acabam sempre sem ter o castigo que mereceriam. É assim que, mesmo quase chegando à total clareza dos acontecimentos que envolviam as vítimas, Laurana passa da situação de agente revelador à de outra vítima, terminando também por ser executado, numa terra de ninguém, em que a vida vale muito pouco.
A máfia e a Sicília
Quando os criminosos, acobertados e protegidos pela máfia, percebem que correm algum risco, imediatamente agem, no sentido de “apagar arquivos” comprometedores.
Talvez se possa afirmar que, em Sciascia, o recurso literário de escolha do gênero policial como matriz ficcional esteja muito mais atrelado a um prisma ético e moral da literatura do que estético. Melhor dizendo, embora lance mão de certos procedimentos visando atingir um padrão romanesco (no caso, o giallo) é como se, na pena do autor, a forma policialesca travestisse ou disfarçasse sua preocupação primordial: a da denúncia do poder absoluto e irrefutável da máfia.
Aqui é que se faz necessário situar a importância do autor, no contexto da literatura italiana. Foi da máfia que Sciascia falou, denunciando-a, quando, na década de 1950, a palavra sofria todo tipo de veto.
Ele mesmo, no conto Filologia de O mar cor de vinho, revela que a palavra passa a ser mencionada, desde a metade do século 19, e que seu sentido acaba adquirindo, ao longo da história, o significado de proteção (daí a justificativa da expressão “padrinho”, bem representada por Don Corleone, em O poderoso chefão).
Aliados ao contexto sociológico e histórico das origens da máfia teremos sempre o da constatação de que essa marca siciliana vem, entre tanto fatores, no bojo das conseqüências de uma política segregacionista que privilegiara o norte e abandonara a ilha.
A questão siciliana propriamente dita se insere no complexo tema, amplamente discutido por Gramsci ao tratar da questão meridional na Itália. De fato, afirma o eminente filósofo que:
A questão camponesa na Itália está historicamente determinada. Não é a “questão camponesa e agrária em geral”: na Itália, a questão camponesa assumiu, em decorrência do desenvolvimento determinado da história siciliana, a questão meridional e a questão vaticana.
Com efeito, a questão meridional é o modo concreto pelo qual se coloca na Itália a contradição mais geral entre cidade e campo, e a ela se ligam, diretamente, a caracterização do Sul como grande desagregação social e a observação — mais histórica — do relativo estranhamento das massas meridionais com relação ao Estado unitário, estranhamento que deu origem à chamada “oposição meridional”, mas que é também a razão de ser daquele potencial de contestação política que existe no Sul e que o Estado burguês italiano não foi capaz de integrar.
Assim sendo, costuma-se associar a máfia a um tipo de reação, uma resposta do crime organizado à desagregação social marginalizada do Sul, numa terra em que a falta de investidura da autoridade legal abriria os precedentes para uma outra espécie de “justiça”, pautada na noção de uma honra viril (daí a celebração da omertà, derivada de uomo, homem que resolve seus problemas sem a mediação do Estado).
Há vários estudos que, analogamente e, guardando as devidas diferenças e peculiaridades de cada contexto, aproximam o fenômeno da jagunçagem do agreste sertão brasileiro à formação dos grupos mafiosos do Sul da Itália, em que os afilhados silenciam, respeitando o pacto de omertà, esperando receber, em troca, a proteção prometida pelos padrinhos. Daí o porquê da impunidade, na maioria dos delitos que se cometem e que, como num círculo vicioso de condicionamentos vários, de uma espécie de determinismo atroz, não deixam nenhuma possibilidade de saída.
Veja-se, a propósito, o que ocorreu recentemente com o escritor napolitano Roberto Saviano, cujo livro Gomorra, que inspirou o filme homônimo muito premiado, uma vez assumindo a voz da denúncia contra a Camorra, máfia napolitana, acabou tendo sua “cabeça a prêmio”, constantemente ameaçado.
Literatura comprometida
Se fôssemos buscar uma certa linhagem de escritores, em que Sciascia poderia ser inserido, teríamos — além, logicamente, dos que tratam da questão meridional geral, como Ignazio Silone, Corrado Alvaro, Carlo Levi etc. — mais propriamente os que representaram a identidade siciliana em suas mais variadas formas: Giovanni Verga, Giuseppe Bonaviri, Luigi Pirandello, Vitaliano Brancati, Elio Vittorini, Vincenzo Consolo e, mais atualmente, o premiado Andrea Camilleri.
Porém, em Sciascia, o eixo de força da narrativa se concentra no âmbito de uma literatura comprometida, de cunho ético de denúncia da máfia como marca siciliana, da qual não há escapatória.
Acertou Calvino, após ler A cada um o seu, ao afirmar: “Li seu policial que não é um policial com a paixão com que se lêem os policiais, e até com o divertimento de ver como o policial é montado ou, ao contrário, como é demonstrada a impossibilidade do romance policial no contexto siciliano”.
No fundo, no aparente paradoxo de tal constatação, presentificam-se os elementos fundamentais para a análise da obra do grande escritor. Justamente porque o contexto siciliano favorece a existência dos crimes sem castigo, ao assumir a forma clássica dos policiais de toda espécie, os gialli de Sciascia servem como máscara, truque de representação, maquiagem onde se escondem as feridas, sulcos profundos na pele de uma Sicília abandonada às atrocidades mafiosas.
Talvez, nesse embaralhamento de cartas, resida a força de sua narrativa, plenamente consciente de que, por mais que se queira disfarçar no rastro dos ancestrais detetivescos como Auguste Dupin, Edgar Allan Poe ou Arthur Conan Doyle, na terra de ninguém, a carta já é marcada. É o que afirma, a certa altura, o narrador de A cada um o seu:
Que um crime se apresente aos investigadores como um quadro cujos elementos materiais e, por assim dizer, estilísticos permitam, caso sutilmente identificados e analisados, uma atribuição segura de sua autoria é corolário de todos os romances policiais em que boa parte da humanidade bebe. Mas, na realidade as coisas se apresentam de forma diferente, e os coeficientes de impunidade e de erro são altos não porque (ou não apenas ou nem sempre) é baixo o intelecto dos inquisidores, mas sim porque os elementos que um crime oferece são em geral absolutamente insuficientes. Um delito, digamos, cometido ou organizado por gente que tem a máxima boa vontade em contribuir para manter alto o coeficiente de impunidade.
Por meio da leitura de romances como esse, talvez seja possível compreender em que medida, na Sicília, os gialli são praticamente impossíveis, já que nenhuma voz consegue se insurgir, em meio ao silêncio absoluto, tirânico senhor, num território em que ninguém nada vê, nada ouve, nada sabe.