Edição: Luís Henrique Pellanda
Em setembro, durante a I Bienal do Livro de Curitiba, o Rascunho, em parceria com o Sesi Paraná e a Fundação Cultural de Curitiba, realizou duas sessões extras do Paiol Literário. No dia 2, o projeto recebeu o escritor pernambucano Raimundo Carrero; no dia 3, o catarinense radicado em Curitiba Roberto Gomes (leia a transcrição nas páginas 20 e 21). A mediação de ambos os eventos ficou por conta do jornalista Rogério Pereira, editor do Rascunho.
Raimundo Carrero nasceu em Salgueiro (PE), em 1947, e atualmente vive em Recife. É escritor, jornalista e professor de criação literária. Publicou 17 livros, entre eles Somos pedras que se consomem, As sombrias ruínas da alma, Sombra severa, Ao redor do escorpião… uma tarântula? e O delicado abismo da loucura. Acaba de lançar A preparação do escritor e A minha alma é irmã de Deus (leia resenha na página 11). No bate-papo, Carrero falou sobre sua formação como leitor e escritor e apontou alguns temas centrais de sua literatura. Também discorreu acerca de sua relação com a religião, comentou sua experiência como professor experiente de oficinas literárias e analisou a péssima situação da leitura no Brasil.
• Vida melhor
A literatura devia ser o fundamento da vida das pessoas. De qualquer pessoa, em qualquer nível. Sabe-se, por exemplo, que aqueles que têm o hábito de ler costumam viver melhor. Quero dizer, têm um ponto de vista, uma leitura do mundo, e, assim, conseguem se relacionar, educar a família, viver melhor. É a base de todas as pessoas. É uma pena que, no Brasil, tenhamos pouca leitura. É algo impressionante. Temos, segundo as pesquisas, 191 milhões de brasileiros. E a tiragem média de um livro no país está entre dois e três mil exemplares. Ou seja, o número de pessoas que lêem é muito pequeno. Alguns alegam que é por causa do preço. Mas, para ler, você não precisa comprar o livro. Você o encontra em bibliotecas, em sebos. Seus amigos têm livros. A questão não me parece ligada a dinheiro, não. Me parece ligada ao hábito da leitura.
• Vida menor
Quem não lê tem uma vida menor, em todos os sentidos, porque não consegue apreendê-la, compreendê-la, senti-la no seu dia-a-dia. Isso, naturalmente, nós percebemos em todas as pessoas. Pessoas que lêem bem até em sua vida profissional têm melhores posições. Óbvio: sabem conversar, têm idéias. Sabem desenvolver sua capacidade de viver. No meu caso, tenho a impressão de que não conseguiria viver se não fosse escritor ou pelo menos um bom leitor.
• Livro e castigo
Comecei a ler muito cedo, no sertão de Pernambuco. Nasci numa cidade chamada Salgueiro, na divisa com o Ceará. (…) Lá, tive acesso a livros por causa de um castigo. Parece brincadeira: no Brasil, livro é castigo. Eu gostava muito de brincar, sempre gostei, e, se eu fizesse alguma coisa errada, como castigo eu ia para a loja do meu pai — que era comerciante e vendia tecidos e chapéus. E foi na loja dele que descobri, embaixo dos balcões, vários caixotes de livros de um de meus irmãos. (…) Assim, aos oito, nove anos, tive meu primeiro contato com os livros. A partir de então, eles se tornaram inevitáveis na minha vida.
• Todo o Ibsen
Meu irmão tinha muitos livros porque era ator de circo. Antigamente, o circo tinha duas funções. A primeira ia das sete às nove da noite, e era diversional. E, das nove até a meia-noite, eram apresentadas peças de teatro, geralmente baseadas em folhetos de cordel. Interessante era que todo circo apresentava uma Vida de Santo Antônio, e as Vidas de Santo Antônio eram todas diferentes umas das outras, não tinha nenhuma igual. Então, meu irmão comprava livros pelo reembolso postal e os guardava, todos. O teatro de Ibsen, por exemplo. Conheci todo o teatro de Ibsen quando tinha oito, nove anos. Lembro que era uma edição da Globo, de quando a Globo era de Porto Alegre. Seis peças de teatro. Li todas. Mas não posso dizer que as conheci no sentido da compreensão, da exegese, da análise. Eu ainda era um garoto começando a se formar.
• O inverso do regionalismo
O que me marcou foi a obra de José Lins do Rego. Eu tinha uns três, quatro livros num volume só: Usina, Menino de engenho, Bangüê. Me lembro bem demais da edição. Em papel grosseiro, papel de jornal. José Lins do Rego marcou minha vida, e ainda a marca, até hoje. Graciliano Ramos marcou minha vida inteira. Até certo momento, eu achava Zé Lins mais escritor que Graciliano. É claro que, à medida que fui amadurecendo, fui verificando que a grande literatura estava com Graciliano. A literatura de Zé Lins é mais documental, porque é ligada ao movimento regionalista. E o regionalismo era um movimento puramente de documento. Gilberto Freyre, que criou o movimento, dizia exatamente assim: “O romance deve estar ligado à sociologia e à antropologia, com alguma coisa de estética”. E, naturalmente, é o inverso: o romance é estético, com alguma coisa de filosofia e antropologia. No livro Menino de engenho, ocorre um erro gramatical que a gente também usa, mas que não tem nenhum sentido. Zé Lins diz assim: “Quando eu me acordei naquele dia”. Ninguém se acorda. Não há perigo disso acontecer. Você acorda. “Quando acordei.” A expressão “me acordar” é completamente errada. Não tem nenhum sentido você se acordar. Você acorda. Então, você consegue perceber isto: a obra de José Lins do Rego tem essa documentação. Na obra de Graciliano Ramos, você não encontra expressões populares ou erros gramaticais, porque a visão que ele tinha do romance era outra. Bem diferente.
• Marcante
Os autores que me marcaram — e ficaram —: José Lins do Rego, que continuo achando um grande escritor, Graciliano Ramos e Ibsen. E uma peça de Bernard Shaw, chamada Pigmaleão. Também li todo o teatro português, naturalista, das décadas de 40 e 50, e o teatro brasileiro, de Raimundo Magalhães, Juracy Camargo e outros.
• Baby Jr.
Fui para o colégio salesiano interno. Da minha cidade para lá eram dois dias, era muito longe. É interessante: a educação, hoje, é toda cheia de requintes com a juventude, e eu, quando estudava, só voltava para minha casa duas vezes por ano. Nem por isso sou infeliz, triste ou revoltado. Pelo contrário, sou agradecido. Quando cheguei ao colégio, eles haviam criado um jornal por lá. O lugar era dividido em três turmas: os maiores, os menores e os médios. Não sei por que razão os médios eram conhecidos como babies, um nome estrangeiro esquisitíssimo. E como a gente era baby, criaram um jornal chamado Baby Jr. Eu, então, achei que chegara a hora de escrever. Nesse jornal, publiquei um poema, me lembro bem, sobre um mendigo, numa rua. Escrevi com uma caneta vermelha, sem métrica, sem rima; mas era um soneto, e tinha que ter alguma técnica. Me lembro demais do tema. Pela primeira vez, estou falando disso, nunca falei disso com ninguém. Mas o jornal não evoluiu, e o rapaz que o fazia — o Aurélio, um seminarista responsável pela nossa turma — começou a me pedir para dar palestras. Parece incrível: eu, com 11, 12 anos, dando palestras, durante as aulas, sobre o escritor Paulo Setúbal, pai do Olavo Setúbal, um dos fundadores do Itaú. Pois foi no colégio que comecei a escrever e a ler sistematicamente. E, nas férias, eu me trancava num quarto, mais para fazer pose de escritor do que para ser escritor. Depois, comecei a escrever alguns contos curtos, pequenos.
• Agora estou pronto
Me considero um homem extremamente feliz na questão literária, porque, ou bem ou mal, construí uma obra. São 17 livros publicados. Desse ponto de vista, fiz o que quis. Eu me programei para ser escritor na vida, e raramente um brasileiro dá certo como escritor. Eu consegui. Nesse ponto, me dou muito bem, digo sempre que estou muito feliz e que, se tivesse que morrer agora, essa tristeza eu não carregaria comigo. Agora, o outro plano da história: acho que posso mais. Acho que o potencial que tenho hoje, já amadurecido como escritor, ainda precisa de uns ajustes, e que eu precisaria, no mínimo, de algo entre dez e vinte anos a mais, se Deus me conceder, para amadurecer e trabalhar melhor minha obra. Até porque a oficina me deu uma maturidade incrível, me fez conhecer a intimidade da obra literária. Mas, quando eu era criança, e até escrever A história de Bernarda Soledade, que é meu primeiro romance, eu achava que ter 50 anos era ficar velho demais. Aí chegaram os 50, achei que estava novo demais e programei minha vida de escritor até os 60. Neste ano, faço 62. E percebi, com enorme alegria, que, pelo contrário, agora sim é que eu estou pronto para ser escritor. Se eu pudesse recomeçar, apagaria o que escrevi e começaria agora. Agora é que eu me sinto bem.
• Não renego
Não renego nenhuma obra minha. Das 17 publicadas, duas são ensaios, O segredo da ficção e A preparação do escritor, dois livros de técnica literária, sobre como escrever um livro. E escrevi uma biografia curta, por encomenda da Câmara Legislativa de Pernambuco, sobre o deputado Orlando Parahym (O arco e o escudo). Os outros 14 livros são romances ou contos. Aliás, só escrevi um livro de contos (As sombrias ruínas da alma). Eu pensava que era romancista, mas, quando ganhei o Jabuti (em 2000), ganhei como contista. E ainda não tinha publicado nenhum conto. Então, posso falar tranqüilo: hoje, me sinto bem. Não seria infeliz, porque construí, porque escrevi. Mas, evidentemente, acho que ainda tenho muito que fazer. Preciso de algum tempo para escrever mais.
• A base da minha obra
Comecei a publicar muito cedo. Eu tocava numa banda de rock. Depois, decidi ser jornalista e comecei a escrever. Escrevi A história de Bernarda Soledade aos 23 anos. O romance obteve uma repercussão muito maior do que eu poderia imaginar. Depois, fiquei sem saber escrever mais. Passei seis anos sem consegui escrever uma frase. Porque me batia uma pergunta que foi crucial na minha vida. Crucial de um lado, porque me atormentava, e de outro, porque me ajudou a construir minha obra. Eu me dizia: “Quem é que vai acreditar nessa mentira?”. Eu escrevia um romance e parava. Escrevia um conto e parava. Então, depois de A história de Bernarda Soledade, um livro que claramente integra o movimento armorial, comecei a ter dificuldade para escrever. E comecei a ler com mais intensidade a Bíblia, até achar o núcleo da minha obra, que vai se desenvolver até A minha alma é irmã de Deus. Porque, nesse livro, há um episódio entre o rei Davi e Betsabé. Davi viu Betsabé tomando banho, nua, ficou apaixonado por ela, mandou que a mulher fosse ao seu palácio e, naturalmente, como um rei, como autoridade máxima, teve relações sexuais com ela e a engravidou. Ela disse a ele: “Estou grávida, o que faço agora? Sou casada com o general Urias”. Então, Davi chamou o general para que viesse passar um fim de semana com a mulher. O general veio e, por alguma razão, percebeu que havia alguma tramóia. Não entrou em casa. Dormiu fora. Betsabé foi ao rei Davi e disse: “Urias não entrou em casa”. Então não havia outra solução. Davi chamou o general e mandou que ele fosse para a guerra, na fila da frente. Portanto, ele teve que morrer. Quando morreu, apareceu ao rei Davi o profeta Natã, que disse: “Por causa dessa sua imprudência, desse seu crime, vão acontecer muitas desgraças na sua família”. E assim foi: o filho de Davi e Betsabé morreu. Amnon, outro filho de Davi, estuprou Tamar (irmã de outro filho de Davi, Absalão). Tamar, além de ter sido estuprada, foi rejeitada por Amnon, algo muito forte. Depois da relação, Amnon vomitou e rejeitou-a. Esse episódio é a base, o centro da minha obra literária. Algo incrível na minha vida. Porque minha obra é abalizada, mas minha família literária é muito desorganizada, cheia de defeitos. Então, A minha alma é irmã de Deus é um livro que, de certa forma, condensa muito do que há em outros romances.
• Um único romance
Você talvez se pergunte se é verdade que um escritor sempre quer ser, na verdade, o autor de uma única obra. É tudo que se quer. Escrever um romance que seja representativo de toda a grandeza, pela natureza dos seus fatos, por sua técnica, por suas sugestões. Um romance que se transforme na sua grande obra.
• Triste até a morte
Agora, vocês vão ver o meu lado religioso. Jesus Cristo diz uma frase humaníssima quando sobe o morro das oliveiras. Ele diz: “Eu, hoje, estou triste até a morte”. Só um humano pode ficar triste até a morte; um deus não ficaria. E aquele é um momento humano de Jesus Cristo. É claro que acredito que Jesus Cristo é Deus. É claro que sou religioso, e acredito piamente na religião, e rezo todo dia, e rezo muito. Mas a frase mais humana de Jesus Cristo é essa. É possível que seja o título do meu próximo livro. E acho que tenho experiência suficiente para escrever o meu melhor romance.
• Dom de Deus
Deus é um ser perfeitíssimo, criador do Céu e da Terra. Disso, não tenho a menor dúvida. Agora, a figura de Deus não é nem humana, nem absolutamente divina. A Idade Média passou sempre essa idéia de que Deus é uma pessoa furiosa. Eu ainda acredito na punição. A questão é que minha religião, meu Deus, digamos assim, ainda é meio medieval e meio moderno. Medieval, porque acredito nesse Deus punitivo, nesse Deus que pune os pecadores, desde que eles tenham consciência absoluta do pecado. Mas também acredito num Deus que é capaz de dialogar e conversar, de ser uma presença divina e bela na nossa vida. O Deus em que acredito, hoje, é o que está no meu coração como um ser transcendental, que pode ou não ter o paraíso — e a dificuldade de se acreditar num paraíso é muito grande, tenho consciência de que é uma ilusão. Mas, na verdade, embora esteja no Credo, embora eu esteja negando o Credo, não é bem assim. O Credo diz, claramente: “Creio na vida eterna”. Na vida eterna, eu acredito. Naquela vida que você deixa como exemplo para a sua família e para a sociedade, como uma qualificação do que você é e do que você foi. Para mim, existe esse Deus. Tanto o Deus punitivo, ainda medieval, como o Deus absolutamente maravilhoso, capaz da misericórdia. É preciso observar que as pessoas também chamam Deus de justiceiro, e Ele não é justiceiro. A justiça pertence aos homens, às sociedades humanas. Deus é misericordioso. Deus perdoa, sim. Perdoa a qualquer momento, a qualquer instante, desde que você esteja preparado para pedir esse perdão. Quanto à justiça, ela é absolutamente humana. Ela perdoa, mas pune. Se um sujeito comete um crime, ele é perdoado, mas vai pegar 20 anos de cadeia. A justiça foi feita. Não é? Então, esse Deus absolutamente maravilhoso pode estar no verso de Rilke, “todo anjo é terrível”. Mas Deus é terrível neste plano, o plano do absolutamente religioso, nesta capacidade que Ele tem de nos amar, de estar perto de nós. E, sinceramente, não acredito em inspiração, em talento, em estilo. Acredito no espírito. No Espírito Santo de Deus, que dá dom a todas as pessoas. Ninguém tem dom de escritor, nem dom de artista. Deus dá, a todos nós, todos os dons. Não nos dá um dom específico, não. Nos dá todos. Esses dons serão trabalhados mais tarde, ou não. Portanto, o que posso dizer é que o que eu escrevo, o que eu faço, é também um dom de Deus.
• O leitor, esse ingênuo
Todo leitor quer ser amado. Ninguém, a não ser o estudioso, vai ler um livro já sabendo de tudo que acontece nele. Porque um livro é repleto de surpresas. E a surpresa é o que torna um livro grande. Tanto do ponto de vista técnico como do ponto de vista da leitura convencional. (…) É preciso observar a literatura como algo absolutamente técnico, de surpresas e alegrias que o autor prepara para o seu leitor. Por que é tão fácil vender romances policiais e best-sellers? Porque o leitor está procurando pelas surpresas, pelas maravilhas desses livros, está procurando o amor literário. E ele o está procurando dentro do livro. É algo que nós, os escritores chamados requintados, às vezes esquecemos: a capacidade de oferecer uma surpresa ao leitor, uma circunstância em que ele se sinta beijado pelo autor. Ler um livro é como namorar. Você tem que sentir o prazer, a festa, a alegria de descobrir as artimanhas do autor. Então, quando vamos ler um livro, até nós, profissionais — se é que se pode chamar isso de profissão —, somos chamados a nos surpreender e alegrar com essas armadilhas que o autor prepara para o leitor. Então, nós mesmos, intelectuais, escritores, queremos descobrir essas maravilhas, e, se elas não aparecem, é claro que o livro não nos agradará. O que faz de alguém um bom leitor é claramente sua ingenuidade de esperar pelas alegrias e pelos amores que um romance pode oferecer.
• Duração psicológica
Um autor precisa explorar a chamada duração psicológica do leitor. Que é uma teoria que vem lá de Edgar Allan Poe. Ele dizia: “Quero escrever um poema como O corvo em cem versos, para que o leitor possa encontrá-lo inteiro na página. Ele vê, ali, o primeiro e o último versos, para que ele o leia com uma só duração psicológica”. E Poe negava o romance, embora fosse um romancista. Mas o leitor que, por acaso, se retira para atender um telefonema, para passear ou trabalhar, toda a vez em que volta ao livro volta outro leitor. Não volta mais o mesmo.
• Machado sofisticado
Machado de Assis escreveu um livro chamado Dom Casmurro, que, do ponto de vista da leitura, tem um título errado. O título não podia ser Dom Casmurro. Machado nos diz isso e a gente não acredita nele. Ele diz: “Olha, eu vou escrever um romance, mas não tenho um título para ele, não. Vou homenagear um poeta que veio comigo no trem, e que me pediu para ouvir alguns de seus poemas. Devido ao cansaço, cochilei, e ele me chamou de casmurro. Meus amigos acrescentaram o ‘dom’. Então, em homenagem a esse poeta, chamarei esse livro de Dom Casmurro”. É a primeira surpresa da obra, sua primeira sedução. Depois, Machado escreve um livro que, na verdade, é uma versão. Não é um romance. É uma versão da história de Otelo. Quem conhece a peça (de Shakespeare) sabe que Iago exerce um papel importantíssimo de intrigante. Ele quer convencer Otelo de que Desdêmona, sua mulher, o está traindo. O nosso Santiago (sobrenome de Bentinho, protagonista de Dom Casmurro) quer nos enredar, quer provar para a gente que Capitu o traiu. Vejam como é curioso. Machado de Assis escreveu um livro de alta sofisticação, mas de leitura fácil. Todos nós podemos lê-lo. Qualquer pessoa, qualquer brasileiro semianalfabeto pode ler Dom Casmurro e achar que compreendeu o romance perfeitamente. Porque seu autor teve a capacidade de sofisticá-lo — e talvez ele seja o romance mais sofisticado do Ocidente —, mas de uma maneira tão hábil, tão simples, que todos pudemos lê-lo, com a maior satisfação, sem questionar nada.
• Técnica intuitiva
O conselho que dou a todos os alunos que estudam comigo é: quando se sentarem para escrever, não se preocupem com a técnica e a teoria. A primeira coisa que se faz é materializar as idéias. Contar a história e, se possível, toda a história, sem pensar em teoria nenhuma. Somente na história. Conte a história e seja agradável ao leitor. Agora, num segundo momento, depois que a história já está materializada, você pode começar a intuir ou a usar aquelas técnicas que já conhece. Porque existe também a técnica intuitiva. E o que é a técnica intuitiva? É aquela que a gente só descobre na hora em que escreve. Ninguém tem que cumprir regras ou leis. Não existe isso. O que você tem que fazer é escrever aquilo de que você precisa: a história.
• Os movimentos criadores
Primeiro, vem o impulso, depois a intuição, depois a técnica e depois a pulsação. São quatro os movimentos criadores. Primeiro, o impulso, a vontade de escrever. Ao escrever, você usa a intuição. Conhece melhor seu personagem. E você só o conhece quando escreve. Por mais que você o conheça, que tenha idéias, que arme estruturas, você não vai conhecer o personagem antes de escrever. Um personagem, às vezes, não rende o que você esperava, e outro, de quem você não esperava nada, rende muito. Então, é preciso usar toda a sua intuição, sim, sem dúvida. Até porque o escritor é um intuitivo. Mas só depois de escrever é que ele parte para a técnica. (…) Porque a técnica também faz parte da criação. Uma oficina literária não pretende criar escritores. Pretende apenas ajudar aqueles que querem escrever a encontrar os seus caminhos. Só isso.
• Oficina séria
A primeira oficina séria de um escritor se chama leitura. O escritor tem duas condições essenciais. A primeira é ter uma biblioteca básica. Ele tem que ler tudo, o clássico fundamental, e fazer uma reflexão sobre isso. A segunda condição é que ele escreva sempre, se possível todos os dias. A oficina é só uma ferramenta. Minha oficina é um grande diálogo sobre a construção de romances. Trabalho muito, por exemplo, com Dom Casmurro, com Silvia, de Gérard de Nerval, com Doutor Fausto, de Thomas Mann. São livros que verdadeiramente nos ensinam, que são revolucionários. Você abre o Doutor Fausto e, na primeira página, um personagem chamado Serenus diz: “Eu estou escrevendo a biografia de Adrian Leverkühn, o grande maestro, o grande músico”. Você logo percebe que ele está seduzindo o leitor. Porque ninguém escreve uma biografia na primeira pessoa. Não é possível. Você escreve uma autobiografia na primeira pessoa. Biografia é na terceira. São técnicas que a gente estuda, amadurece e repassa, e debate, e reflete, e questiona. Mas com sinceridade. A oficina é uma ferramenta. Quem quiser ser escritor tem que ler e escrever muito. Se puder contar com uma oficina, tudo bem. Se não puder, o melhor a fazer é tentar ser amigo do melhor escritor que você conhece. Porque ele vai ajudá-lo. Vai conversar e vai ajudar.
• O livro não é caro
Temos que tratar o livro como se ele fosse uma festa. Porque o livro, no Brasil, é um castigo. A primeira coisa que me perguntam quando vou fazer uma palestra é o seguinte: “O que é que eu faço para o meu filho ler?”. Minha resposta é outra pergunta: “Você tem livro em casa?”. “Não.” “Então, como é que o seu filho vai ler? Você assina um jornal? Você assina uma revista? Você coloca publicações sobre a mesa? Você coloca publicações no divã, na cadeira? Seus filhos manuseiam livros?” Se uma família não colocar seus filhos diante de um livro, eles nunca vão conhecê-lo. Essa história de que a responsável pela educação de uma criança é a sua escola não é verdade. A responsável é a sua família, é a sua casa. Então, é preciso ter uma boa biblioteca, fazer com que os pais comprem mais livros. O livro não é tão caro, não. Eu sempre nego essa história. CD é muito caro e todo mundo tem. Todas as classes sociais têm. Jantar fora é caro e todo mundo janta, três ou quatro vezes por mês. Então, a primeira coisa a fazer é comprar livros. O livro não é caro. É diversão para muito tempo. Enquanto você precisa, para ir a um cinema, de duas horas, ou de uma hora e meia, você pode ler um livro — se tiver muito tempo — em um ou dois dias, se não em 15. Quinze dias por 30 reais é caro para a sua vida? Claro que não. Então, as famílias precisam ter livros em casa, e não ficar perguntando para nós, escritores, por que é que os seus filhos não lêem. Agora, se não puderem comprar livros, assinem jornais ou revistas. O problema é fazer com que a criança leia. Porque, no Brasil, é assim. Um menino faz uma má prova ou se comporta mal, e a primeira coisa que fazem é dizer a ele: “Meu filho, você vai passar todas as noites desta semana sem televisão, vai ler este livro e depois vai me contar o que tem dentro dele”. Com um castigo desse, é claro que vai dar errado. Ninguém vai ler coisa nenhuma. Ou, quando alguém resolve ser poeta, seu pai e sua mãe, geralmente o pai, coloca em dúvida a masculinidade do menino: “Isso não é coisa de homem, homem fazendo poesia?”. E por aí vai. Então, é preciso uma mudança de mentalidade incrível. Precisamos comprar livros, levá-los para casa, para que nossos filhos compreendam que ler é importante. Meus filhos lêem muito, mas eu também lia muito. E eles deviam ficar curiosos: “Se meu pai passou o dia com esse livro na mão, é porque tinha coisa boa ali dentro”. Então, levem livros para casa, façam as crianças ler.
• Poeta tem que trabalhar
Meu convívio com os estudantes é muito grande. E posso perceber que eles lêem pouco. Mesmo os de Letras. Um estudante de Letras tem que ler, pelo menos, de um a dois livros por semana. E, na universidade, você não encontra isso. São muito poucos os estudantes que realmente lêem. E estou falando de Letras. Na minha oficina, passo um ou dois livros por mês, livros importantes. Para que as pessoas leiam coisas importantes. Porque a primeira tarefa da oficina é fazer ler. Soube aqui (na Bienal de Curitiba), pelo Alcione Araújo, que, num debate sobre poesia, sua mesa constatou que as pessoas querem ser poetas mas não querem ler, não querem estudar. Por isso, eu estranho quando questionam a capacidade de uma oficina ajudar a escrever. Por quê? Porque todo poeta tem que estudar muito. Um poeta tem que saber, no mínimo, o que é um soneto. Pode ser que nunca escreva um, mas tem que saber o que é. Precisa saber o que é uma balada, o que é uma ode. Tem que saber. Porque depois do verso livre, depois do verso branco, todo mundo acha que uma frase, até mesmo uma frase vulgar, de pára-choque de caminhão, é um verso. E não é. Um poeta tem que sentar, estudar, trabalhar.
• Teoria, teoria, teoria, teoria
A escola não está dando tempo para o estudante estudar. Ao invés de ter um romance para debater na aula, ele estuda teoria, teoria, teoria, teoria, teoria. E a literatura mesmo, o romance, o poema, a novela, ninguém estuda, ninguém lê. Então é preciso, antes de mais nada, ser um leitor voraz, de tudo. Sobretudo nos cursos de Letras, na universidade. É preciso que as pessoas leiam muito. Há um dado curiosíssimo, levantado por uma pesquisa: a criança, até os 12 anos, lê muito. A partir dos 12, não lê mais. Talvez pelo fato de que a universidade, ou a escola, torne o exercício da leitura um tormento. E, aí, é problemático. Se você, ao invés de ler um romance, for ler teoria literária, vai ficar muito ruim.
• Meus critérios
O que faz uma obra literária se transformar num clássico ou num livro muito bom? Primeiro, a paixão que o livro causa em você. E não estou falando de romances policiais ou best-sellers. (…) Segundo, as qualidades do livro. A boa palavra, o trato com a frase, o desenvolvimento das boas cenas. (…) Depois, você tem que verificar as qualidades do autor ao dividir os parágrafos, ao dividir o texto em capítulos, ao “fazer” o livro. Todas essas questões são intuitivas, e você as vai observando, sempre com cuidado. Agora, se você for analisar Grande sertão: veredas pelos parágrafos, aquilo não vai prestar nunca. Só tem um (risos). Falo sobre a estética. A qualidade do livro.
• Graças ao Senhor
Na minha oficina, pretendo discutir as qualidades internas de uma obra de arte, para que o aluno que queira ser um escritor tenha elementos para escrever. Não estou dizendo a ninguém que repita essas técnicas. Estou dizendo que elas existem, que outros autores a usaram e que, a partir delas, você pode, intuitivamente ou não, criar novas regras. É aí que a oficina funciona. E, graças a Deus, funciona muito bem.