A origem das coisas

Os "Atlas" de Jorge Luis Borges e Gonçalo M. Tavares dão a partida para uma reflexão sobre o cosmo, em que o cachorro Lucílio ocupa o lugar do criador
Ilustração: Joana Velozo
01/10/2021

Leio sem parar, esquecido das coisas do presente, o Atlas, de Gonçalo M. Tavares. Não é só um livro, é uma chave. Mil portas se abrem. Ergo os olhos e me deparo com um segundo Atlas, o que Jorge Luis Borges publicou com Maria Kodama, em 1985. Sem perceber o que faço — sempre o aleatório, a ação insidiosa do destino —, abro o atlas de Borges na página 37. Ali esbarro em um pequeno texto chamado O princípio.

Ontem mesmo, conversava com dois amigos queridos, Mariana Ianelli e Flávio Stein, sobre a impossibilidade, ou pelo menos a imensa dificuldade, de retornar ao ponto em que as coisas começaram. Falávamos do ódio, que se transformou em uma segunda pandemia. Lembramos de Shakespeare, dos gregos antigos, dos bebês que esperneiam quando não são atendidos. Avançamos para trás e para trás, e nada. Não chegamos a um princípio. Só conseguimos concluir, exaustos, que o ódio é tão antigo quanto os homens.

Fazendo o mesmo exercício de retorno em busca da origem, Borges narra uma conversa entre dois antigos gregos. Especula que eles poderiam ser Sócrates e Parmênides — mas, quando Parmênides morreu, em 460 a.C., Sócrates era só um menino de nove anos. “Convém que nunca venhamos a saber seus nomes”, o escritor conclui, resignado. A impossibilidade não o abate.

Os dois gregos de que fala Borges não polemizam. Não desejam vencer uma discussão, limitam-se a trocar ideias. Debatem temas abstratos, e não fatos, ou sentimentos. Nada parecido com o ódio, esse monstro esquivo que Mariana, Flávio e eu tentamos, sem sucesso, capturar. Ariane, uma amiga, nos ouve em silêncio. Pergunto-me se este silêncio, bem mais que nossa falação, não está mais próximo de uma resposta.

Volto a Borges e seus dois gregos. É sempre assim: tento ler, concentrar-me, mas o pensamento dá saltos e me afasta dos livros. Talvez seja para isso que lemos: para voar. Não importa. Borges também se desinteressa pelo tema que mobiliza seus dois gregos. É uma questão forte, sedutora, e isso basta. Limita-se a concluir: “Essa conversa de dois desconhecidos num lugar da Grécia é o fato capital da História”. Ali está o princípio. Ali está o lugar em que tudo começou. Com dois homens que tagarelam.

O pequeno texto de Borges é, na verdade, um mito pessoal a respeito da criação do mundo. Uma aula de cosmogonia. Não chegamos ao início de nada. A origem, por hábito, nos escapa. Como ela nos escapa, inventamos alguma coisa — dois gregos que conversam sobre um tema abstrato — para colocar em seu lugar. Ocorre-me que a origem do mundo pode estar até em um cachorro, como Lucílio, o vira-latas do senhor Dirceu. Por que não?

Ainda ontem, nos encontramos no elevador. Todas as manhãs, o senhor Dirceu leva Lucílio para uma volta pela quadra. Nosso quarteirão não é grande, tem só meia dúzia de prédios, mas eles gastam mais de uma hora em seu passeio. O senhor Dirceu é uns dez anos mais velho que eu, mas Lucílio é ainda mais idoso. Não anda, se arrasta. De tempos em tempos, se detém, gruda no chão, desmorona. Imita as colunas que se desmancham nos campos da Grécia.

“Ele gosta de meditar”, diz meu vizinho, comovido. Entra em tal estado de introspecção que, imagina o senhor Dirceu, em algum lugar secreto de sua mente animal, ele recita Dante. “A vida de Lucílio é um inferno”, ele conclui, com serenidade. “Só a meditação salva meu cachorro.” Não é a impressão que tenho. Gordo, cheirando a alfazema, com uma coleira lustrosa, o vira-latas me parece mais um desses burgueses asquerosos que circulam pela poesia de Maiakovski.

Pois ontem o senhor Dirceu me explicou, melhor, sua tese sobre o inferno de Lucílio. Encontrou-o na rua, a dois ou três quarteirões do prédio, magro e sujo, fuçando uma lixeira. A penúria do cachorro o levou a pensar em sua própria indigência. Vive com uma aposentadoria apertada. Há meses não paga o condomínio. Tem uma mulher nervosa, que fede a cebola e o vigia todo o tempo. Gosta de ler filosofia — em particular, Sêneca, daí o nome Lucílio — mas a mulher o proíbe. “Filosofia é coisa de efeminados”, ela diz.

“Tive que trazê-lo para casa”, me diz o senhor Dirceu. “Ele era o meu espelho”. Enquanto Lucílio se arrasta pelas calçadas, e em particular nos momentos em que se detém para suas meditações, o senhor Dirceu se põe a filosofar. Não tira os olhos do cachorro — teme que algo o assuste, ele tenha um ataque cardíaco e morra. “Aos poucos, entendi que foi com ele que minha vida começou”, me diz.

Um princípio antigo — um nascimento velho. O veterinário não soube estimar a idade de Lucílio, mas perguntou a meu vizinho: “O senhor tem certeza de que deseja adotar um cachorro que está prestes a morrer?”. Claro que tinha certeza. Já se passaram uns cinco anos e Lucílio, embora lentíssimo e quase cego, está bem vivo. “Só ele me fez realmente entender que eu existo”, afirma.

Chegamos à portaria. O senhor Dirceu fala baixo, porque não quer que Quitéria, a vizinha do 307, se intrometa. “É uma pessimista. Para ela, nada presta. Não consegue ver — como Lucílio — que cada farelo no chão é um pedaço do cosmo.” Cada cisco, uma estrela. Cada estrela, poeira que brilha. Tudo se equivale e tudo se mistura. “Lucílio me ensinou a equivalência entre as coisas.” Com o cachorro, sua vida começou de fato. Agora sabe que, apesar de velho e alquebrado, vale tanto quanto um galã de cinema. Só sua mulher não entende isso.

Depois de decidir que sua vida começou com a adoção de Lucílio, o senhor Dirceu se tornou um homem mais sereno. O cachorro equivale aos dois gregos de Borges. No lugar dos dois gregos, e também no de Lucílio, podemos colocar qualquer coisa. Uma estrela dupla, um monge corcunda da Idade Média, uma bibliotecária obesa de Minnesota, uma faca enferrujada. O mundo pode começar em qualquer lugar. Basta que o escolhamos. Mais ainda: que acreditemos em nossa escolha.

“Por isso existem pessoas vazias”, me diz o senhor Dirceu. “Elas esperam que a religião, ou a astrofísica, não importa, lhes explique o que não se pode explicar.” Quando você descobre que nada se explica, medita o senhor Dirceu, abre-se enfim um caminho. Só nele você pode inventar. Só nele o velho Lucílio, capenga e trêmulo, ocupa o lugar de um criador.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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