O título não desmente: Cabeça, tronco e versos é para ser lido com o corpo inteiro. Com o corpo ele foi inteiramente escrito. A palavra, víscera de verso, o integra. E o entrega. Dele é a extensão e a intensidade. A potência, o ato. Nela ou com ela não se canta, conforme outrora ouvimos de tantos, o horizonte frágil do sem-fim do mar. Não se louva o arrebol das gaivotas mirantes da superfície das águas e ignotas de seu sem-fundo. Não se rascunha o mais do mesmo do diáfano e do sublime, como se tocado pelas estrelas cantantes de um cosmos diante do qual um homem se põe, prenhe de fé, de joelhos. Não se cultua, no escapismo, o idílico. Nem o romântico. O transcendente, enfim, não se procura, nem tampouco se crê que seja o próprio uma cura: “Deus pecou por ser ausente/ Deus pecou por ser distante/ Por se fazer diferente/ Por nos querer semelhantes”. É na imanência da carne, de uma vida cravada na terra — e não no céu — da página encorpada das horas, incorporada de mundo, que alma, espírito e qualquer outro termo cúmplice do etéreo podem se fazer (e se fazem) presentes. É nesta lírica herdeira de alguma “gastrite”, “enxaqueca” e “azia” que o poeta Victor Colonna (con)funde as dores metafísicas nas físicas, deixando-nos a veraz herança de uma “preguiça,/ A luxúria, o orgulho e a ironia/ Uma dose de veneno e cobiça/ E a descrença acrescentada à apatia”.
Se há um personagem a ser assumido neste teatro sem máscaras, sem camarim, a voz da cena, jamais na coxia, sempre no palco e misturada à platéia, não titubeia: Anti-Ícaro. Título de um dos melhores poemas do livro, ele distingue a textura de alguém que não teve as asas derretidas por desejar o sol; que caiu, sim, mas sem ter subido aos céus, porque sabe que o abismo nos encontra assim que os pés tocam o chão, rachado agora por uma “língua afiada” de poeta em “calor cáustico”, em “chuva ácida”, a confessar: “Meu livro é uma vida aberta/ à faca”. O mesmo instrumento com o qual somos obrigados, nessa abertura, a cortar o nosso “céu da boca” e abrir a “boca do estômago” a fim de que amores se assassinem, eternidades se duvidem, toda pronta resposta se rasgue junto a cada colapso do peito que chora infâncias não-infantes, mortes morridas e mortes matadas, e ri — quando possível (e quando impossível) — de todos os dramas, entre o tom sarcástico e o sacana.
Diante de tamanha bravura, difícil não duvidar da existência de alguma verborragia, comum nos autores ainda em seus começos. Não a encontramos, ainda que o vigor imagístico e o acabamento formal se percam em alguns poemas. Ainda que, por descuido ou de propósito, os sonetos caminhem de perna quebrada (“Escrevo com certa falta de ritmo/ Que subsiste”). Todavia, este é o risco de quem quer perder o corpo para a página, e o perde, para ganhá-la em — côncavo? convexo? — espelhamento: silhueta poética fragmentada, tez imperfeita, contorno inacabado, arriscado, arriscando-se. O que se exibe pelas páginas é uma verbo-hemorragia que não chega a vazar negativamente, uma vez que Colonna joga com a dor (e com a palavra) de igual para igual. Desafiado por ela, também a desafia a ser maior do que a capacidade que tem de vertê-la em leveza e bom humor. De esbanjar alegria no escrever, até quando tudo parece conspirar contra.
“Felicidade/ É uma cidade pequenina/ É uma casinha/ É uma colina/ Que fica na puta que pariu”. Em Cabeça, tronco e versos, “puta que pariu” (leia-se: a felicidade) não constitui um lócus distante e inalcançável. Na medida em que a arte nos liberta dos lugares comuns, para estarmos felizes não dependemos de um bucólico, longe e estereotipado casebre em morro de aldeia ou vilarejo. A felicidade pode emergir, irônica e paradoxalmente, na leitura de um livro ferido e ferino. Com toda a angústia que o motiva, o verbo de Colonna nos rouba aquele sorriso fiel à beleza da palavra bendita. Grávidos dela, também parimos a nós mesmos, felizes na angústia do parto e quando em contato com esta poesia-puta, que dá e se dá, nas encruzilhadas, às encruzilhadas, a todo mundo. Um “campo minado” e um “curto circuito” da sociedade e de si própria.
Depois de estrear em 1999 com Sujeito oculto, a arte mundana de Victor Colonna o torna, mais do que um poeta revelado: revelador. Paridos pelo ventre de sua poesia que não fez nem faz uso de quaisquer preservativos em seu corpo a corpo com a vida, felizmente nos declaramos assim, parte dela: filhos-da-puta. Que o palavrão, afinal, também pode ser uma palavra de grandeza.