Seria fácil cair na tentação de comentar O livro dos mandarins como um romance típico de autor acadêmico. Jogos narrativos, mudanças de foco, muita técnica e elaboração estilística. Está tudo lá. E afinal de contas, Lísias é bacharel, mestre e doutor em literatura. No doutorado, foi orientado pelo especialista em romance Luiz Roncari, cuja própria tese de doutorado resultou num ótimo romance, Rum para Rondônia. Mas isso significaria uma leitura a partir de pressupostos que nos levariam a pensar de maneira estereotipada e assim, cometeríamos um erro semelhante ao do próprio autor, que se propõe a falar do “universo corporativo” a partir de uma caricatura do que seria um executivo frio, calculista e inescrupuloso, e que, aparentemente, sequer se dá conta de que é tudo isso. Sendo assim, O livro dos mandarins poderia até mesmo ser considerado um romance-tese. Nas entrevistas de Lísias que encontramos pela web, ele é explícito ao dizer que seu projeto foi mostrar “o outro lado do mundo corporativo”, expondo os executivos que lhe parecem patéticos em sua maioria, além de denunciar o “lado sanguinário, de lucro a qualquer custo” (jbonline). Clichês para lá de mastigados sobre a crueldade das empresas, a brutalidade e falta de escrúpulos de seus executivos.
Mas, então, Lísias é vitimado por um aspecto inesperado: seu próprio talento de escritor. Seguindo ainda a linha da leitura estereotipada, nascida de pressupostos, resultantes de passagens rápidas pelo que a web nos oferece sobre a vida do autor, podemos concluir que ele, como tantos outros, abrigou-se na universidade, e tornou-se professor de cursos livres de literatura por uma questão de sobrevivência, pois a primeira opção seria escrever. A literatura em seu começo, como muitos sabemos, precisa ser subsidiada pela tarefa diária de obter o pão de cada dia.
O escritor de 34 anos que emerge então em seu primeiro romance de fôlego mostra-se capaz de ir além dos estereótipos e críticas maniqueístas que ele próprio imagina fazer. O projeto de uma atualização da literatura de denúncia é suplantado por um estilo muito pessoal, elíptico em alguns momentos, obsessivo e repetitivamente minimalista em outros, e que desenha personagens estranhos e bizarros. Um jeito de escrever muito próprio que, por si só, justifica a leitura dos textos de Lísias. E, para culminar, trata-se de um livro cômico. Humor bastante ácido, é verdade, nem sempre dos mais palatáveis.
Em seu esforço militante de denunciar o mal que se esconde “no outro lado” das grandes corporações, Lísias concebe Paulo, um homem maníaco, cuja preocupação maior é galgar posições e chegar a presidente do conselho mundial do grande banco em que trabalha. (Sim, claro que a fonte de todas as perversidades tinha que estar concentrada num banco.) Só que Paulo, a epítome dos executivos malvados, ignorantes e inescrupulosos, é um homem anti-social, apesar do trato educado, emocionalmente bloqueado por uma dor móvel nas costas que o persegue desde a infância, ainda que sensível às fraquezas alheias, cínico, embora generoso a ponto de presentear um motorista com suas próprias e caras roupas de grife. Fraco, frágil até, mas com essa fragilidade oculta por um verniz de autocontrole emocional. E cujas qualidades invariavelmente seguem o cálculo do que é necessário para conseguir o que quer (afinal de contas, executivos são ambiciosos por dever de ofício, e isso é imperdoável).
O enxadrista Lísias dota Paulo de uma inteligência que planeja cada um de seus movimentos conforme sua grande meta. Ser escolhido para não só participar, mas chefiar a equipe que o banco pretende mandar para estabelecer sua base na China faz parte de seu plano de carreira. Sendo assim, Paulo começa a estudar a vida e a obra de Mao Tse Tung e a se dedicar ao mandarim e ao conhecimento dos traços culturais da China. Diga-se o que for, ele não pode ser chamado de preguiçoso. É, acima de tudo, um profissional consciente, dedicado e fiel à empresa. E absolutamente caxias em seus estudos. Até mesmo, com base em seu próprio sucesso, pretende escrever um manual para jovens executivos em que, generosamente, compartilhará seus segredos.
Só que os planos cuidadosamente traçados de Paulo acabam não saindo como ele imaginava. Pelo reconhecimento dos demais Paulos, Pauls, Paulas (sim, Lísias aprecia muito as generalizações e acha mais fácil dar o mesmo nome a quase todos os personagens), Paulo acaba sendo enviado para uma China que não é exatamente a que ele esperava, inclusive geograficamente. Sua tarefa passa a ser examinar as relações comerciais da China com o Sudão e avaliar o potencial das oportunidades para o banco na intermediação dessas transações. Comicamente, o grande modelo de Paulo é o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, de quem conhece toda a vasta e relevante obra. Paulo, talvez, devesse mesmo se chamar Fernando.
Alheio de si
Diferente do que tem sido visto com freqüência em nossa literatura recente, Lísias foge do lugar comum dos escritores fascinados com o fato de serem escritores. Em O livro dos mandarins, enfronha-se em ambientes que lhe são alheios, a princípio, o tal mundo corporativo e, como desdobramento, o universo das relações comerciais escusas. Trata-se de uma renovada tentativa de escrita engajada, há tempos deixada de lado em nossa literatura, e que reflete as preocupações do autor. Lísias já fez literatura infantil sobre os direitos da criança, traduziu Flor do deserto, o relato da somali Waris Dirie sobre a clitorectomia, colheu e redigiu o relato engajadíssimo de Tailon Ruppental, Um soldado brasileiro no Haiti.
Alguns desses temas são retomados em O livro dos mandarins, em especial a questão da mutilação feminina. Em dado momento, Paulo se vê cercado por “camareiras” sudanesas devidamente clitorectomizadas, o que não as impede de manter uma atividade sexual intensa e rentável com seus hóspedes. Lísias capricha no grotesco, e o alucinado Paulo vê as negras mutiladas como gueixas chinesas, numa confusão cultural em que entram até mesmo espadas de samurai.
A história toma rumos rocambolescos com a volta de Paulo e sua equipe de consultoras e consultores “sino-sudaneses” ao Brasil. Ele agora mudou de estratégia, e volta ao país transformado em empresário. Sonso, ou mesmo tolo, acredita ter encontrado um método revolucionário de coaching, mentoring e counselling em que combina suas fascinantes palestras sobre a experiência chinesa com o atendimento especial de suas gueixas, e cujo principal atrativo é uma curiosa cicatriz ali na. O narrador diverte-se em deixar incompletas as frases mais óbvias.
Com todas as reviravoltas e surpresas da história, um aspecto se perde e é justamente aquele que, aparentemente, Lísias pretendia enfatizar. Seu personagem pouco tem de executivo de fato. É um homem fechado, sem convívio dentro do próprio escritório e que, ao partir para sua viagem, afasta-se ainda mais do tal ambiente corporativo. Se o autor pretendia fazer uma paródia do mundo empresarial, não deveria ter afastado o protagonista deste mundo, onde Paulo interagiria com seus iguais, superiores e inferiores hierárquicos, com toda a riqueza da dinâmica que uma reunião inútil ou uma pausa para o cafezinho podem oferecer.
No entanto, estamos falando de Ricardo Lísias, para quem, “solidão, angústia e loucura” são o tripé de sua literatura, ao qual ele procura “aliar um trabalho estilístico”, como reconhece em uma entrevista a Walber Schwartz, no site paginacultural.com.br. Desta forma, o Paulo principal de O livro dos mandarins é bastante parecido com a solitária protagonista da novela Dos nervos (integralmente disponível no Google Books). São criaturas isoladas do mundo, incapazes de laços emocionais de fato, obsessivos e lamentavelmente cômicos em suas existências patológicas. O trabalho estilístico de Lísias concretiza-se na construção desses personagens, bastante peculiares, únicos e envolventes. A realização do estilo de Lísias está em provocar a empatia do leitor com esses seres sombrios, mas cuja exposição de sua ridícula miséria existencial acaba por nos levar a torcer pelo seu sucesso. Só que pessoas tão únicas dificilmente podem ser usadas como exemplos típicos de uma categoria profissional. Deste modo, Lísias erra seu alvo original, mas acerta em outro bem mais amplo e interessante, que é sua capacidade de criar personagens ricos e complexos, que permitem leituras que vão além da simples caricatura do que o autor imagina ser um executivo inescrupuloso. E é por essa riqueza literária que ele igualmente escapa dos estereótipos de geração, ou de escritor acadêmico, para obter merecidas indicações e conquistas de prêmios, como o terceiro lugar no concurso Portugal Telecom de 2006. O livro dos mandarins é, de fato, um livro diferenciado e, felizmente, não pelo viés que seu autor pretendia.