🔓 Raro como flores azuis

Uma pequena homenagem a Frei Betto, um dos grandes intelectuais brasileiros, que aniversaria no próximo dia 25
Ilustração: FP Rodrigues
20/08/2021

No bairro de Perdizes, em pleno coração de São Paulo, a igreja de São Domingos, magnífica construção modernista de linhas sóbrias, com sua torre de 34 metros de altura, contrasta com o desenho mais tradicional do antigo convento de Santo Alberto Magno, que hoje abriga uma escola privada, situado bem ao seu lado. Difícil imaginar que, atrás desse conjunto, entre altas árvores, existe o chamado convento novo, um prédio simples, austero e calmo, onde mora, num minúsculo quarto, um dos nomes mais importantes da nossa história recente, Carlos Alberto Libânio Christo, mais conhecido como Frei Betto, aniversariante do próximo dia 25, quarta-feira.

O cubículo de 20 metros quadrados no qual habita este filho de uma tradicional família mineira que largou mão dos privilégios de classe para abraçar a luta pelos despossuídos, talvez traduza a variedade de seus interesses. Uma mesa repleta de livros, uma estante repleta de livros, uma cama mínima, que mal dá para o corpo esticar, e as paredes cobertas de quadros, onde convivem artistas consagrados como Antonio Poteiro, e anônimos, como o presidiário com quem Frei Betto dividiu uma cela e lhe pintou um magnífico retrato.

Respeitado teólogo, incansável divulgador do cristianismo, ativista político, paladino na defesa dos direitos humanos, temido polemizador e multifacetado escritor de renome (cronista, ensaísta, romancista, contista, autor de literatura juvenil e de reportagens), Frei Betto assina mais de 70 títulos. Entre eles, destacam-se o já clássico Batismo de sangue, que conta o trágico envolvimento de um grupo de dominicanos na luta contra a ditadura militar brasileira; a coletânea de contos Aquário negro; os romances Hotel Brasil e Minas de Ouro; as reflexões de Fidel e a religião e A mosca azul.

Com sua fala serena mas incisiva, gestos contidos e olhar interessado nas coisas e pessoas, Frei Betto é conhecido por sua honestidade intelectual, pela coragem com que defende suas ideias, e pela coerência de seus pontos de vista. Premiado nacional e internacionalmente, amigo de poderosos, como Fidel Castro e Luiz Inácio Lula da Silva, com acesso livre à ala dos convidados especiais do papa Francisco, Frei Betto é antes de tudo um desses raros seres humanos que abriram mão de um projeto individual para dedicar-se a uma causa mais nobre, qual seja, instaurar o reino da felicidade na Terra.

Para além dos livros, das ideias, da amizade com figuras emblemáticas da história contemporânea, está seu profundo engajamento na vida, seu profundo compromisso com os deserdados da Terra, destituídos de tudo, mas principalmente de amor. Por isso, concluo esse breve inventário com uma história por ele mesmo contada, que resume, de maneira magnífica, quem é Frei Betto. “Eu estava no sinal vermelho, em São Paulo, e um garoto chegou. Sempre carrego balas comigo, justamente para não dar dinheiro. Ele se aproximou: ‘Moço, me dá um dinheiro?’. Eu falei que não tinha. Eu estava com um último pacote de dropes, dei e passei a mão na cabeça dele. Então, um outro garoto se aproximou. Falei que não tinha dinheiro e que a última bala eu tinha dado para o colega dele. E ele respondeu: ‘Não, moço. Eu não quero bala, não quero dinheiro. Eu quero que você passe a mão na minha cabeça’. Aí, só de lembrar desse episódio, tenho vontade de chorar de novo”.

Luz na escuridão
Henrique Schneider, contista, cronista, romancista:

“Nestes dias, estou revisando e adicionando novos capítulos a uma novela chamada A solidão do amanhã. Trata-se do segundo volume de uma trilogia sobre a ditadura, que enfocará a tortura, o exílio e a censura, e foi iniciada com o Setenta (sobre a tortura), vencedor do Prêmio Paraná de Literatura 2017. A solidão do amanhã é sobre o exílio. Mas trata do tema sob uma ótica um pouco incomum: em vez de falar do exílio em si, escrevo sobre a viagem que leva até ele – esse pequeno trajeto cheio de incertezas que desembarcará em incertezas maiores. No livro, conto a ida do estudante Fernando de Porto Alegre a Melo, na fronteira Brasil-Uruguai. Após ser preso e torturado por participar do combalido movimento estudantil no sombrio ano de 1972, ele é levado ao exílio pelo pai de um amigo de infância, funcionário público sem envolvimento político, que só aceita a incumbência por conhecer o caroneiro desde criança. Mas o motorista impõe uma condição: que não se fale de política no caminho. Depois, quero começar a novela sobre a censura. Não será tarefa fácil – tomara eu consiga escrevê-la”.

Parachoque de caminhão
“Não se constroem palácios de pedra com trabalho honesto.”
Liev Tolstói (1828-1910)

Antologia pessoal da poesia brasileira
Jorge de Lima
(União dos Palmares, AL, 1893 – Rio de Janeiro, RJ, 1953)

Canto V – Poema VI

Também há as naus que não chegam
mesmo sem ter naufragado:
não porque nunca tivessem
quem as guiasse no mar
ou não tivessem velame
ou leme ou âncora ou vento
ou porque se embebedassem
ou rotas se despregassem,
mas simplesmente porque
já estavam podres no tronco
da árvore de que as tiraram.

(Invenção de Orfeu, 1952)

Luiz Ruffato

Publicou diversos livros, entre eles Inferno provisório, De mim já nem se lembra, Flores artificiais, Estive em Lisboa e lembrei de você, Eles eram muitos cavalos, A cidade dorme e O verão tardio, todos lançados pela Companhia das Letras. Suas obras ganharam os prêmios APCA, Jabuti, Machado de Assis e Casa de las Américas, e foram publicadas em quinze países. Em 2016, foi agraciado com o prêmio Hermann Hesse, na Alemanha. O antigo futuro é o seu mais recente romance. Atualmente, vive em Cataguases (MG).

Rascunho