Uma linha finíssima e frágil separa a coerência da repetição, cruzar essa fronteira é arcar com o ônus de um dos mais graves pecados que assolam a literatura. Isso acomete principiantes e monstros sagrados. Exemplos dos monstros que se repetem: Rubem Fonseca, Fausto Wolff, Saramago, Yasunari Kawabata…
Num mundo onde o relativismo dá as cartas, se classifico como pecado essa repetição, você, arguto leitor, pode muito bem entendê-la como rara qualidade. Vale dizer que repetição com qualidade não chega a ser de todo ruim, no entanto, cansa, traz sono e sugere leituras pela metade.
A dançarina de Izu (novela) e Contos da palma da mão (contos), livros de Yasunari Kawabata, trazem em seus enredos a tradição japonesa, e, mais uma vez, o relativismo entra em cena. Há quem goste, há quem desgoste. Confesso que ora pendo para um ora para outro lado, sempre beirando o tédio. Mas tudo é relativo.
Tanto a novela como os contos de Kawabata são compostos de frases curtas. Neles, a natureza é descrita de forma impressionante e, em dados momentos, o leitor tem a impressão de estar frente a uma sucessão de haicais. Em alguns contos, Kawabata sai do haicai e apresenta breves narrativas que nos fazem lembrar os koans, lembrança motivada pelo seu aspecto de algo inacabado, sem sentido, sem compromisso com a razão.
Os contos da palma da mão, importante dizer, não cabem na palma da mão; alguns bastante extensos, ambientados em cenários diversos. Da zona rural onde o autor viveu sua infância à megalópole de Tóquio, com sua agitação e boêmia. Datam, o mais antigo, de 1923, e o mais recente, de 1964.
Atualmente, aqui no Brasil, a moda é o conto mínimo. Cabe ressaltar que a profundidade que acompanha a maioria também é, como dizia Jânio Quadros, “a permitir que uma formiga atravesse com água pelas canelas”. Falta-lhes o que sobra em Kawabata, assunto e poder de síntese.
Apesar das recorrências.
Sonhos ingênuos
Entre as repetições, o leitor encontrará os sonhos. Sexualidade, mundo feminino, solidão, amor impossível e morte são as repetições por demais sabidas. O caráter onírico, além de emprestar mais delicadeza à forma narrativa de Kawabata, traz consigo uma dose perigosa de ingenuidade. Tal característica exige do leitor uma determinação perigosamente zen. As várias leituras, fundamentais para fugir do koan, fazem de Contos da palma da mão um exemplo de delicadeza literária e ao mesmo tempo acentuam sua personalidade oriental.
A dançarina de Izu, apesar das recorrências, é uma obra-prima da concisão e do lirismo em forma de novela, a precisão em 60 páginas, uma história do mais terno platonismo e reflexão sobre a beleza e o sentido da vida. O sentido da vida em forma de uma menina, mas que também pode se apresentar em forma de mulher, de homem, de viagens, de expectativas. Na trama, um jovem de 19 anos viaja até a península de Izu. Lá, entra em contato com artistas mambembes e se encanta com uma das integrantes da trupe: a pequena dançarina Kaoru, de 13 anos.
Viaja na companhia dos artistas e, à medida que toma contato com lugares e personagens diversos, passa a refletir e perceber a intensidade da vida em lugares outros que não nele mesmo. Trata-se de uma novela onde o aspecto da percepção pode ser declarado o grande protagonista. Mas…
Tudo é relativo, embora se possa perceber traços de um ceticismo assustador nas entrelinhas de Kawabata.
Há pelos menos dois caminhos a seguir: a incapacidade de se conhecer o mundo, segundo a conclusão do ceticismo; ou afirmar que a compreensão do mundo é resultado de um ponto de vista particular, concluindo-se que não há nenhuma perspectiva universal sobre o mundo. Optar por uma das correntes é arcar com o ônus de uma argumentação infindável.
Mesmo assim, arrisco algumas considerações, lançando mão de certas “muletas” íntimas do ser humano.
A mais notória, sem dúvida, é a religião. Em seguida vem a morte, que, por incrível que pareça, não é difícil encontrar quem a aceite como relativa. Tanto na religião como na morte, acusamos a presença do sagrado, a união do visível com o invisível, o inquestionável, segundo os religiosos — incluam-se aí os espíritas, pois eles prioritariamente unem a natureza e o sobrenatural. Em Kawabata, o sagrado também pode ser visto na presença, na descrição minuciosa e criteriosa da natureza.
Antes de prosseguir, vale dizer que defender o relativismo não parece tarefa das mais árduas, visto que a tudo se pode relativizar. Ao percebermos que tanto a morte como o possível Deus também podem ser relativizados, o que nos resta? Os ódios podem ser amenizados? E onde fica o amor desinteressado dos gregos, que significava se alegrar com a simples existência do outro? O outro, justamente o outro, de fundamental importância em A dançarina de Izu.
O que fazer frente a tantas opções que não levam a uma conclusão plenamente satisfatória? Conforme Kawabata, na novela em questão: “Por fim, sobrou o doce sentimento de nada mais restar”.
Partimos, pois, do sagrado. O que é o sagrado? É a união do terreno, do humano, com o além. Um ser, dotado de poderes sobrenaturais; católicos o identificam nas imagens, na madeira, no gesso, no ferro, pouco importa. Deus está ali, da mesma forma, para o catolicismo. Deus também habita a pequena hóstia. Num dos contos de Contos da palma da mão, temos a Bíblia: “Nessa época, lembrava-me com certa freqüência dessas palavras da Bíblia. Sempre associava a expressão ‘frágil recipiente’ a um vaso de porcelana. E, por extensão, associava àquela garota”.
Aos artistas — aos mais midiáticos, entenda-se — também são concedidas centelhas do sagrado pela admiração popular. Eles são considerados seres “iluminados, abençoados, fenômenos”.
Quem de nós não ouviu que “a vida é sagrada”? É? Mas que vida, a humana tão somente? Por quê? Não matarás se aplica exclusivamente à vida humana? No entanto, mata-se? Donde se deduz que o “não matarás” também é relativo. É?
E se temos o sagrado, tudo o mais é profano? Não creio na necessidade desses antagonismos, nessa polarização, mas, se não é assim, então como ficamos? Simples, tudo é relativo.
Homem sagrado
O sagrado é relativo, Deus é relativo e viver e morrer também podem ser relativos. Tudo depende. Entre os gregos não havia deus, mas não lhes faltava divindade, entenda-se como divindade a harmonia cósmica, uma forma de transcendência. No livro VI de A república, Platão nos fala do divino e não dos deuses. Kant, por sua vez, na última parte de Crítica da razão prática, lança mão do religioso, fala dos valores transcendentais.
O homem inventou Deus, e depois? Acreditou. Lembro de Voltaire: “Deus criou o homem à sua imagem e este lhe pagou na mesma moeda”.
Nas narrativas de Kawabata, o sagrado é o homem, um homem inseguro e frustrado, mas sempre em busca, sempre em movimento. Por vezes sem sentido.
Enfim, tudo é relativo. Seria mesmo? Talvez.
Vejamos o amor. O que é o amor? Amor é reencontro, digamos. Mas se temos A necessariamente teremos B a fazer-lhe contraponto. Logo teremos o mal. O que é o mal? A negação. Quem sabe?
Percebemos o mal à primeira vista, e o amor? Esse não. Amor é a arte do reencontro. Os grandes amores não acontecem à primeira vista, conforme afirma Michel Serres. É do esquecimento do primeiro encontro que surgirá o amor. E o mal, de onde brotaria? Da inexistência do reencontro? Bem, aí é relativo. Tem gente que nasce predisposta ao mal, afirmam certos estudos, até que ponto confiáveis não sei. Para Kawabata, o amor é sinônimo de vazio, a personagem no cais vendo o navio partir levando o “quase amor”.
Mas digamos que o amor e o mal sejam relativos, como interpretar a atitude de um estudante americano que dispara contra seus colegas de escola?
Como entender aquele homem que aos 50 anos vive o amor que imaginou na infância? E esse amor é exatamente o fruto de um reencontro, sentimento que se mantivera virgem por duas décadas? Isso daria razão à tese de Michel Serres, na verdade o amor à primeira vista é prerrogativa da ficção, da literatura, do cinema? Não da literatura de Kawabata. Aqui o amor é sempre quase.
Se levarmos em conta que o amor do homem de 50 anos também é fruto da sua imaginação, da persistência da sua imaginação, podemos concluir que ambas as possibilidades podem se estabelecer ou não, e sendo assim tanto a origem do amor quanto a do mal, são relativas.
Em Contos da palma da mão e A dançarina de Izu, o leitor não encontrará o mal, o mal característico, o vilão; em seu lugar, perceberá o medo; tampouco se deparará com o amor; mas sentirá o vazio, a frustração, a melancolia. Mas, pode relaxar, sem a menor pitada de sentimentalismo tolo.
Para concluir, busco socorro no homem de 50 anos. Ele não crê em deuses, sabe-se concessão da morte, não faz relativo seu amor e respeita sua imaginação. Esse homem de vez em quando voa. Solitariamente para não provocar inveja.
E por falar em inveja, ela aceita o relativismo?