Poesia como declinação lógica de dor, medo e morte

“Impressões do pântano”, de Luis Dolhnikoff, traz o emprego de formas poéticas variadas: de poemas em prosa a decassílabos
Ilustração: Tereza Yamashita
01/09/2021

“Reconhecido como um dos maiores poetas brasileiros contemporâneos…” — assim reza a lenda da orelha do novo livro de Luis Dolhnikoff. Lenda, digo, pois se há alguma coisa com que Dolhnikoff não pode contar é o reconhecimento de sua grandeza, seja entre críticos ou colegas de ofício, ainda que seja de fato um poeta de valor. Seria mais justo, portanto, falar em subestima de sua poesia, assim como ainda são subestimadas as obras de dois excelentes poetas a quem Dolhnikoff admira e homenageia em alguns dos seus poemas: Bruno Tolentino e Régis Bonvicino. E entende-se porque seja assim, pois não são poetas que se prestem a relações de camaradagem entre pares ou a compor versos que tragam estímulo e edificação à vida do leitor.

Mais ainda: são poetas cujas convicções políticas nada têm de simpáticas, seja a um humanismo genérico, seja a uma esquerda culturalista, digamos. Contudo, diferentemente das posições políticas de Tolentino, as de Dolhnikoff, reiteradas em seus poemas, são pensadas dentro de um viés de esquerda materialista, iluminista, racionalista e cientificista — ainda que não dialética, como se verá —, frontalmente contrária ao comportamentalismo populista, de matriz norte-americana, ancorado em bandeiras relevantes como as do politicamente correto e das minorias de gênero e raça.

Ou seja, estamos falando de um poeta profundamente indigesto, que faz questão de se opor ao consenso do ambiente cultural do país. Daí também não ser reconhecido, mas, ao mesmo tempo, como deixa trair a orelha, ressentir-se disso e, de alguma forma, excitar-se com isso, a ponto de posar como espírito de porco da poesia nacional.

Digo tudo logo de uma vez porque é preciso superar esses enganos circunstanciais para se atingir o cerne do que importa na melhor poesia de Dolhnikoff, que, a meu ver, é o rigor entimemático com que encara o andamento do poema — algo que, na tradição poética, seria realizado exemplarmente pelo soneto, mas não é assim com Dolhnikoff, muito mais inclinado às formas livres e informais do modernismo, assim como ao jogo aberto de aliterações, paronomásias e trocadilhos do concretismo e, mais ainda, do pós-concretismo — no que guarda algum parentesco com Paulo Leminski, seu amigo e parceiro de composições. Algum, mas não tanto, pois o modo como Dolhnikoff encaixa o raciocínio rigoroso no coração da sintaxe informal e desbocada, que não evita o calão, antes o preza, gera uma sucessão de máximas e sentenças que invertem violentamente os lugares-comuns do zeitgeist, provocando mais espanto e rejeição do que iluminações ou bordões amigáveis.

Quem quiser saber mais do que falo, deve experimentar a leitura do novo livro de Dolhnikoff, Impressões do pântano, publicado pela Quatro Cantos, de São Paulo. Segundo a mesma orelha de antes, trata-se do fecho da trilogia iniciada com Lodo (Ateliê, 2009) e seguida de Rugosidade do caos (Quatro Cantos, 2015). Li atentamente todos esses livros, e posso garantir o nexo entre eles, que tanto remete aos pontos que mencionei acima, como ao que os antigos chamariam de “copiosidade”. Isto é, além de possuir talento, Dolhnikoff não o economiza jamais: escreve sobre todos os assuntos, com vasta predominância dos contemporâneos, usando grande variedade de instrumentos poéticos e críticos. E Impressões do pântano tampouco economiza no emprego de formas poéticas variadas: vai de poemas em prosa, de cuja existência Dolhnikoff curiosamente duvida, a poemas-ensaios; de redondilhos e decassílabos com variados tipos de metro e rima a formas livres e mesmo a versos puramente visuais.

Sempre que o leio, fico imaginando que diabos aconteceu a Luis Dolhnikoff que ele não é doutor em literatura e está empregado em alguma Universidade de ponta do Brasil ou do exterior, pois é evidente que ele não apenas conhece o seu ofício, como tem instrumentos teóricos e críticos para falar com maestria a respeito dele. A resposta talvez seja a de que a destreza de Dolhnikoff responde estritamente à sua vocação original como autor, não como disposição genérica de estudo ou de prática pedagógica.

Tornando, entretanto, à copiosidade que caracteriza Impressões do pântano, tenho de acrescentar que ela não é avessa à disciplina: podem-se reconhecer blocos temáticos em sequência no livro, como os de discussão metapoética, teológica, fisiológico-obsceno-satírica, os de comentários políticos ou os associados ao desempenho de tópicas antigas como as da passagem do tempo ou da natureza contraditória e caduca do amor. O que há em comum aos blocos é a convicção de que, na experiência humana, apenas a dor, o temor e a morte são certos, tudo mais não indo além de figuras da ideologia, no sentido marxista de falsa consciência, ou de ilusões do auto-engano complacente.

Como se vê, trata-se de uma poesia incômoda que, por todos caminhos, chega ao nada e ao desespero, jamais a Roma ou ao Nirvana. Aliás, não se trata exatamente de chegar ao nada, mas de partir dele, em cujo cerne, desde o início, está inscrito o desespero e o fracasso. O que Dolhnikoff apresenta na sequência dessa premissa maior, são argumentos de uma lógica inexorável que sucessivamente demonstra a sua própria inutilidade, ou a sua exclusiva utilidade para demonstrar o vazio que a percorre de ponta a ponta. Seja qual for a direção que se tome, o caminho do poema sempre se demonstra como radicalmente falho de sentido.

Não conheço poesia brasileira atual mais empenhadamente destrutiva, ao menos em termos de disposição intelectual apriorística, do que a de Dolhnikoff. Embora cite bastante Drummond, ele tem pouco a evocar como escarmento do tempo, pois é programaticamente desenganado: as suas pupilas não estão fatigadas pela muita experiência do fracasso, mas pela razão implacável de sua metafísica cerebrina e niilista. Para quem aprecia poesia intelectual exigente, Dolhnikoff é um must, além de profundamente incomum às euforias brasis.

Por isso também os operadores sintáticos que mais aparecem nos poemas são o “pois” explicativo, e ainda mais o “porque” causal, que ajunta à explicação a referência a uma fonte tóxica incrustada na natureza dos seres e coisas, e rebatida em suas múltiplas circunstâncias. Fosse religioso o pessimismo programático de Dolhnikoff e teríamos de pensar num hiperagostinianismo, mas não é o caso. Ateu e materialista, Dolhnikoff acusa antes uma espécie de desvio cartesiano em que o único deus que tomou posse de nossos destinos é cruel a ponto de apenas existir como armadilha ilusória do homem. Tudo que recebemos dele é a dificuldade e a angústia de ser, na qual a imagem mais exata da poesia que pratica é a de atividade mórbida de dissecar o próprio cadáver.

Soa exasperante, eu sei, mas é assim mesmo que funciona a poesia de Dolhnikoff. Desse ponto de vista, aliás, por mais contemporâneo que seja, seu niilismo militante o aproxima paradoxalmente de positivistas finisseculares como Augusto dos Anjos, com a diferença de trocar o léxico farfalhante e dramático por um esfriamento clínico, silogístico e cínico. A exuberância enojada de um se torna a inteligência depressiva e malvada do outro.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho