* Texto lido em 21 de setembro, durante sessão do 3º Seminário Leer IberoAmerica 2021, realizado em Madri (Espanha).
Gostaria de propor uma reflexão sobre um paradoxo que surge para mim, a partir do título dessa mesa. Las voces de la literatura en un mundo alterado sugere novos desafios para as várias pontas do mercado editorial: o escritor, o editor, o leitor. Mas, sinceramente, penso que o grande desafio desses nossos tempos é enfrentar um problema antigo, comum a todos os países do mundo ibero-americano: a fragilidade das nossas instituições democráticas. Parece estranho colocar Espanha e Portugal, hoje exemplos de democracia, neste mesmo contexto, mas temos que lembrar que ambos os países arrastaram boa parte do século passado sob bizarras ditaduras.
A literatura só se pode se realizar plenamente em um ambiente de liberdade de expressão e de amplo acesso a uma educação de qualidade – coisas que só são possíveis naqueles lugares onde os fundamentos da democracia encontram-se solidamente enraizados.
Não conheço o suficiente a realidade de todos os países que compõem a chamada América Latina, portanto, para não ser leviano, vou me deter em descrever a situação do Brasil. No entanto, acredito que, em muitos aspectos, as premissas que guiarão a minha abordagem convergem para a compreensão da realidade social, econômica e política de toda a América Latina, principalmente se admitirmos que nosso destino comum está atrelado às decisões das grandes corporações transnacionais, cujas decisões ignoram fronteiras.
Democracia é artigo raro no Brasil. Nossa história política é a história de uma sucessão de ditaduras entremeadas por breves períodos de democracia.
A bem da verdade, a história contemporânea do Brasil se inicia com um golpe militar contra o Império – aliás, esse dado é importantíssimo para compreender as peculiaridades da realidade brasileira: enquanto os territórios que depois se tornariam países da América Latina se libertavam do jugo colonialista por meio de revoluções republicanas, o Brasil se afastava, pacificamente, do jugo colonialista transformando-se em um império comandado pela mesma casa real que comandava a antiga Metrópole…
Mas, voltando à cronologia. Dos 38 presidentes que tivemos até hoje, dez pertenciam às Forças Armadas.
Em 1889, militares liderados por um marechal do Exército instalaram a chamada República Velha, que na verdade era um arremedo de democracia, pois, além de o voto ser vetado a menores de vinte e um anos, mulheres, mendigos, soldados rasos e membros do clero, estavam impedidos também os analfabetos – que representavam 83% do total da população.
Em 1930, a República Velha chega ao fim por meio de um golpe civil-militar, liderado por Getúlio Vargas, que sete anos depois promove um autogolpe, institucionalizando uma ditadura que já era de fato desde o início. Essa ditadura sobrevive com a eleição, em 1945, de um general, Eurico Dutra, ministro da Guerra de Vargas, que por sua vez o sucede em 1950. Com o suicídio de Vargas, em 1954, começa um período de instabilidade política que culminará com a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, e o golpe militar em 1964. A ditadura militar se estenderá até 1985, com a eleição indireta de Tancredo Neves, que, tendo morrido antes de tomar posse, deu lugar a José Sarney. As primeiras eleições livres só ocorrem em 1990, quando Fernando Collor chega ao poder, sofrendo impeachment dois anos depois. Então, temos um interregno mais calmo, entre 1992 e 2016, quando um golpe parlamentar tira a presidente Dilma Rousseff do poder, uma encenação autoritária que culminaria, por uma série de manobras jurídicas, com a eleição do ex-capitão do Exército, Jair Bolsonaro, em 2018, um presidente que conspira contra a democracia desde o dia em que tomou posse.
Os senhores e senhoras hão de desculpar esse longo arrazoado sobre a desinteressante história política do Brasil, mas ela é necessária para compreensão do primeiro ponto que chamei atenção no início dessa explanação: a ameaça contra a liberdade de expressão no Brasil volta nesse momento a ser mais palpável que nunca.
Vou então me debruçar sobre o segundo ponto, o acesso à educação de qualidade, sem a qual não se formam escritores, e muito menos leitores.
O Brasil sempre foi um país deficiente no quesito educação. Nós passamos de uma sociedade eminentemente oral para uma sociedade eminentemente visual, sem a intermediação do processo de alfabetização. Isso criou uma comunidade sem qualquer tradição de consumo de literatura, já que a cultura sempre foi vista, mesmo por nossa elite político-econômica, com desconfiança e desprezo.
Não é à toa que detemos os piores índices de leitura do mundo. Estudo elaborado pelo IMD World Competitiveness Center mostrou que, no quesito educação, o Brasil tem a pior avaliação entre as 64 nações analisadas. Entre outros fatores, esse mau resultado se deve aos gastos público totais em educação: enquanto a média mundial é de 6.800 dólares por estudante anualmente, o Brasil aplica 2.100 dólares. O país tem ainda um baixo desempenho no Programme for International Student Assessment (PISA): 68% dos estudantes brasileiros, com 15 anos de idade, não possuem nível básico de matemática; 55% em ciências; e 50% em leitura. E a perspectiva é que os próximos indicadores apontem para um agravamento na qualidade da educação brasileira, devido às implicações da pandemia de Covid-19 na aprendizagem e no desenvolvimento de habilidades dos estudantes.
Ainda, segundo o World Culture Score Index, o Brasil está nas últimas colocações no ranking mundial de países leitores. Nosso tempo semanal dedicado à leitura se resume a 5 horas e 12 minutos. A média anual de livros lidos por habitante é de 4,96, sendo que somente 2,5 livros por habitante, por ano, foram lidos até o fim.
Democracia não é somente ter direito ao voto. Democracia é a possiblidade de eleger alguém que nos represente nas decisões políticas do país, e o exercício do voto deve ser um ato consciente e livre. Como falar em liberdade quando se está acossado pela fome, pela falta de moradia, pelo desemprego, pela desconfiança em relação ao Estado? Como falar em democracia num país em que o analfabetismo atinge 6,8% da população acima de 15 anos, sendo a média mundial de 2,6%. A proficiência atinge apenas 12% da população e um terço da população acima de 15 anos é considerada analfabeta funcional, ou seja, incapaz compreender textos e operações matemáticas simples.
Por fim, sem levarmos em consideração as trágicas consequências da pandemia, temos que nos últimos quinze anos o mercado editorial brasileiro encolheu 30%. O número de livrarias diminuiu 29%, enquanto observamos uma concentração do mercado em algumas poucas megaeditoras, geralmente subsidiárias de empresas transnacionais. O preço do livro relativamente ao poder aquisitivo da população é alto, as tiragens são pequenas – estão estagnadas há décadas em três mil exemplares – e a distribuição é precária. Para piorar, porque no Brasil tudo pode piorar, o atual governo ameaça com a taxação dos livros, o que elevaria ainda mais o preço final.
A literatura no Brasil, que sempre foi um privilégio das elites, experimentou um pequeno movimento de democratização na primeira década do século 21, com a expansão do universo de leitores – através de programas de fomento de bibliotecas escolares, bibliotecas públicas e bibliotecas comunitárias-, que terminou propiciando o surgimento de novas vozes na produção de textos, com representantes de literaturas periféricas ou marginais, afrodescendentes, indígenas, de género, etc. Mas, todas estas pequenas conquistas estão ameaçadas, porque o horizonte que se abre ante nós é pesado e aterrador.
Luz na escuridão
Jessé Andarilho, escritor:
“Estou numa correria danada pra terminar meu novo romance que se chamará Esquema. O livro fala do nosso ‘jeitinho brasileiro’ de cada dia e sobre como as pessoas já estão habituadas com a mania de conseguir vantagens em quase tudo. Escrever um romance que aborda essa temática não é fácil, pois toda hora aparecem novos golpes e preciso acrescentar coisas no texto. Com isso, tenho que mudar a estrutura do livro o tempo todo para não deixar alguns esquemas de fora. Na pandemia parece que aumentaram os esquemas. Toda hora alguém tem o WhatsApp clonado, ou aparecem golpistas se passando por nossos amigos nos pedindo dinheiro. É falso médico pra lá, governantes faturando na compra de respiradores pra cá, militares ganhando no álcool em gel e a turma do presidente arrumando um dólar por dose de vacina. De esquema em esquema aqui estou, observando tudo enquanto tento seguir com o projeto de uma biblioteca comunitária que abri no antigo posto policial da favela onde eu nasci. Um esquema do bem. Jogar palavras nas páginas em branco e dar acesso à leitura de qualidade é meter a luz na escuridão. Uma biblioteca em um antigo posto policial é muita luz. Pois quem não cuida dos leitores, não pode reclamar dos eleitores”.
Parachoque de caminhão
“As pequenas conversas entre a pantera e a hiena honram a segunda mas rebaixam a primeira.”
Ahmadou Kourouma (1927-2003)
Antologia pessoal da poesia brasileira
Antônio Carlos de Brito (Cacaso)
(Uberaba, MG, 1944 – Rio de Janeiro, RJ, 1987)
lar doce lar
[para Maurício Maestro]
Minha pátria é minha infância:
Por isso vivo no exílio
(na corda bamba, 1978)