Soma subtraída

Resenha do livro "Dois em um", de Alice Ruiz S
A poeta Alice Ruiz
01/01/2010

Apesar de costumeiramente reiterar que não existe verdade absoluta, a crítica literária mantém-se firmemente ligada a determinados valores para estabelecer seus julgamentos. Nessa esteira, os críticos não costumam ser tolerantes com obras supostamente defasadas desses valores, sejam referentes à forma (como inovação e apuro da linguagem) ou ao conteúdo (originalidade quanto à abordagem do assunto e densidade do ponto de vista trabalhado). Mas há os que defendem a “simplicidade” de alguns artistas, como Vinicius de Moraes e Jorge Amado (outro caso famoso, mas no âmbito da pintura, me ocorre: Romero Britto), sob o argumento, plausível, de que será sempre ruim para a arte a sua circunscrição a um restrito grupo de “entendidos”.

Tal debate ganha ainda mais corpo quando se discutem as relações entre poesia e letra de música, pois, no geral, não agrada aos estudiosos tradicionalistas de literatura a idéia de que as canções são dotadas de alta poeticidade (lembrem-se as divergências entre João Cabral de Melo Neto e Vinicius de Moraes a respeito do assunto, relatadas, a propósito, por Caetano Veloso no documentário Vinicius, de Miguel Faria Jr.).

Essas referências são necessárias para tratar do livro Dois em um — edição em que se reúnem as obras publicadas pela paranaense Alice Ruiz S na década de 1980, e que ganhou, neste 2009, o prêmio Jabuti de poesia —, pois os escritos estão aparentemente isentos de grandes pretensões literárias (a aparência se desfaz na orelha, assinada por Frederico Barbosa, uma personalidade evidenciada entre escritores), e a autora é também conhecida por suas parcerias musicais com compositores/cantores da MPB (numa apresentação ao final do livro, Alice confessa que gostaria de ter sido cantora).

Por um lado, o livro se caracteriza pelo tom desprendido e voluntariamente simples, livre e leve ao sabor de meninices atemporais — “vamos fazer o seguinte/ eu brinco de cantor/ você de ouvinte” —, e não chega a configurar um grande feito artístico; dessa maneira, poder-se-ia esperar que os escritos tivessem o açúcar ou o fel próprios ao paladar do público dito comum, mas não é o que se verifica em seus experimentalismos formais à moda da poesia concreta (O que é a que é e A V SÃO, por exemplo) nem em outros lances rasos, pautados pelo mero joguete de palavras — “não quero/ rosa/ mil flores/ mil vezes/ mil ventos/ perfeita// por você/ gira/ terra/ sol/ girassol// maio/ junho/ julho/ agosto/ por pouco/ não abril” —, ou noutros, cuja busca pela imagem torna o texto sem fatura considerável: “pequeno/ tinha um pensamento// a selva/ quando crescer// em algum lugar/ na selva// corre grande/ um pensamento”.

Não se quer sugerir com isso que Dois em um deva ser enquadrado numa dicotomia; o que parece inegável é que, talvez por se tratar de uma produção do início da carreira da poetisa, ele é inexpressivo em seus feitos: contaminado por algumas vanguardas brasileiras (há referências diretas aos irmãos Campos, e aqui e ali matizes das cores modernistas e tropicalistas — “verão/ cai no outono/ fruta madura”), o livro não traz em si novidades plausíveis, nem atinge profundidade ao abordar qualquer assunto.

Além disso, muito do que se vê pelas páginas é próprio de certa ideologia estética dos anos 80, difundida especialmente pela música popular, baseada na rebeldia liberal cujo epicentro é o corpo: “já estou daquele jeito/ que não tem mais conserto/ ou levo você pra cama/ ou desperto”, e “depois que um corpo/ comporta/ outro corpo// nenhum coração/ suporta/ o pouco”.

Mas não se pode negar o veio poético de muitos textos, quando a simplicidade alcança um casamento feliz com imagens e mensagens graciosas – “primeiro verso do ano/ é pra você/ brisa que passa/ deixando marca de brasa”, ou quando o olhar se volta para a distorcida engrenagem brasileira: “nesse país sem greve/ só o relógio/ faz o que deve”.

Deve-se mencionar ainda o poema Se, que é a grande peça do livro, exemplo notável de engenhoso desdobramento de uma idéia e da linguagem utilizada, simplicidade dotada de grande sofisticação. No mais, os livros de Alice Ruiz S reunidos em Dois em um ficam de acordo com a época em que surgiram, quando a poesia brasileira esteve bem aquém da substantiva produção efetuada durante o século 20.

Dois em um
Alice Ruiz S
Iluminuras
208 págs.
Marcos Pasche

É crítico literário.

Rascunho