Depois que meu crânio foi esmagado descobri que dentro é maior do que fora. Foi quando fui para o Inferno e conheci meu amigo. Meu inferno é uma casinha branca, de portas e janelas azuis. Dentro apenas uma mesa rústica, três cadeiras e a estante com alguns livros. Uma pequena biblioteca.
Um homem cego me esperava com as mãos cruzadas sobre a bengala. Alto, calvo, finos cabelos brancos e vestindo um terno preto impecável. Um bibliotecário.
Sem falar, pois aqui não se fala, e percebendo as minhas dúvidas, explicou que meu inferno seria assim: uma singela biblioteca e condenado a ler todos estes livros na eternidade.
Ele deve ter percebido que eu ri. Uma punição irônica aos meus pecados ou brinde aos meus desejos?
Então o Borges, colocando a bengala de lado, descreveu a minha angústia em vida. A de querer ler todos os livros do mundo. Os clássicos, os grandes filósofos, os mais belos romances dos milhares de mil e uma noites da história. O sonho de ter em casa as coleções e obras completas sem as quais ninguém poderia ser um leitor inteligente. Saber citar aforismos magníficos de qualquer autor.
— O inferno é aquilo que desejamos por toda vida e que se prolonga pela eternidade. Agora tens o que sempre desejaste. Eis o teu inferno.
Primeiro uma brisa fez ondas nas imagens das estantes, como uma pedrinha na lâmina de um lago. E eu vi, mesmo sem ter olhos, as fileiras de prateleiras se estenderem em linhas paralelas. Miríades de livros saltaram das estantes. Prateleiras abarrotadas, como serpentes, se enroscavam. Carrossel de capas, rodas gigantes de encadernações, moinhos de papiros. Salas e mais salas amontoadas, corredores de andares e escadas em aspirais, peles de animais, inscrições em pedras, encardenações luxuosas e em brochuras. O cheiro de tinta gráfica e de mofo. Livros, muitos livros enfileirados jogados ao chão, empilheirados.
A casinha branca agora tinha milhões de quartos e corredores. As paredes cobertas de estantes. Dentro era muito maior do que o lado de fora. Não pude ver mais onde as linhas de estantes se perdiam. Mas continuei percebendo o distante som de novos livros surgindo, como quem passa rápido as folhas encadernadas, a cada instante mais e mais textos e pensamentos estão sendo escritos.
Bilhões de livros diante de mim. Se em vida não consegui ler quase nada, agora, mesmo com a imortalidade isso não seria possível. Meu amigo Jorge parecia sorrir. Eu estava mesmo numa sala dentro da casinha branca, de janela azul, onde estavam todos os livros da Terra.
Sentei em umas das três cadeiras e comecei a ler divinas comédias e contos de fadas ao som distante das novas fileiras que iam surgindo, o som das folhas misturadas a bips eletrônicos.
No inferno não temos o tempo para contar o tempo. Perdi o cálculo dos livros que ia lendo. Aos poucos meu amigo me orientava e me sugeria volumes. Descrevia para mim até os livros queimados em Alexandria e nas torres medievais. Contava-me sobre a vida confusa dos escritores, nunca coerentes com a beleza do que escreviam. Encontrava humor no trágico e a hipocrisia na comédia.
Inicialmente eu não entendi por que tínhamos três cadeiras na sala. Percebi que eu lia em todos os idiomas e que bastava tocar, mesmo sem ter as mãos, a minha mente absorvia o que estava escrito. Dispensei, assim, as traduções.
Confesso que o silêncio me incomodava. Ele ali parado com o queixo apoiado nas mãos e as mãos sobre a bengala. Havia monotonia no inferno, bem pior do que a do céu e alguns casamentos. É possível se irritar, também, no inferno. Borges e seu sigilo chato e imponente.
— E você. Por que não lê um pouco desses livros? Fica aí calado com este rosto de faraó mumificado. Afinal, você aqui é o bibliotecário. Nada a fazer? Nem ao menos ler?
— Mas eu sou um cego. Não tenho olhos para ler. Já morri no escuro.
— Mas você sabe que não se precisa de olhos para ler aqui. Nem que seja para sair desta inércia de esfinge.
— Meu silêncio é dinâmico. Não preciso ler, sou muito anacrônico e por isso sou mais evoluído que você.
— Você fala um paradoxo.
— Eu não leio estes símbolos mortos. Antes dos livros só havia a voz. Escuto a oralidade sutil dos mestres, a imaginação que deu origem aos livros. Tu vês e lês livros e mais livros. Eu escuto os murmúrios narrados, seleciono os que me interessam e assim medito dialogando com cada pensamento.
Jorge Luis Borges, um arrogante como devem ser todos os demônios. Trata-me como um discípulo incompetente ou um escravo. Vigia meus gestos, faz cara de desdém a todas as minhas opiniões, quanto mais eu leio mais ele parece insatisfeito.
— Neste caso, você é um demônio ou um condenado? Posso deduzir que se estamos no inferno e você aqui me acompanha, então, Borges, você é o meu demônio?
— Sempre fui um demônio. Todos nós somos. Não somos deuses. Aqui sou apenas mais um condenado maldito. E assim como tu, estou aqui pagando minhas ilusões entre estantes de livros mofados.
Esperei um pouco antes de perguntar. Li todas as Bíblias publicadas. Comparei os versículos que se alteravam de acordo com os interesses dos grupos religiosos de cada época. Simplificações e hermetismos. Traduções de traduções de traduções incompreendidas. Até que perguntei.
— Mas quais foram então os seus pecados? O que tanto desejou de impossível em vida?
— Tentei usar os livros para mudar as formas de pensar dos leitores, como forma de evoluir o pensamento coletivo da humanidade. Mais que isso, tentei com meus escritos fazer as pessoas pensarem por suas próprias cabeças.
— Mas isso será um crime?
— Acelerar a órbita natural das idéias vai contra as leis divinas da evolução lenta da espécie.
Constrangido, voltei minha atenção aos livros de auto-ajuda, religiosos e outras ilusões. Demorei o bastante para sentir a longa expansão do universo, até ficar impossível, da Terra, ver as galáxias. Neste período, não mais resisti e fiz a pergunta que não devia ter feito.
— Por que você está aqui? E como você está sendo punido?
O velho voltou o rosto em minha direção.
— Tu és o meu castigo.
Baixei a cabeça e li em voz alta todos os 90 mil poemas do Mahabharata e do Harivamsa. Decorei cada um dos dois milhões de palavras e suas histórias. E o Borges voltou a me dizer.
— Vou esperar até que leias milhões de livros e até que consigas te libertar e possas pensar por ti mesmo. Que tenhas tuas próprias opiniões sobre a vida.
— Mas eu já tenho minhas opiniões sobre tudo que li.
— Sem repetir ou citar o que já foi dito antes? Tu apenas relês o que já foi pensado e escrito. Nada de novo. Mesmas coisas ditas com outras palavras. Simples repetição. Imitando os gregos, os judeus e os vedas. O eterno retorno das palavras. Tua cabeça está cheia dos pensamentos dos outros. Não pensas por ti mesmo.
— Posso concluir que sou eu, então, o demônio de Jorge Luis Borges. Não penso por mim mesmo. Só aprendi a ler os pensamentos das mentes dos outros. Nada que digo aqui é novo ou original. Logo eu, que queria escrever algo tão belo como ele me ensinou em seus contos, sou um fracasso.
— Impossível, gritei com o Borges, jamais poderei sair deste inferno.
— Poderás num milênio qualquer, quem sabe. Mas para isso terias que deixar de ler, esquecer tudo que já aprendeste e pensaste. Tornar-te inocente como uma criança, capaz de contemplar o universo sem os olhos da razão e da ciência e tirar as mais ingênuas conclusões.
— Você acha que eu conseguiria deixar de pensar? Se aqui sou apenas uma gota de elétron de um pensamento? Borges, meu amigo, me responda o que é o inferno? O que é o Inferno?
Em suas mãos surgiram uma folha de papel amarelada e uma caneta. Começou a desenhar uma letrinha miúda e leve.
Olhei para o chão da casa. Não havia chão. Nossos pés estavam suspensos sobre galáxias como espumas coloridas. Escutei mantras de baleias de um planeta distante. Percebi uma nuvem de borboletas brincando sobre a folha amarela que a mão de Borges me passou. E assim o mestre me disse:
— No inferno, não terás com quem contar. Não adianta pedir, não serás atendido. Falas e não serás escutado. Não terminarás tuas frases, serás interrompido e os pensamentos serão tolhidos.
No inferno, há muitas direções. Mas não se chega a lugar nenhum. Tentas sair, tentas mudar, mas tudo é estático. Becos sem saídas e ladeiras altas.
Acredite. O Nada existe. O Nada toma conta da vida. Nada se cria e nada se pensa. Não há ação. O Nada é o tudo. E o tudo é pobre. A alma é pobre. A cultura é pobre. Somos uma ilha cercada de mediocridades e mesmices.
No inferno, morre-se de coisas estranhas. A morte chega em frases estúpidas como: perdão, eu não queria te fazer mal; esqueci de desligar a energia; eu não percebi você; quem tirou a escada que estava aqui? Foi sem querer. Desculpa-me, foi por amor.
No inferno, também existe a união. Muita solidariedade para eliminar, impedir e abortar as idéias. Dissipam-se fantasias. Nada se cria. Tudo se destrói.
No inferno, não há o choro. As lágrimas evaporam-se antes que saiam dos olhos. Ficam presas e molham o coração, que esfria. E o coração gelado não chora.
Não. No inferno não há o sim. Não é não. Tudo é não. Todas as frases começam com o não, não podem ser ditas a não ser com o não. Os verbos são no pretérito. Não há miragens de futuro.
Aqui, tudo que é castrador começa com a letra P. Professor, pastor, pais, patrão, país, padre, presidente. Papa, polícia, poder, pendências, Paulo. Propriedade privada, políticos primatas, povo paciente, primas putas.
Brilham estrelas no céu, no céu do inferno. Mas as cabeças estão sempre baixas. E a lama escura não reflete brilhos. Sabemos que estrelas existem, mas estão tão distantes, que são impossíveis. Então, não há por que olhar para os astros.
O inferno é cercado de um muro. Feito de tijolos de resignação, de conformismo, da submissão. Acomodam-se os desejos. Pois, foi Deus quem quis assim.
Há muitas normas no inferno. Normas normais. Leis, regras, dogmas, artigos, códigos, manuais, estatutos, regimentos, cartões de pontos, avisos de proibido fumar, proibido pensar, pisar na grama. Muitos advogados, muitos chefes, censores e sogras.
É por isso que, no Inferno, o nascer é trágico, sangra, dói e se chora. Já a morte, nem sempre é trágica, nem sempre dói ou sangra.
Aqui, o amor é puro. Puro aproveitamento. Não vais poder amar e ser amado como cantam as antigas orações franciscanas. Hás que carregar tanto amor e não encontrar ninguém para receber. Sentirás uma intensa necessidade de te doar, afagar e beijar. Mas receberás a frieza e a indiferença.
Uma eterna espera. A tolerância calada, a paciência das filas, saudades antes da partida, medo de si mesmo, uma ameaça constante de não ser. O servir humilde, grito represado, o tesão contido, a esmola negada, um óvulo não fecundado, a voz desafinada.
Lugar dos pecadores. Cometem esperanças, insistem em ser felizes e até acreditam em céus e deuses. Insistem em viver. Seguem os instintos. Hereges que acreditam que o destino é imutável.
E acima de tudo, o pecado imperdoável de querer a liberdade. Sem a clemência do humor, e o pecado mortal de amar.
Existe a paz. A paz dos desertos, a paz dos cemitérios. O silêncio dos torturados que não se confessam. Onde há o esquecimento. Depois de algum tempo, nem mesmo as ervas daninhas vão crescer na cova de terra seca. Nem os vermes perderão tempo com teus ossos.
O inferno é aqui. O inferno é a solidão.
Quando terminei de ler a folha amarela vi que ele estava com o rosto severo e havia lágrimas. E agora estamos calados há várias eras. Mesmo assim eu continuo na leitura de mais livros e ele no perene silêncio.
Às vezes olho através da janela azul desta casinha branca. E vejo você lendo este livro. Percebo ao meu lado a cadeira vazia. É sua esta cadeira. Você logo vai estar aqui, comigo, ao meu lado, junto a estas estantes infinitas. Não tenho pressa. Estou esperando. Quando você chegar, nós vamos reler tudo. Novamente.