Viver é como uma montanha-russa. Momentos de tensão, velocidade, algumas pausas e muitos altos e baixos ― com quedas repentinas e subidas íngremes. No meio do percurso muita coisa pode acontecer. Um filho, um casamento, uma aposta errada, um prêmio inesperado e, de quando em vez, uma doença ou outra para chacoalhar a rede da existência.
Pode ser algo leve e relativamente de fácil tratamento, como uma febre ou uma gripe; ou ainda algo mais traumático e apavorante, como um câncer. O fato é que, uma hora ou outra, todo mundo precisa lidar com a experiência da doença durante a vida e isso pode trazer alguns questionamentos sobre a natureza da saúde, do bem-estar e do significado de se estar doente.
A atual pandemia da Covid-19 tornou perceptível o fato de que toda doença, em maior ou menor grau, possui uma relevância cultural e metafórica. A escritora e filósofa estadunidense Susan Sontag sabia disso e escreveu dois importantes ensaios sobre o assunto, sendo eles A doença como metáfora (1978) e Aids e suas metáforas (1988). A própria autora sentiu na pele o que era conviver com um mal de grande magnitude quando foi diagnosticada com leucemia na década de 1970.
“A doença é o lado sombrio da vida, uma espécie de cidadania mais onerosa. Todas as pessoas vivas têm dupla cidadania, uma no reino da saúde e outra no reino da doença. Embora todos prefiram usar somente o bom passaporte, mais cedo ou mais tarde cada um de nós será obrigado, pelo menos por um curto período, a identificar-se como cidadão do outro país”, escreveu. As reflexões de Sontag ainda hoje são de grande relevância para compreender a doença como um fenômeno que atinge não apenas o corpo, mas também toda a compreensão da realidade que nos cerca.
É possível encontrar o mesmo tipo de meditação em Antropologia da doença (2010), do francês François Laplantine, em que aborda as formas elementares da doença, da cura e suas formas de representações inteiramente distintas de uma sociedade para a outra. Mesmo que a globalização e a aceleração tecnológica tenham levado a uma sincronização e aproximação de lugares, técnicas e línguas distantes, cada cultura encara a doença de uma maneira particular e lida com ela também segundo sua própria cosmovisão.
Tuberculose e arte
No século 19, a tuberculose trazia consigo uma carga que ia além da fatalidade. Era vista como uma doença de artistas, de poetas e, principalmente, das mulheres. “Durante o início do século 19, acreditava-se cada vez mais que a tuberculose estava entrelaçada com o sistema reprodutor feminino”, escreve Carolyn A. Day, em Consumption chic: a history of beauty, fashion, and disease (2017).
Ao vinculá-la às experiências explícitas e exclusivamente femininas da menstruação e da gravidez, os investigadores médicos tentavam explicar a maior mortalidade supostamente observada entre as mulheres com tuberculose. Essa associação foi possibilitada pelo discurso da sensibilidade, que foi apoiado pela teoria médica contemporânea que julgava que o sistema nervoso das mulheres era mais frágil do que o dos homens.
A tuberculose tinha como predecessora direta nada menos que a famigerada e temida peste bubônica como símbolo da morte. Uma posição que a tuberculose vai ocupar até 1940, quando foi descoberta uma cura efetiva para ela, que ainda hoje permanece como uma doença que causa preocupação, mesmo com os avanços médicos, já que, quando não tratada, causa morte em 50% dos casos.
É claro que, com tanto perigo, ela não passaria incógnita pela manifestação cultural humana e exerceu enorme influência na criação de diversas obras que a tinham como escopo. Poesia, literatura, artes, teatro, cinema, ópera: em cada uma delas é possível achar mais de uma referência àquela que foi considerada o mal do século 19, período no qual também era conhecida como consumption, ou seja, uma condição que consumia a existência de uma pessoa, e que de modo curioso estava intimamente ligada à estética, sendo considerada até uma doença refinada, dada aos espíritos sensíveis.
Na literatura brasileira, por exemplo, Castro Alves, Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira, José de Alencar e Álvares de Azevedo fazem parte do rol daqueles que padeceram dela e que a transformaram em trampolim para um salto artístico em algum momento de suas criações literárias. Outra escritora que também fez da tuberculose o seu mote foi Dinah Silveira de Queiroz. Em 1939, ela publicou Floradas na serra, seu primeiro romance, que devido à contemporaneidade do tema não demorou para cair nas graças do público e virar um best-seller.
Aprendizado da vida
O livro conta a história de Elza, uma jovem acometida pela doença que vai buscar tratamento em um sanatório nas montanhas do interior de São Paulo. Método que, na época, era considerado o mais recomendado para os convalescentes, já que se acreditava que o ar puro das montanhas era de grande ajuda na recuperação dos pacientes. (Impossível não lembrar do cenário do monumental A montanha mágica, publicado em 1924 por Thomas Mann.)
Lá, ela vai aprender importantes e valiosas lições sobre amizade, sobre amor e sua nova vida ― que a proximidade da morte acabou por lhe proporcionar. Ao subir a serra, ela adentra um universo paralelo, diferente daquele que os internos do sanatório chamam simplesmente de planície. Entre as alegorias, as mais recorrentes estão a subida e a descida da serra, que respectivamente se relacionam com doença e cura:
Gente curada descia. Doentes subiam todos os dias…
Entre os sintomas da tuberculose pulmonar estão tosse com sangue, suores noturnos, febre e perda de peso. E o tempo todo eles aparecem na narrativa, junto com os procedimentos mais comuns no tratamento da doença que nunca é nomeada. E em meio a tantas imagens de sofrimento, dor e luta pela vida, Dinah exercita os músculos filosóficos para refletir sobre as relações afetivas e laços humanos, sempre com sensibilidade e sobriedade, numa escrita que envolve e está repleta de diálogos primorosos:
Os amores aqui são assim todos… Duram pouco. Muitos porque começam perto da morte, outros porque aquele que se cura esquece o outro que fica (…) Mas há tempo para tudo. Para o amor… para o tratamento. Aliás, o amor deve ser dosado para os doentes. Nada de paixões. Apenas flerte, alguma coisa que traga animação, estímulo para a vida…
Eterno retorno
A atual pandemia deixou claro que, em tempos de ameaça à saúde mundial, é comum revisitar alguns clássicos da literatura, como aconteceu com A peste (1947), de Albert Camus, Ensaio sobre a cegueira (1995), de José Saramago, e Amor nos tempos do cólera (1958), de Gabriel García Márquez, que voltaram a cair nas graças dos leitores de maneira geral.
Nem bem começamos a sair de uma grande ameaça pandêmica, o problema das variantes de tuberculose resistentes aos antibióticos já surge no horizonte para trazer mais uma apreensão, que por sua vez talvez acabe por despertar mais uma vez o interesse pela literatura sobre o tema.
O ideal mesmo é que não houvesse a necessidade de tais ameaças mortais para nos fazer redescobrir obras tão encantadoras como Floradas na serra. Mas, sabe como é: a iminência do fim sempre traz consigo a busca por tudo que é de fato essencial.