Wisława Szymborska era fã de Woody Allen, e o cineasta dedicava a ela uma admiração recíproca, tendo certa vez comentado: “Eu sou conhecido como um homem espirituoso, mas o senso de humor dela supera o meu”. Suponho que essa característica temperamental seja a mais relevante, no perfil da poetisa traçado por Anna Bikont e Joanna Szczęsna, em Quinquilharias e recordações.
A biografia da autora polonesa está recheada de episódios curiosos, irônicos e divertidos. Nenhum grande escândalo exótico, mas constantes situações de brincadeira parecem ter criado a atmosfera com que Szymborska atravessou sua vida. Obviamente, houve momentos difíceis — mas talvez por causa deles o humor tenha se tornado ainda mais importante. Enquanto escrevia este ensaio, tive em mente A brincadeira, do Milan Kundera, também ele um autor sob o jugo ditatorial. Mas o pensamento acabou insistindo no diálogo com outra escritora ganhadora do Nobel, Herta Müller. As aproximações são inevitáveis: ambas conheceram políticas ditatoriais, e ambas também desenvolveram processos de criação artística irreverentes.
No livro O rei se inclina e mata, Herta Müller comenta como as colagens com palavras retiradas de jornal, junto a seus colegas, foram essenciais para que suportasse o medo — mas também certamente abriram sua percepção da língua. Na verdade, um bom artista não se faz apenas com o domínio mecânico, por assim dizer, do instrumento que utiliza. A técnica lhe fornece destreza, segurança, rapidez até — mas é a capacidade de brincar com o instrumento que cria experiências ousadas. A própria disposição de espírito relaxada e curiosa já entra como vantagem, nesse método.
Vejamos o que diz Müller: “A intenção no começo era apenas dar um alô aos amigos nas minhas muitas viagens, colocar algo próprio no envelope e não cartões-postais que fotógrafos haviam retratado com as lentes patrióticas locais. Durante a leitura do jornal no trem, colava algum fragmento de imagem e palavras sobre um cartão em branco ou uma, duas frases: ‘a teimosa palavra PORTANTO’, ou: ‘Se de fato existe um lugar, ele toca o desejo’. Somente a perplexidade com o que palavras soltas de jornal podem render trouxe o rimar consigo”.
A obra burlesca de Szymborska também envolve as colagens, nos postais com que ela costumava presentear pessoas próximas. Mas é na produção de poesia humorística e de nonsense — os limeriques, dentre outros gêneros — que encontramos o auge de suas brincadeiras linguísticas. O livro Riminhas para crianças grandes traz uma seleta de exemplos de tais tendências, mas ao longo das décadas inúmeros versos, criados no improviso e sem registro, desapareceram.
Muitas criações foram coletivas e começaram na época da juventude da poeta, quando ela foi morar com seu primeiro marido numa residência de escritores, a Casa dos Literatos da rua Krupnicza, que era controlada pelo governo. Wisława e Adam Włodek promoviam encontros com a presença de espetáculos parateatrais de Sławomir Mrożek, que depois se tornaria um famoso dramaturgo satírico: “Não sei se foi ideia do próprio Adam, mas, de qualquer forma, um dia ele declarou que, já que os reacionários compunham versinhos antinacionalistas e antissocialistas nos banheiros, então era necessário responder àquilo com uma contrapropaganda apropriada. Durante algum tempo, os convidados de Wisława e Adam se divertiam que nem crianças com a composição de contrapoeminhas de banheiro. Eu conseguiria repetir ainda alguns anti-imperialistas, mas para publicação só serviam os anticlericais: ‘rechace as batinas das latrinas’”, recorda Andrzej Klominek num depoimento.
Os insultos e gracejos nas paredes do banheiro eram, sem dúvida, um tipo de humor salvacionista, que permitia suportar as dificuldades: “A vida social da Casa, relembrada durante anos por seus participantes, demonstra como era forte o estilo cômico do passado e como tentaram continuá-lo, embora — pode assim parecer — não houvesse nada do que rir”.
Joanna Olczak-Ronikier, que morou na Krupnicza durante a infância, assim recordou o espaço, um apartamento coletivo com quatro cômodos, que era compartilhado com inquilinos estranhos:
Tantas pessoas diferentes, reunidas por acaso, condenadas a uma contínua e irritante proximidade, passando constantemente umas pelas outras no corredor estreito. Cada uma com sua própria história aterrorizante de ocupação. Será que basta a força para começar a vida de novo quando temos medo? Será que se consegue dar sentido à vida quando em desespero? Exaustão física e psíquica, falta de elementos básicos da existência: roupas, sapatos, medicamentos, dinheiro. Havia motivos suficientes para que essa coexistência pudesse se transformar num inferno. Mas, felizmente, não se transformou.
Depois da desilusão com o comunismo e o abandono do partido, Wisława sentiu o peso de ficar sozinha — mas, conforme suas próprias palavras, “se o assunto era solidão, então eu já a estava sentindo antes. Eu estava condenada a certo tipo de pessoas com as quais, no fim das contas, se conversava com cada vez menos sinceridade”. A sua condição nos faz de novo recordar Herta Müller, a sua solidão a partir da recusa de colaborar para o governo, e como a sua decisão de ir contra as autoridades foi um gesto de coragem ideológica e, simultaneamente, de sobrevivência criativa. As duas escritoras, enquanto artistas, precisam escapar dos modelos que pretendiam sufocá-las.
Lemos n’O rei se inclina e mata: “(…) tinha de procurar uma palavra para a gana de viver em meio ao medo da morte, uma que eu não possuía naquela época em que vivia mergulhada no medo” e “Nos exercícios poéticos nos tornávamos ávidos por vida. Piadas drásticas para o desmantelamento imaginário do regime. Autoencorajamento porque aqueles de quem dávamos risada poderiam acabar com as nossas vidas a cada dia”.
Wisława teve a sorte de encontrar no seu segundo companheiro, o escritor Kornel Filipowicz, outra companhia para práticas hilárias; ambos pregavam peças nos amigos, deixando, por exemplo, ratos de mentira na banheira da casa de alguém — e gostavam de objetos do tipo kitsch, “bobagens que, quanto mais estranhas, melhores eram”. As diversões eram “uma forma de autodefesa” diante “do absurdo da vida cotidiana, diante da censura, diante do tédio e da sordidez do jornal da televisão”, comentou sua amiga Ewa Lipska.
Entretanto, fica claro que essa escolha dependia do temperamento; num dos últimos capítulos de Quinquilharias, as biógrafas de Szymborska comparam o seu modo de ser com o de um outro polonês ganhador do Nobel, Czesław Miłosz, durante uma viagem: “Szymborska passou o tempo todo se esforçando para falar de coisas leves e engraçadas, e Miłosz, ao contrário, discorria sobre questões do tipo: ‘as relações polaco-bielorussas’ ou ‘a Bielorrússia como uma Irlanda polonesa’”. A lembrança foi registrada por Michał Rusinek, que se tornou secretário da poetisa logo depois que ela recebeu o prêmio da academia sueca.
Durante mais de 15 anos, Rusinek protagonizou com sua chefa vários episódios engraçados. Não à toa o capítulo mais divertido da biografia é o vigésimo, dedicado à relação entre a poetisa e seu secretário. Por meio dessa esfera cotidiana, que envolveu amizade e trabalho, alcançamos a ideia de que uma vida plena passa necessariamente pelo humor, pelo prazer e — por que não? — pelas brincadeiras na hora de fazer arte. Eis uma alternativa que pode nos salvar inclusive hoje, em meio às dificuldades.