O escritor precisa sempre acreditar na única lei que lhe é imposta: nenhuma regra lhe pode ser imposta, nenhum decálogo e, claro, nenhum regulamento. Tenho repetido muito isso, não é? Ocorre que muitos equívocos são lançados sobre as oficinas literárias. É preciso esclarecer. O estudo da técnica torna o artista consciente, e não serve para ser copiado. Mas um romance, por exemplo, pode ter dois caminhos seguros, que favorecem a crítica do próprio trabalho. São eles: digressão e comentário. Pode parecer, no entanto, não são a mesma coisa, não é. Eis a diferença: na digressão, o narrador se afasta do objeto central; no comentário, o mesmo narrador não larga este objeto.
Compreendo que escrever uma digressão não é tarefa fácil. No entanto, percebe-se logo que ela pode e deve ser usada quando for necessário seduzir ainda mais o leitor, sobretudo com relação a enredos ou com relação a mudanças de enredo, ou técnicas ainda mais sofisticadas. Machado de Assis era mestre nesta arte, que aprendeu com Lawrence Sterne e não esqueceu mais. Veja bem o exemplo de Dom Casmurro:
Ia a entrar na sala de visitas, quando ouvi proferir meu nome e escondi-me atrás da porta. A casa era a da rua de Matacavalos, o mês de novembro, o ano é que é um tanto remoto, mas eu não hei de trocar as datas da minha vida só para agradar às pessoas que não amam histórias velhas; o ano era de 1857.
Dá para perceber? Olhando — ou lendo — bem, o objeto central da narrativa é a frase:
Ia a entrar na sala de visitas, quando ouvi proferir meu nome e escondi-me atrás da porta.
Não é verdade? Mas na frase seguinte, o narrador parece esquecer o que afirmou e investe na digressão, afastando-se do objeto central e levando o leitor com ele. Algo feito com muita calma, lentamente.
A casa era a da rua de Matacavalos, o mês de dezembro, o ano é que é um tanto remoto, mas eu não hei de trocar as datas da minha vida só para agradar às pessoas que não amam histórias velhas.
Uma conversa leve, de narrador experiente que, num rápido momento, desvia o leitor numa conversa desconfiada, até retornar ao objeto central:
O ano era de 1857.
Manobra de quem sabe o quer e para aonde vai. Faz uma curva narrativa, distrai o leitor e volta ao começo ainda que por outro caminho. Isto é uma digressão legítima. Sim, para efeito de estudo e de consciência literária, o que é uma digressão? E para que serve?
Sempre assim: no momento em que for preciso distrair o leitor para que ele não acompanhe o rigor do enredo, a digressão precisa ser realizada, da mesma forma que fazemos com as pessoas quando pretendemos surpreendê-las. Para exemplo, vamos recorrer aos meninos, que são mais hábeis no destino narrativo. E refletimos sem gravidade. O menino da história e o menino de Clarice Lispector.
Só uma brincadeira infantil, que ajuda a refletir, sem forçar. Vamos ver:
— Eu quero uma mordida neste doce.
— Não dou.
— Veja como a torre da igreja está brilhando.
— Onde?
— Veja com cuidado.
— Não consigo.
— Ah, você não sabe olhar.
— Ih, cadê meu doce?
— O gato comeu.
O que aconteceu? Enquanto distraímos o amigo, aí está a digressão, o doce foi roubado. Mudança de rumo ou de assunto. Não é mesmo? Certamente o outro vai olhar a torre da igreja — onde, com certeza, não está acontecendo nada — e lhe roubamos o doce. Qual o objeto principal: o doce. Não é assim? E qual é a digressão? A torre da igreja. O exemplo é ingênuo e infantil, concordo. Mas, creio, eficiente.
Assim podemos, então, trabalhar a digressão:
Objeto central:
— Eu quero uma mordida neste doce.
— Não dou.
Digressão:
— Veja como a torre da igreja está brilhando.
— Onde?
— Veja com cuidado.
— Não consigo
— Ah, você não sabe olhar.
Objeto central:
— Ih, cadê meu doce?
— O gato comeu.
Não é mais do que isso. Em princípio, com essa tranqüilidade. É claro que coloquei diálogos, mas se há uma narrativa, então é preciso escrever da seguinte maneira:
O menino queria uma mordida no doce do colega, mas não lhe foi permitido. Ele apontou a torre da igreja chamando a atenção para o brilho que estava surgindo. O colega não viu, embora olhando com muito cuidado. O doce lhe foi roubado pelo gato. Que gato? Difícil era esconder a boca cheia.
Agora o desenvolvimento, mais uma vez:
Objeto central:
O menino queria uma mordida no doce do colega, mas não lhe foi permitido.
Digressão:
Ele apontou a torre da igreja chamando a atenção para o brilho que estava surgindo. O colega não viu, embora olhando com muito cuidado.
Objeto central:
O doce lhe foi roubado pelo gato. Que gato? Difícil era esconder a boca cheia.
Digressão é isso: desvio da atenção pela mudança de rumo ou de assunto, dependendo da função e do efeito.
Veja o que diz Houaiss sobre o assunto: “Desvio do assunto principal ou de rumo”.
EXERCÍCIOS
Em princípio copie, copie mesmo, copie o diálogo. Divida em partes: objeto central, digressão, objeto central. Agora copie, copie mesmo, a narrativa. Divida em partes: objeto central, digressão, objeto central. Isso não é gratuito, é fundamental. Não se entende apenas com a mente, mas com a escrita. Repita. Memorize. Repita. Memorize. Escreva, escreva, escreva.
Vamos a um exercício. As palavras do objeto central são de Clarice Lispector. De propósito, inventei a digressão.
Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Muita gente nas calçadas e os vendedores gritando, misturando-se um com os outros, pregando as delícias das prendas, e aquele menino sozinho encostado no poste. Um ar desvalido, de abandonado. Ela depositou o volume no colo e o bonde começou a andar.
Agora invente a sua digressão, tomando como base o movimento dos carros na outra rua:
Objeto central:
Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde.
Digressão: (fazer o exercício)
Objeto central:
Ela depositou o volume no colo e o bonde começou a andar.
Então vamos a outro exercício, com invenção livre na digressão — ou seja, não copie o texto de Clarice mas invente outro:
Objeto central:
Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde.
Digressão: (fazer o exercício)
Objeto central:
Ela depositou o volume no colo e o bonde começou a andar.
Estes exercícios são fundamentais. Não adianta apenas dizer: compreendi, entendi — tem que fazer. Se possível, repete e repete e repete. Até considerar o domínio do texto.