O americano David Foster Wallace conta que, quando era professor de literatura na universidade, em seus cursos sobre Kafka, ficava sempre surpreso com o fato de os alunos não entenderem os aspectos cômicos da obra do autor. Eles sempre riam nas partes “erradas”, diz Wallace, e deixavam de rir nos momentos mais estranhamente engraçados. Para explicar o que era o fenômeno kafkiano, Wallace recorreu a uma alegoria. Pediu para todos imaginarem alguém batendo numa porta que não abre. A pessoa bate insistentemente, aguarda, bate novamente, aguarda mais um pouco, até que começa a bater com força, esmurrar e socar a porta. Finalmente, depois de muito tempo e violência, a porta se abre. A pessoa que batia estava, na realidade, do lado de dentro de casa, e não do lado de fora, mas não tinha se dado conta.
Acho essa espécie de parábola perfeita para compreender Kafka de uma forma súbita e brutal, sem que se entenda muito bem por que ou como se entendeu. Estamos todos excluídos, sem autorização para entrar onde queremos, mas na realidade já estamos dentro sem sabê-lo, o que torna quase qualquer lugar uma prisão. É que a literatura de Kafka opera num lugar intermediário entre a razão e a intuição, entre uma visão conhecida e uma visão estranha do real. Ela fica lá onde percebemos que existe algum acesso, mas que também sabemos ser quase intransponível. Entrevemos a abertura, mas ela é estreita demais para passarmos e ficamos apenas com uma entrevisão, que mais atiça do que repele. Alguns conseguem penetrar nessa fresta e, com isso, enxergam ao mesmo tempo o horror e a iluminação; a maioria, entretanto, se satisfaz apenas com a visão desse furo no real. E já é muito.
Laerte, como Kafka, também cria um lugar que simultaneamente conhecemos e desconhecemos, com significados que, mais do que esclarecerem as coisas, iluminam o absurdo que habita em tudo.
Mas falo de Kafka para, na verdade, falar de outro artista genial que, na minha opinião, se aproxima dele: Laerte.
Atualmente, temos poucas felicidades em sermos brasileiros, mas uma delas, sem dúvida, é a chance de coabitar o mesmo tempo e espaço que ela que, para mim, é uma das duas maiores artistas brasileiras, junto com Caetano Veloso. Sua discrição, entretanto, a impede de obter o mesmo espaço que ele.
Laerte, como Kafka, também cria um lugar que simultaneamente conhecemos e desconhecemos, com significados que, mais do que esclarecerem as coisas, iluminam o absurdo que habita em tudo. De muito ver e ler Laerte, reconheço a irrealidade e o paradoxo de coisas comuns e rotineiras, como ir ao supermercado e ao banco. Da mesma forma, sinto a mão manipuladora dos discursos políticos, econômicos e morais e os disfarces que eles assumem, mesmo que não consiga me libertar deles. No trabalho de Laerte nada é explícito e a percepção de suas verdades vem não apenas pela razão, mas pela fresta e pelo choque.
A sofisticação do traço é extrema, embora nada maneirista ou que aparente esforço. Ao contrário, a impressão é a de que o desenho foi feito de uma vez só, até mesmo sem reparos. É uma sofisticação simples. Os detalhes — e são muitos — não se destacam, mas estão lá para quem prestar atenção: olhos revirados, sobrancelhas mais ou menos altas, bigodes, botões, golas, rugas e amassados. Tudo é preciso, mas também apenas esboçado, como um compasso que fizesse, em vez de círculos perfeitos, ondas e ovos estrelados. As técnicas são muitas: traços grossos, finos, branco e preto, colorido, grosseiro ou delicado e, em todas, ela arrasa, sempre indo além do que se espera e imagina. Mas não só além: Laerte também sabe ficar aquém do que se espera, lá onde a linguagem ainda não avançou com sua lógica tirana. Muitas vezes trata-se de rumores, sussurros, quase-palavras, quase-traços, como se fossem as coisas em estado de inauguração e nós em estado de vê-las pela primeira vez. “Olha! eu não sabia como era um copo, uma mão e nem a engrenagem maluca em que estou metida” ou “eu não sabia que esse era o meu mundo e o meu país”. Como se, subitamente, compreendêssemos algo fundamental, para que logo em seguida essa compreensão escapasse e voltasse para sua caixinha de conveniência.
Quanto ao texto, que em tudo coincide com o desenho e que só separo aqui por necessidade analítica, a convivência de opostos é a mesma que com o traço. Pois, inexplicavelmente, o lírico e o horror se expressam juntos, sendo que uma delicadeza pode ser a expressão mais pura da opressão e um monstro pode ser o retrato da minha, da nossa solidão imponderável.
Nesta tira, de uma série recente sobre planetas, um homem enrolado em si mesmo se identifica como um planeta, ao que uma voz invisível, vinda de um guichê, pergunta o nome, se ele é habitado e qual é sua órbita, como se essas perguntas equivalessem a RG, CPF e endereço e como se fossem rotineiras. O planeta, que flutua no ar, responde que seu nome é “nenhuris”, que ele é habitado “de vez em quando” e, aproximando-se do guichê, na tentativa de enxergar alguém por trás da abertura, diz o inesperado: que gostaria de falar mais sobre seus habitantes. A isso, o guichê, insensível ao apelo, responde que “tem que agendar”, decretando o fim definitivo de qualquer diálogo. As posições e expressões do planeta vão mudando e, no último quadrinho, ele está desconsolado e mais longe do guichê, como que condenado a retornar a sua órbita.
O choque inicial vem de que a figura humana enrolada sobre si mesma se autodenomine um “planeta”, seguida pelo próximo choque, que é a aproximação desse ser a um guichê típico de repartição, que, por sua vez, dirige ao planeta perguntas protocolares, sem se surpreender em nada com o absurdo da aparição. Essa polaridade entre o absurdo-estranho-lírico do personagem planeta e o rígido-normal-regulamentado do personagem guichê estabelece o choque maior, responsável pela perplexidade cômica do leitor. Não sabemos se rimos ou se seria melhor chorar: pelo planeta, pela impossibilidade de comunicação ou por nós, condenados a guichês sem escuta? Vejo, nessa tira, uma espécie de O processo condensado, em que seres impotentes imploram afeto da parte de quem os condena, sendo que o carrasco, nesse caso, é invisível e incognoscível. Mas, ao mesmo tempo que parto para alguma análise, constato sua impossibilidade e mesmo inutilidade. É como se eu girasse em falso, diante do óbvio absurdo que Laerte implode para nós. A expressão de desamparo, os movimentos do planeta, o detalhe de sua sombra no painel do guichê, tudo contribui para um fenômeno de “unheimlich”, ou o estranho familiar. Conheço intimamente e desconheço completamente essa criatura: ela sou eu e eu nunca a vi mais gorda.
Laerte joga com nosso desejo e com nossas definições tão empobrecidas, de tão certas. A Laerte nos propõe uma vida mais equilibrista do que equilibrada e isso nos salva, ainda que momentaneamente.