O poeta azul

Augusto de Guimaraens Cavalcanti escreve voltado para o inútil, que é indecifrável, obscuro e anônimo
Augusto de Guimaraens Cavalcanti, autor de “Os tigres cravaram as garras no horizonte”
01/05/2011

O contrário da eficácia não é a ineficácia, o contrário da eficácia é a delicadeza. Um esforço pode produzir o efeito desejado pode gerar bons resultados, mas pode, mesmo assim, ferir e aniquilar. O ato pode agir contra quem o praticou. Não é sábio chegar a um bom efeito, sem saber se ele nos serve. Antes de agir, contemplar. Arranco pensamentos assim, fortes e sensíveis, da poesia de Augusto de Guimaraens Cavalcanti, reunida em Os tigres cravaram as garras no horizonte.

Detenho-me, em particular, em um texto, chamado A eficácia dos tigres. Pura poesia em prosa, o que, em si, já inverte valores. A eficácia dos tigres, mostra Augusto, é só beleza, é puro encantamento; não traz resultados, não gera recursos, nada produz. É inútil. Ele assinala: “Os tigres são contra o charme luminoso da objetividade e do equilíbrio, do rigor e da lucidez”. Preferem a delicadeza do acidente, que é gratuito e não visa objeto algum. Na era pós-industrial, das marcas, luzes e grifes, das imagens feéricas e obrigações virtuais, Augusto escreve voltado para o inútil, que é indecifrável, obscuro e anônimo. Que se parece com uma pedra. Isso, em si, já é um ato de coragem.

Poetas como Augusto preferem escutar o acaso, submeter-se a ele, da forma mais ineficaz, mas também mais bela. Sua atitude (ao contrário do que pensarão os técnicos bem treinados e os controladores de eventos) não é insensata. Há uma ciência nesse submeter-se, há um objetivo que — digamos — é subjetivo. “Os tigres degolam os objetos úteis com extrema precisão.” O que é útil para mim pode ser um obstáculo para você. O que me serve, talvez não lhe sirva. Ao triturar os objetos, os tigres retomam a potência do singular. Eu sou isso, você é aquilo, e assim está bom, porque é assim que é.

Poemas não são solitários? Poetas, como Augusto, não acreditam em valores fixos, que marcham em bandos. Nada mais distante deles do que a idéia pronta, o programa de ação, o bem fazer. A contabilidade, o lucro-benefício evocado pelas atendentes telefônicas. A poesia está do lado da surpresa — mas quanto às surpresas, nunca podemos contar com elas. Diz Augusto: “Os tigres vão cravar as garras no horizonte quando menos se esperar”. Sabe que vive em um mundo vazio, mas isso, em vez de deprimi-lo, o instiga a ser. Lembra em outro poema, dedicado a Ana C.: “Caio aqui mesmo nessa auto-estrada/ nessa via sem heróis/ de plástico/ e sem bandeiras para hastear”. A presença esquiva de Caio Fernando Abreu, transformado em verbo, é gritante. Diante do mundo que lhe oferecem, Augusto decide: “Vou dar minha orelha a um cego/ e caminhar pelo lado sombrio das calçadas”.

A poesia de Augusto, como ele diz em outro poema, está “em obras”. A suspeita da eficácia não é uma teimosia, uma rabugice juvenil, mas um ato de prudência. Quantos horrores os homens eficazes já fizeram! Quanto já se destruiu em nome de um mundo prático! Em outro de seus poemas, O semáforo marcou azul, isso se torna escandaloso. O que um motorista deve fazer diante de um semáforo azul? Avançar? Parar? Esperar? Transportado para as esquinas urbanas, o azul se torna uma cor ineficaz. Os homens práticos dirão que ela está ali só para confundir. Augusto sabe que, ao contrário, ela é um pedido de contemplação. E assim faz sua poesia: como se contemplasse. Em um poema dedicado a Rainer Maria Rilke, ele resume: “Palavras são pedras e dias são mapas, poetas criam sua própria ilha em um oceano de céu”.

NOTA
O texto O poeta azul foi publicado no blog A literatura na poltrona, mantido por José Castello, colunista do caderno Prosa & Verso, no site do jornal O Globo. A republicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.

Os tigres cravaram as garras no horizonte
Augusto de Guimaraens Cavalcanti
Circuito
85 págs.
José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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